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Qualidade de vida em meio a civilização do espetáculo: É possível?

Posted by Cottidianos on 01:01
Domingo, 02 de novembro



Umas breves palavras antes de iniciar o texto propriamente dito.

 Saúdo a todos que, neste domingo de finados, dia especial dedicado aos nossos entes queridos que já não mais se encontram no plano físico, e que deixaram fortemente em nós, as marcas do amor e da saudade. A ida ao cemitério representa, sem dúvida, um grande sinal de respeito pelos mortos. Lembro com muito carinho de quando acompanhava minha mãe adotiva Maria Julieta e, também a meu pai adotivo Francisco Henrique, ao campo-santo para prestar as devidas homenagens aos antepassados de nossa família. Hoje, esses dois seres a quem amo intensamente, também já fizeram a passagem para o mundo espiritual. Seus corpos estão sepultados na comunidade onde vivemos em harmonia e paz, no estado do Rio Grande do Norte. Certamente, irei a algum cemitério aqui de Campinas, homenageá-los e também a todos os meus antepassados. Sei que eles não estão naquele lugar, pois o espírito é livre como os pássaros da montanha e muito mais há para se fazer nas infinitas paragens do mundo espiritual, do que ficar preso a uma sepultura.

Devo também dizer que as linhas a seguir são, de certo modo, uma continuação de minha postagem anterior, na qual trouxe à vocês uma tirinha do Bill Watterson. Na verdade, sem que tivesse essa intenção, o texto ficou meio que um diálogo entre Bill Watterson, Flávio Gikovati e Mario Vargas Llosa, tendo eu apenas costurado as linhas para formar o tecido.

Feitos esses adendos, prossigamos.

***


Flávio Gikovate é um respeitado médico psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro. Não bastasse isso também é um renomado escritor, autor de 32 livros, cujas vendas atingem a marca de 1 milhão de exemplares. Flávio também navega no mundo da comunicação atuando como apresentador de rádio e TV. Nasceu em berço de ouro e, certamente, dificuldades financeiras não representaram problema algum para ele. O carioca construiu uma sólida carreira profissional. Ganhou e ganha muito dinheiro.

Entretanto, conseguiu escapar das armadilhas da sociedade de consumo e não deixou que o dinheiro e a fama lhe subissem a cabeça, fazendo dele um escravo do luxo e da ostentação.

Chico Buarque é autor, dentre tantas canção, de uma que considero de beleza impar, singular, mas de uma mensagem muito forte. A canção chama-se Quem te viu, quem te vê, e encravando a coroa de diamantes que é essa obra de arte composta por Chico, está o verso:

Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe
De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia”.

Transmutando esses versos para o universo masculino de Flávio Gikovate, eu diria que os seus pais tiveram a delicadeza de conduzir a educação do filho para que ela não fosse revestida de fantasias e castelos que se desmoronam no ar. Dessa forma, não se lhe habituaram a brincar com ele de príncipe, pois, em sentido figurado, quem brinca de príncipe, pode correr o risco de acostumar-se à fantasia.

Flávio apresenta um programa de auditório, transmitido pelas ondas da rádio CBN, que possui casa cheia em todas as gravações do programa, que é assistido por cerca de 100 mil ouvintes todas as semanas. O referido programa chama-se, No Divã do Gikovate, e é um sucesso. Apesar disso, em uma entrevista concedida à Revista da Cultura, publicada pela Livraria Cultura, edição 77, de dezembro de 2013, ele desabafava: “O meu programa, com todo esse sucesso, não tem patrocinador. E não é por acaso. Em psicologia, é sempre difícil de arrumar patrocínio. Se você faz uma revista de tênis, você tem o tênis, a raquete de tênis, a bolinha de tênis. Em psicologia, é a alma e a alma não vende nada. Então, há um problema aí para ter programas em geral, não porque não há interesse, mas porque não é interessante comercialmente”.

Isso acontece porque vivemos em um tempo no qual as pessoas são levadas a não pensar. Tudo anda e gira muito rápido, como se fosse programado exatamente para isso: O não pensar. Outro dia, ouvia o jornalista Arnaldo Jabor, em entrevista CBN, falar exatamente disso, dentro os exemplos que ele citou, lembro-me do cinema. Dizia ele que, até mesmo, no cinema, as pessoas vão para não pensar. Acabou-se aquela coisa de filme reflexivo. Os filmes hoje possuem muita ação e pouco dialogo, quando são comédias reflete-se menos ainda. Espero que entendam que não estou criticando os filmes de ação e comédia, pois também gosto desses estilos cinematográficos. O que quero dizer é que no meio disso tudo, é preciso achar um tempo para pensar, para refletir.



Tudo isso, porque, segundo o grande jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário peruano, Mario Vargas Llosa, vivemos a era da chamada “Civilização do Espetáculo”. No ano de 2010, a Academia Sueca concedeu a Vargas Llosa o Prêmio Nobel de Literatura, pelo caráter político de suas obras.

O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal. Esse ideal de vida é perfeitamente legítimo, sem dúvida. Só um puritano fanático poderia reprovar os membros de uma sociedade que quisessem dar descontração, relaxamento, humor e diversão a vidas geralmente enquadradas em rotinas deprimentes e às vezes imbecilizantes. Mas transformar em valor supremo essa propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo”. Escreve Vargas Llosa no livro A Civilização do Espetáculo, lançado no Brasil pela Editora Objetiva.

É nessa sociedade que está mergulhado o homem retratado nas tirinhas do Bill Watterson, retratado em minha postagem de ontem (01). Subliminarmente, Watterson nos coloca diante do seguinte dilema: O que representa valor maior para o homem moderno: Ser feliz ou apenas ser uma máquina de fazer dinheiro.

Uma pessoa feliz fazendo o seu trabalho é normalmente vista como estranha, talvez subversiva”, escreve Watterson. Ele está coberto de razão, pois não interessa ao mercado consumidor que as pessoas sejam felizes, nem serenas, como diz Flávio Gikovate, pois pessoas felizes e serenas consomem menos, ou seja, o oposto do que clama o consumismo. “Quantos relógios um indivíduo precisa ter? O que um relógio de R$ 500.000 marca diferente de um de R$ 100,00?”, questiona Gikovate, na entrevista a que me referi acima.

Somos estimulados todos os dias a comprar sempre, incessantemente. Também a questão da visibilidade proporcionada pelos meios de comunicação e pelas redes sociais a cobiçar e imitar aquelas personalidades famosas ostentando suas joias valiosas, em seus carros caríssimos, segurando um borbulhante champanhe, acompanhados de um sorriso “Facebook”. Tudo ilusão. A grande maioria dessas pessoas sorri durante á noite e durante o dia passam chorando pelo divã do Gikovate. A diferença é que elas podem pagar um psiquiatra que enxugue suas lágrimas e ouça suas lamentações, para que à noite possam, novamente, ostentar seus sorrisos belos.

Hoje em dia, é raro ver pessoas trabalhando naquelas atividades que realmente as satisfazem, fazendo coisas que realmente lhe dão prazer. Cito o caso de uma jovem com quem conversei outro dia. O marido terminou os estudos universitários, mas não trabalha na área. Faz shows de vez em quando, mas não se pode necessariamente dizer que viva de música. Primeiro, porque no Brasil, — não sei a quantas andam essa questão em outros países — é muito difícil a um músico viver da sua arte, bem como em outras artes de um modo geral. Segundo, pelo fato de que a música é uma das artes que trazem felicidade e, segundo Watterson, que trabalha feliz demais pode se enquadrado na categoria de subversivo.  



Outra questão levantada por Bill Watterson refere-se à questão do sucesso profissional. “A ambição só é compreendida se leva ao topo de uma escalada imaginária de sucesso”, escreve ele. Ao que eu complemento com as palavras do Flávio Gokovate, na entrevista que concedeu à Revista da Cultura. “O indivíduo entra em uma empresa e, não importa muito se ele está gostando ou não do que faz, ele quer galgar postos, porque é lá em cima que estão as recompensas que valem a pena. Ele luta freneticamente para tentar chegar naqueles cargos em que os bônus são aos montes, para eles poderem ter acesso a determinadas conquistas materiais que acham ser fundamentais para a qualidade de vida. Evidentemente que se vende isso pela internet, se vende isso por revistas do tipo Caras, se vende por vários veículos. Mas isso não é qualidade de vida; pelo contrário, subtrai qualidade. O indivíduo anseia conquistar coisas para mostrar para os outros. E isso tudo acho que gera uma quantidade de felicidade muito limitada. Acho que não vale o esforço. De vez em quando, surgem alguns movimentos do tipo “Simplicidade Voluntária” ou gente que larga tudo e resolve mudar para um lugar mais calmo, para uma vida mais contemplativa ou mais voltada para as coisas de que realmente gosta. Provavelmente, essa gente está mais próxima da boa qualidade de vida do que os adeptos da sociedade, que a vivem tentando ser o sucesso dentro dessas regras do jogo”.


Se alguém se cansa do estilo de vida estressante e agitado de uma metrópole como São Paulo, por exemplo, e vai morar em uma cidade menor e mais tranquila, ou se uma mulher, por exemplo, decide cuidar dos filhos, encerrando, ou pelo menos, interrompendo, uma carreira tida como vitoriosa, logo surgem os comentários: Como fulana ou fulano de tal pode tomar uma decisão dessas? Como largar um mundo de oportunidades para se dedicar aos filhos? Como alguém pode se dar bem em uma cidade tão pequena e sem oportunidades?

Ganha-se em qualidade de vida, ou melhor ganha-se vida em qualidade. E qualidade de vida é algo que vai muito além dos índices de IDH, do PIB, da questão da educação, saúde, segurança e outras coisas mais medidas pelos institutos de pesquisa. Não. Qualidade de vida envolve a complexidade das relações humanas, a capacidade de ser feliz, se não se deixar envolver pelo apelo exagerado ao consumo. É olhar para dentro de si mesmo e perguntar-se: O que é mais importante para mim? Felicidade é uma palavra que merece ser riscada do meu dicionário? Vale a pena fazer isto?

Pare um pouco, em meio à correria da vida diária, olhe para dentro de si mesmo, pense em você, naqueles que o rodeiam, naqueles que você ama e procure encontrar formas de viver melhor em interação com eles. Na maioria das vezes nem precisa muito, apenas uma palavra, um sorriso, um “eu te amo”, fazem uma enorme diferença em que se sente limitado pela civilização do espetáculo. 

2 Comments


As conexoes com da tirinha com a crítica ao excesso de consumismo, gostei muito. Recomendo um livrinho maravilhoso, "Em busca do Sentido, um psicólogo num campo de concentração', de Viktor Frankel, trata disso de forma radical, pois ele viveu 4 anos em Aushuwitz. Vale a pena.


José Flávio disse...
Maria, gostaria de te agradecer, primeiramente, por ter me enviado as tirinhas do Bill Watterson, e também pela dica de leitura que acabas de nos dar.

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