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Um raio do sol da liberdade no meio da floresta

Posted by Cottidianos on 00:37
Sábado, 22 de novembro

Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como os peixes;
mas não aprendemos a simples arte de vivermos junto como irmãos”.
(Martin Luther King)



O texto abaixo não é inédito. Já o havia publicado há um ano, por ocasião do Dia da Consciência Negra. No geral, devo dizer que não fiz grandes alterações, apenas dividi-o em capítulos e reescrevi um ou outro parágrafo, além desta introdução.

Em formato de conto, faço um tributo a Zumbi — símbolo de resistência negra durante o período da escravidão no Brasil, e último líder do maior quilombo de toda a América, durante o período colonial: o quilombo de Palmares. O texto mistura elementos ficcionais com fatos reais para contar a história do líder negro à época do Brasil colônia.

O conto é dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo faça uma narrativa inteiramente ficcional, livre, sem base em dados históricos, apenas com o objetivo de levar Zumbi até o seu campo de batalha: O quilombo — que eram comunidades de negros fugidos das fazendas e que se embrenhavam no meio da floresta. Lá, eles viviam livres dos chicotes, das chibatas e da crueldade de muitos senhores de engenho. Nos demais capítulos, ainda usando narrativa literária, apresento os fatos históricos, personagens, datas, estrutura dos quilombos e a luta do povo que habitava essas comunidades.

No mais, desejo boa leitura, ou releitura do texto.


***



Um raio do sol da liberdade no meio da floresta


I — A Fuga

Agachou-se à beira do pequeno riacho de águas cristalinas que cortava a densa floresta. Olhou sua imagem de adolescente refletida nas águas. Estava num transição entre menino e homem. As águas do riacho não lhe diziam que era um escravo, ao contrário, diziam-lhe que era um rei. Um rei negro. Fechou a mão em forma de concha e, com elas, trouxe o líquido precioso aos lábios, sorvendo com prazer. Levantou a cabeça e olhou ao redor de si. O sol atravessava a copada das árvores, criando um fascinante jogo de luzes e sombras. Sentia-se num ambiente da rara magia e de mais absoluta liberdade.

Há quanto tempo caminhava no meio da mata em direção ao alto da serra? Não sabia ao certo. Em sua mente vieram as imagens do primeiro dia de fuga. Os cães ferozes e os capitães-do-mato estavam ao seu encalço. Correra muito, o mais que pudera. Seu coração quase saltava do peito de tão forte que batia. Os homens o caçavam como se caça um bicho no meio do mato. Sabia que a ordem era atirar para matar. Havia tido notícias de muitos escravos que foram mortos naquelas circunstâncias. Os que conseguiam ser recapturados com vida sofriam castigos terríveis.

Ouvira de longe o latido dos cães se aproximando cada vez mais. Mas não o pegariam, nunca. Havia trazido um óleo feito com plantas nativas que quando em contato com a pele confundia o faro dos cães. Era um segredo que um antigo escravo lhe ensinara e pelo qual ele seria grato pelo resto da vida. Sacou do bornal o óleo e, rapidamente, passou no corpo inteiro. Viu, mais adiante, uma pedra que mais parecia um túmulo. Correu rapidamente até ela e, com grande dificuldade, seu corpo esguio conseguiu colocar-se debaixo dela. Ficou ali como se fosse um morto.

O trote dos cavalos se fez mais forte e o latido dos cães mais agressivos. Pararam perto da pedra onde ele estava escondido. Ficou paralisado de pavor. O sangue frio lhe escorreu pelo corpo. Felizmente, a receita ensinada pelo velho africano era boa demais. Os animais não conseguiram perceber sua presença e levaram os homens para longe de onde ele estava. Por precaução resolveu ficar ali até que caísse à noite. Quando o manto da noite caiu por sobre aquelas paragens, saiu do abrigo e prosseguiu a fuga em segurança.

O lugar onde estava agora era quase inacessível. Era cercado por densa mata. Analisou o ambiente de forma mais detalhada e percebeu, próximo dali, uma jabuticabeira. Levantou-se da beira do riacho, foi até lá e colheu algumas apetitosas jabuticabas, colocou-as no chapéu e foi saboreá-las sentando à sombra de um frondoso jequitibá. Em seguida, deitou-se ali mesmo, apoiando a cabeça numa enorme raiz que lhe serviu de travesseiro. Ali, adormeceu tranquilamente.




II — A luta de zumbi

 Esse fugitivo carregava o nome de Zumbi e trazia em si a marca da realeza africana, da beleza e da força da gente daquela terra distante. Em seu coração pulsava um forte anseio de liberdade. Nascera em Palmares, no ano de 1655. Certo dia, a comunidade quilombola, na qual viviam seus pais, foi invadida pelas tropas coloniais e ele, Zumbi, ainda recém-nascido fora capturado e levado para a distante Vila de Porto Calvo. Na vila, foi batizado com o nome de Francisco. Por força do destino, passou a trabalhar para o padre daquela comunidade. O padre Antônio de Mello era um generoso patrão e uma ótima pessoa. Com ele, aprendeu o latim e o português e também matemática.

Mesmo recebendo um ótimo tratamento na casa do velho sacerdote, doía-lhe no peito a opressão a que eram submetidos os seus irmãos negros. Ele já era quase adolescente, porém, já sentia que não era natural que uns homens fossem donos de outros. Os homens, todos os homens, haviam nascido para a liberdade e não para as algemas do cativeiro. Fatores como a cor da pele, a condição social, não tornavam uns melhores que outros, mas apenas iguais, pensava o jovem. Padre Antônio havia-lhe revelado que ele fora capturado, ainda recém-nascido, no Quilombo de Palmares. Isso multiplicou seus anseios de fuga do opressor. Em algum lugar daquelas serras, brilhava o sol da liberdade e, nesse sol, ele queria se banhar. Era por isso que não se sentia em fuga. O sentimento era de quem voltava para casa.

Acordou duas horas depois, sentindo-se completamente revigorado. Caminhou por mais um dia e, enfim, chegou à terra prometida: a Serra da Barriga. Olhou de lá cima o vale aos seus pés. O intenso verde das matas e a beleza do céu azul, harmonizavam-se de forma tão perfeita que nem Leonardo Da Vinci, com toda a sua genialidade, conseguiria pintar um quadro tão esplendoroso.

O lugar era de tão difícil acesso que, para chegar até ali, as tropas do governo colonial teriam que empreender uma árdua tarefa e, só a muito custo, conseguiriam alcançar seus objetivos. Mesmo quando conseguia chegar ao local, as tropas estavam tão cansadas, que suas incursões, invariavelmente, acabariam em fracassos militares. A floresta era uma poderosa aliada dos palmaristas e grande inimiga das tropas.

Zumbi, no alto de seus quinze anos e no frescor de sua juventude, conseguira, finalmente, realizar seu sonho: chegar a Palmares – A maior comunidade de resistência negra em toda a América. Uma comunidade quilombola que nasceu no final do século XVI e resistiu até o século XVIII. Foram 100 anos de luta e resistência. O quilombo de Palmares, ou Mocambo de Palmares, como preferem chamar alguns historiadores, possuía, pelo menos, dois ângulos possíveis de análise: para os escravos representava o sonho da liberdade. Para as autoridades, uma ameaça ao sistema escravista.

O jovem guerreiro foi recebido na comunidade com efusiva alegria pelos outros quilombolas que ali já se encontravam. Mais tarde, já bem alimentado, descansado e refeito da viagem, saiu com outros quilombolas para conhecer melhor a região. Descobriu que o Mocambo não era apenas um aglomerado de pessoas, mas sim, que eram formadas de várias comunidades bem estruturadas e organizadas que se interligavam e se intercomunicavam.

A terra, entrecortada por diversos rios, mostrava-se bastante fértil e propícias as atividades agrícolas. Os quilombolas caçavam e pescavam e tudo era de todos. Faziam daquele ambiente hostil um grande aliado. Para adquirir produtos que a comunidade não dispunha, como por exemplo, o sal, os palmaristas saqueavam fazendas e comércios das vilas mais próximas.

O que, realmente, assustou a coroa portuguesa, foi a consciência de que dentre aquelas serras, um mundo de liberdade possível estava sendo criado, totalmente diferente do escravismo. Os Palmaristas estavam criando um novo tipo de sociedade. A economia era de base agrícola. Mandioca e milho eram os produtos principais, porém, havia também o cultivo de batata, legumes e outros produtos. A floresta também lhes proporcionava uma economia extrativa baseada nos produtos que eram retirados dela como, por exemplo, frutos silvestres, ervas e raízes. Eram muito hábeis no manejo do ferro e produziam seus próprios instrumentos de trabalho e algumas armas.

Produziram-se nessas comunidades, novas leituras em matéria de religião e cultura. Santos católicos e deuses africanos conviviam nos altares em perfeita harmonia. Fabricavam também seu próprio artesanato. Assim a comunidade crescia cada vez mais, chegando a alcançar, em meados do século VXII, o número de vinte mil habitantes.

A sociedade escravista e a coroa portuguesa sempre perseguiram Palmares por verem nela uma ameaça. Foram frequentes as tentativas de acabar com o quilombo. Devido a posição estratégica da comunidade, o movimento das tropas era logo percebido e os palmaristas batiam em retirada. Fundavam outra comunidade mata adentro. Em algumas investidas, as tropas conseguiam capturar alguns quilombolas, matar outros tantos, mas no geral, pode-se dizer que suas incursões na floresta resultavam sempre em grandes fracassos militares.  Esses fracassos eram devidos, em grande parte, estarem os escravos que haviam tido a coragem de empreender fuga das fazendas, estrategicamente bem posicionados em meio às matas, fato que dificultava, em muito, a vida das tropas encarregadas das captura deles.




III – O cerco se fecha

Em 1670, os ataques e as tentativas de destruir o quilombo, não vinham surtindo efeito. As autoridades propuseram então um acordo, uma trégua. Um grupo de palmaristas foi a Recife, discutir os termos do acordo com o governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida. Foram recebidos pelo governador como uma comitiva de Estado. Faziam parte dessa comitiva, três filhos do rei Ganga-Zumba, que era uma espécie de governador de Palmares.

Dentre as cláusulas do acordo estavam a de que os palmarista poderiam continuar a fazer trocas de produtos com os comerciantes da região; a liberdade dos nascidos nos quilombos seria respeitada, entretanto, os escravos que chegassem a comunidade, fugidos de fazendas, deveriam ser devolvidos aos seus donos. Muitos quilombolas eram contrários a essa condição de devolverem os escravos que chegassem a comunidade vindos das senzalas. Outro item com que os líderes não viam com bons olhos, era o de que eles, a partir de firmado o acordo, se tornariam vassalos do rei. O líder Ganga-Zumba, temia uma conspiração e ele, não estava errado: foi envenenado e vários de seus seguidores foram executados.

Por essa época, Zumbi já era homem feito e havia-se tornado uma grande liderança militar entre os quilombolas. Depois da morte do líder Ganga-Zumba, foi Zumbi que assumiu a liderança de Palmares. Por volta de 1684 e 1687, os ataques ao quilombo se intensificaram. As autoridades reforçaram as tropas. Zumbi sentia que a força militar da comunidade se enfraquecia cada vez mais. Em meio à guerra, são feitas novas tentativas de acordo, porém, todas resultaram em insucessos.



IV – A morte de um guerreiro

Depois do fracasso de várias tentativas, o comandante paulista, Domingos Jorge Velho, traçou um objetivo: Destruir Palmares e atingir o coração da comunidade, matando Zumbi, seu líder máximo. Reuniu uma tropa de mil homens, armamentos e provimentos em abundância e rumou serra adentro.

Zumbi percebeu que o cerco em torno dele estava se fechando. Escondeu-se em sua fortaleza, na serra Dois Irmãos. As tropas enfurecidas partiram implacavelmente ao seu encalço. Os soldados invadiram a fortaleza na qual ele se escondia. Tiros são trocados de ambos os lados, mas os homens da tropa de Domingos Jorge Velho, estão mais bem munidos de armas e balas. Um soldado atinge Zumbi no peito e o guerreiro tomba no chão da fortaleza.


Tombou Zumbi e, junto com ele, o sonho de uma terra onde a liberdade e a dignidade humana eram realidades possíveis. Findava o dia 20 de novembro de 1695, quando o sangue de Zumbi dos Palmares correu por entre as serras, semeando nas consciências o desejo de manter sempre viva a chama da liberdade, tão ansiada, tão desejada por um grande contingente de negros que padeciam sob o jugo da escravidão.

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