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Um inferno chamado Venezuela

Posted by Cottidianos on 01:11

Quarta-feira, 27 de fevereiro



 Na década de 80, um programa humorísitico da Globo apresentou em um de seus quadros uma anedota debochando do sorriso mais famoso do mundo: o belo e enigmático sorriso da Monalisa de Leonardo da Vinci.

O humorista chegava a um museu, e diante da pintura do famoso pintor, começava a elencar fatos e tragédias que marcaram a humanidade.

Não dá para lembrar exatamente do texto na íntegra, mas era mais ou menos assim:

“Veio a primeira Guerra Mundial... e ela sorrindo. Veio a Segunda Guerra Mundial... e ela sorrindo. Veio o naufrágio do Titanic... e ela sorrindo. Em seguida o ator concluia: só pode ser uma idiota”.

O mesmo se pode dizer do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Enquanto a venezuela mergulhava no caos, com metade das crianças abaixo de cinco anos desnutridas, Maduro aparecia en vídeos dançando salsa em eventos de seu partido e em em programas de TV em seu país, e jantando em restaurante de luxo em Istambul, Túrquia.

Também nesse caso, a conclusão é óbvia: só pode ser um idiota.

Não foi à toa que um bombeiro, compatriota de Maduro, postou, em setembro do ano passado, nas redes sociais, um vídeo no qual aparece um burro a quem o homem chama de presidente Maduro.

O burro é conduzido para dentro do quartel por um homem com uniforme de bombeiro, enquanto o que filma a cena vai narrando como se o burro estivesse fazendo uma inspeção na unidade, e estivesse sendo conduzido por quem narra a cena. No vídeo o burro para e começa a comer grama, enquanto o homem diz rindo: “…“Como podem ver, ele próprio está verificando as condições da grama (…), é a única boa que temos aqui”.

Os bombeiros Ricardo Pietro, 41 anos, e Carlos Váron, 45, foram presos após a divulgação do vídeo. O fato aconteceu no estado de Mérida, região dos Andes venezuelanos.

Brincadeiras à parte, o fato é que o mundo está preocupado com o que acontece na Venezuela. A verdade é que a situação por lá está caótica faz tempo. Mas foi de uns meses para cá que as coisas se agravaram e muito.

Principalmente depois que Juan Guaidó, presidente da Assembléia Nacional da Venezuela e lider da oposição, se declarou presidente interino da Venezuela, no dia 23 de janeiro deste ano.

De lá pra cá a situação política na Venezuela que já era um balaio de gatos, teve os gatos em seu balaio triplicados.

O mundo se dividiu entre aqueles que reconhecem e os que não reconhecem Guaidó como presidente. Sendo os primeiros a grande maioria.

O pior é que além do sadismo de Maduro, ele ainda tenta tapar o sol com a peneira, ou empurrar a sujeira para debaixo do tapete a fim de dar a impressão de casa limpa.

Da última vez que vez isso aconteceu acabou sobrando foi para um dos maiores expoentes do jornalismo mexicano: Jorge Ramos, do canal hispâncio norte-americano Univision. A entrevista foi agendada previamente, tudo como manda o figurino.

O hábil Jorge Ramos foi conduzindo a entrevista para as águas sujas que o líder venezuelano tenta fingir que são águas claras e límpidas: tortura, presos políticos, falta de democracia na Venezuela. Maduro então já começou a dar sinais de que não estava gostando nenhum pouco daquela entrevista.

O repórter foi mais fundo ainda: mostrou a ele um vídeo no qual aparecia um grupo de jovens comendo restos de comida tirados de um caminhão de lixo.

Essa cena lembra um clássico da poesia brasileira, chamada, O Bicho, de autoria de Manuel Bandeira. Permitam os leitores inserí-la aqui, pois o contexto é propício, e não atrapalha a leitura, ao contrário, acrescenta:



O bicho



Vi ontem um bicho

Na imundice do pátio

Catando comida entre os detritos.



Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.



O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.



O bicho, meu Deus, era um homem



Manuel Bandeira



Voltando ao texto.

Já havia decorrido uns dezessete minutos da entrevista, e, se a entrevista conduzida pelo jornalista que mostrava a realidade aspera do atual quadro político da Venezuela já era demais para Maduro, a apresentação do vídeo então foi a gota d’água. O presidente, abruptamente, levantou-se e foi embora.

Imediatamente, Jorge Rodriguez, ministro das Comunicações da Venezuela, dirigiu-se à equipe de reportagem e disse que a entrevista havia acabado e que a Univision não tinha autorização para exibi-la. Os seguranças então apreenderam a câmera e as gravações que haviam sido realizadas pela equipe, e retiveram também os celulares. Além disso, a equipe teve que ficar no Palácio Miraflores por cerca de duas horas.

Quanto a Jorge Ramos e a produtora, María Guzmán, foram tirados deles, os celulares, a mochila com objetos pessoais, e o colocaram os dois em separado, em uma sala da segurança, com as luzes apagadas. Nesta terça-feira, 26, a equipe de jornalistas da Univision foi deportada para os Estados Unidos pelo crime de ter feito perguntas incomodas a Nicolás Maduro.

O bom jornalista não perde a oportunidade de registrar um fato, mesmo em momentos delicados como esse. Foi o que aconteceu com um jornalista da Telemundo Notícias que estava no hotel onde a equipe vigiada pelos seguranças do governo também estava. Ele resolveu filmar a movimentação que ocorria no hotel. Resultado: também foi preso e passou cerca de 7 horas detido e incomunicável.  

No último fim de semana a situação ficou bastante tensa nas fronteiras da Venezuela com o Brasil e com a Colômbia. Tudo isso porque é sabido que a Venezuela vive sob um tripé de madeira podre: grave crise econômica com índices econômicos rasteiros, grande instabilidade política, e altíssimos índices de violência.

Esse conjunto de fatores jogou o país numa crise humanitária sem precedentes. Faltam produtos de primeira necessidade e medicamentos. Isso, aliado ao desemprego e a própria dureza do regime tem feito com que milhões de venezuelanos deixem sua pátria e procurem abrigo e melhores condições de vida em outros países.

Segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM) já são 3,4 milhões o número de refugiados e migrantes venezuelanos em todo o mundo.

Ainda segundo esses dois órgãos internacionais quem abriga o maior número de venezuelanos que deixaram o país é a Colômbia por cujas fronteiras já atravessaram mais de 1,1 milhões de compatriotas de Maduro. Em segundo lugar vem o Peru com 506 mil. Completando a lista vem a seguir; Chile, 288 mil; Equador, 221 mil; Argentina, 130 mil; e Brasil, 96 mil.

Os refugiados e migrantes da Venezuela também procuram países como México e países da América Central e do Caribe que também receberam um número significativo de pessoas que fugiram do regime opressor imposto por Nicolás Maduro.

Os caminhões com ajuda humanitária que tentaram chegar à Venezuela tinha uma dupla finalidade: atingir a população venezuelana carente de comida e remédios, e, ao mesmo tempo desmoralizar o governo de Maduro, mas este não cedeu. As forças militares do governo fecharam as fronteiras, usaram de muita violência, e a ajuda humanitária não pode chegar atingir o seu alvo.

Caminhões com mantimentos foram incendiados na fronteira com a Colômbia, e os que saíram do Brasil também foram impedidos de entrar no país vizinho. Houve confrontos entre manifestantes pró e contra maduro que resultou em mortes e centenas de feridos. Em meio à confusão, mais de 60 militares da Venezuela fugiram para a Colômbia. O lado brasileiro também recebeu desertores.

O que todo mundo quer evitar é uma intervenção militar na Venezuela, até porque não se sabe como isso poderia terminar. Certamente, não terminaria nada bem. Poderia até haver derramamento de sangue e mais vidas inocentes seriam tombadas.

A quem amam os ditadores? Ao povo? A pátria? Os ditadores não amam nem ao povo, nem a pátria, eles amam apenas a si mesmos e aos seus interesses mesquinhos e sua sede imensurável de poder e grandeza. O poder que eles almejam possuir não é para servir, mas para serem servidos. Governam matando, massacrando, humilhando, e quem governa assim não governa, presta um desserviço, não apenas ao território que governam, mas a humanidade inteira.

Se a Venezuela vive hoje um inferno, lembremos que também no reino das trevas há um demônio que domina, e esses seres são difíceis de derrubar. Tarefa difícil, porém, não impossível.

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Ricardo Boechat: Uma voz que se cala

Posted by Cottidianos on 23:43

Terça-feira, 11 de fevereiro
A vida é breve como um jogo,
Com suas regras, suas leis,
Injustiças e malogros,
Muitos perdem sua vez.
É ganhar ou perder,
É lutar pra viver
(Breve como um jogo – Tribo de Jah)

Ricardo Boechat

Cada texto é um mergulho num mar de palavras e sentimentos intensos. Aliás, tudo que envolve opiniões, sentimentos, conflitos, e que brotam do fundo das regiões conhecidas ou desconhecidas do santuário que é a consciência individual de cada ser, deve ser profundo.
Mesmo por que os raciocínios superficiais não alcançam a consciência cósmica de onde brotam todos os bons fluídos que descem sobre cada homem e mulher que desejam fazer de suas vidas algo mais que um simples lago de águas paradas, mas um imenso mar de amor, beleza, e verdade.
Já notou o leitor, ou leitora deste blog que ele não costuma abordar tragédias. Até que este vos escreve pensou em escrever um texto semelhante ao anterior, cujo título foi, mistérios do mar da vida. Até foi pensado o primeiro parágrafo: “Ah, as tragédias.”
Mas isso seria como se posicionar a beira de um rio de águas turbulentas e nele mergulhar de cabeça, deixando o corpo imergir naquelas águas frias e nebulosas.
Em todo escrito que pretenda, de fato, dizer algo de positivo e substancial, primeiro mergulhou o autor, e em seguida, aqueles que, com os olhos e o pensamento percorreram aquelas linhas.
E se, ambos, autor e leitor, mergulham em águas claras e cristalinas é certo que também nos elementos naturais há uma vibração positiva, daquelas que iluminam a alma e aquecem o coração, esse efeito, por certo é transmitido àquele que se banha nessas águas. Então a imersão e fluidez naquelas benditas águas também servem como balsamo para o corpo. Traz sorriso aos lábios e paz ao coração.
Ao contrário, o que colhe quem mergulha num mar de tristeza? Serão boas as vibrações que trará de lá? Fica o leitor convidado a refletir sobre essa questão e para ela encontrar uma resposta.
É certo que no mundo da informação, num mundo midiático, há milhões de pessoas ávidas por ouvir falar de desgraças e ver imagens de tragédias e acidentes. Há programas especializados nisso. Na televisão brasileira há uma boa quantidade deles.
Não há como escapar de, ao passear pelos canais, toparmos com alguns deles. Também os telejornais que envolvem assuntos diversos são obrigados a dar notícias de desastres e infortúnios. Às vezes, não conseguimos escapar de tais fatos. São notícias, e no final de contas, queremos saber o que houve, o que ocorreu.
Mais daí a mergulhar de cabeça nestes programas especializados em tragédias, crimes, assassinatos, e roubos há uma grande diferença. Às vezes podemos molhar um dedo ou outro nestas águas, ou até mesmo a mão, mas ao sair dali podemos lavá-las... E seguir em frente.
Este blog mesmo já falou delas algumas vezes, entretanto, sem dar, nesse triste mar, aquele mergulho que submerge a alma e o coração.
Não sei ao certo com quanta profundidade o autor deste blog mergulha neste mar de palavras e sentimentos. Não sei se muita ou se pouca, ou se talvez nenhuma, mas pelo menos procura não se manter na superficialidade.
Também não sabe quanta profundidade os leitores e leitoras sentem nestes textos. Ou se é que sentem nas palavras aqui colocadas alguma agudeza. Enfim, o conhecimento, o sentimento, a agudeza são mares tão vastos, que se algumas destas gotas servirem para, pelo menos refrescar a mente dos que lêem as palavras aqui postas, então já terá valido a pena imergir neste vasto rio corrente que vai dar no mar e que é a palavra, pensada, dita, escrita.
Mesmo não querendo falar de tragédias, como disse acima somos atingidos por elas na forma de querer saber, e do sentimento de tristezas que elas no geram. O sofrimento alheio nos toca, e nos toca porque o alheio é um outro de nós, tem os mesmo sonhos, vive, respira, e sente a necessidade de ser tanto quanto cada um de nós. Afinal os diversos meios de comunicação que nos circundam vivem de notícias e nós precisamos saber delas, mesmo as ruins.
E no Brasil, no início deste ano, eles, os infortúnios, tem se sucedido um após outro. Primeiro foi Brumadinho com suas centenas de vítimas e um grande desastre natural — aliás, Brumadinho e Mariana são desastres que não só aconteceram como continuam a ocorrer todos os dias, uma vez que os rejeitos de minérios continuam a contribuir para a morte dos rios e ecossistemas.
Também houve a chuvarada forte que atingiu o Rio de Janeiro e deixou um rastro de destruição e vítimas fatais. Quando o Rio ainda tentava se recuperar deste desastre natural, veio o incêndio em um centro de treinamento do Flamengo, no qual dez jovens atletas morreram carbonizados pelas chamas terríveis.
Quando o Brasil ainda chorava e lamentava este triste incidente, eis que a morte, resolve aparecer, assim de surpresa e levar um dos grandes nomes do jornalismo, Ricardo Boechat.
O dia de hoje, 11 de fevereiro, começou normal para Boechat. Ele apresentou o jornal na Band News. Ao termino do programa veio à Campinas onde participou de um evento promovido pela indústria farmacêutica Libbis, onde proferiu palestra sobre ética no trabalho. A participação de Boechat ocorreu logo no início do evento. Por cerca de uma hora, ele entrevistou o presidente da empresa sobre o tema citado. O evento teve como palco o hotel The Royal Palm Plaza.
Encerrada sua atividade em Campinas, por volta do meio dia, o jornalista embarcou em um helicóptero em direção à capital, São Paulo. Mas o destino, o cruel destino, não quis que o jornalista chegasse ao destino. Nem ele, nem o piloto do helicóptero.
Chegando a São Paulo, a aeronave apresentou problemas. O piloto, Ronaldo Quatrucci, sócio proprietário da empresa que fazia o transporte, ainda tentou um pouso forçado, no Km 7, próximo ao acesso à Rodovia Anhanguera. Não teve êxito, porém, e aeronave se chocou contra um caminhão, soltou algumas peças, caindo alguns metros mais adiante.
O jornalista, Ricardo Eugênio Boechat, 66 anos, e o piloto da aeronave, Ronaldo Quatrucci, morreram na explosão. A cabine do caminhão, parte atingida pelo helicóptero, ficou destruída, entretanto, o motorista escapou ileso, apenas com alguns arranhões.
Os apresentadores da rádio BandNews, Eduardo Barão e Carla Bigatto, que apresentavam, ao vivo, o jornal naquele horário, e a editora-executiva do programa, Sheila Magalhães, bastante abalados, não conseguiram segurar as lágrimas ao dar aos ouvintes a triste notícia. A programação da radio foi suspensa por alguns minutos enquanto os que faziam a rádio naquele momento se refaziam do baque.
O Brasil chora e lamenta a morte de Boechat, porém, certamente, os anjos não devem ter deixado que ele sofresse na alma as terríveis conseqüências do acidente. Além do excelente e competente jornalista, Boechat também era citado pelos amigos como sendo uma pessoa generosa e disposto a ajudar aos que estavam em dificuldades.
Pessoas assim, com o coração cheio de beleza e bondade, até no último instante os anjos vem correndo e acolhem a alma daquele que desencarnou, e com ela entram nas moradas cheias de luz da corte celestial. Ali, para os que praticaram o bem haverá uma grande paz.
Boechat, o Brasil gostaria que você continuasse com seu estilo arrojado de dar notícias, e de falar sobre as coisas boas do Brasil, bem como criticar ferrenhamente o que acontece de errado por aqui. Mas, o acaso te surpreendeu e te levou mais cedo do que esperávamos.
Agora só nos resta dizer: descanse em paz!
Um blog cujo objetivo é informar não poderia deixar de prestar essa homenagem cujo objetivo era informar.
Boechat era apresentador do Jornal da Band, da rádio Bandnews, e também escrevia uma coluna na revista IstoÉ. Também já havia passado por grandes órgãos de comunicação da imprensa nacional. Foi vencedor de prêmios importantes do jornalismo. Um vencedor na vida.

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Mistérios e conflitos no mar da vida

Posted by Cottidianos on 00:04

Sábado, 09 de fevereiro
Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão se ficam
Quem vai quem foi...
Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada se apaixonou...
(Mistérios da Meia-Noite – Zé Ramalho)



 Ah, os conflitos!

Se pudessemos nos livrar deles seria tão bom. Mas não há como. Eles fazem parte de nossa natureza humana. Esses nossos embates internos são como molas propulsoras podendo tanto nos impelir para a vitória ou para o fracasso, para a glória ou para a derrota, para a alegria ou para a tristeza, e assim por diante. Tudo vai depender da maneira como os utilizamos, da forma com que lidamos com eles.
Tirem os conflitos dos homems e mulheres e já não teremos mais homens e mulheres, mas, sim, robôs, precisos, exatos, mas, frios e carentes de sentimentos. Essas guerrilhas, próprias do ser humano não tem nada a ver com o mundo moderno ou pós- moderno, seja lá como for que denominem os estudiosos dessa nossa tribo humana que habita a aldeia Terra localizada nos confins de uma imensidão chamada universo. Esses embates nasceram quando nasceu a humanidade.
Por certo, se intensificaram nos tempos modernos devido a grande explosão de ciência e tecnologia que tomou forma, principalmente, após a Revolução Industrial, que teve como cenário a segunda metade do século XVIII.
Diferente da Idade da Pedra, hoje os problemas do homem vão muito mais além do que decidir se acendem o fogo através do atrito entre duas pedras ou entre dois pedaços de madeira. Os tempos são outros, as preocupações do ser vivente também.
O interessante é que tudo tem origem no íntimo de cada ser. Até mesmo os grandes conflitos da história da humanidade, aqueles que envolveram uma ou mais de uma nação tiveram como origem o coração de cada homem ou mulher que dele tomou parte.
E assim fomos caminhando enquanto particípes de uma humanidade em formação que incorporou novos hábitos, novas formas de agir e pensar. Já ficaram bem para trás os tempos em que se acendia o fogo com os métodos arcaicos citados acima. Os tempos em que uma tribo se comunicava com outra através de sinais de fumaça já fazem parte de um passado que está exposto nos livros de história e na oralidade contada pelos antigos.
As tribos atuais usufruem das ondas eletromagnéticas, cabos de fibras óticas, computadores, noteboks, smartphones, além dos impressos, para se comunicarem umas com as outras. É muito mais fácil, rápido, e prático. A verdade é que vivemos na era da comunicação instantanea.
Entretanto, apesar de todo esse avanço nos mais diversos campos do conhcimento, da ciência, e da tecnologia, muitos seres humanos ainda trazem dentro de si ideias que estão mais para a medievalidade do que para os tempos modernos. Dependo do país que em que se encontre o vivente essa percepção se torna mais acentuada, o pensamento medieval é mais latente.
Isso porque o homem moderno sabe muito bem falar de investimentos na bolsa, de qual a forma mais rápida de propogação dos dados da Internet, dos saberes que adquiriu nas diversas áreas do conhecimento, mas quando se trata de questões fundamentais, daquelas que existem desde que o mundo é mundo e raça humana é raça humana, aí, a coisa complica, enrola, dá um nó cabeça.
E quais são esses bichos de sete cabeças que tanto dão nó na cabeças medievalescas dos pobres mortais?
Esses monstros, que podem ser resumidos a dois, e que nos desconcertam gravitam nos conceitos de início e fim, vida e morte, bem e mal: eles são a morte e o sexo.
A morte, por exemplo, é uma realidade. Aliás, é a única certeza do homem desde que ele nasce. Mas ela é tabu ainda em muitas sociedades. Isso porque a ideia de finitude nos assusta. Mesmo diante das promessas dos fundadores das diversas religiões que dizem que um mundo diferente, de realidades diferentes nos aguardam depois que nossa alma deixa o corpo, nem assim, a grande maioria se sente confortável diante desse mistério.
O outro assunto que deixa os humanos ainda meio atordoados e cheios de tabu é o sexo. Quantos problemas, neuroses, e até doenças são causadas por esse mistério que deveria ser encarado com tanta naturalidade como qualquer outra necessidade biológica.
E o tabu em relação ao sexo aumenta ainda mais, chegando muitas vezes ao cúmulo da intolerância, se aquele que o vive, vive de forma diferente da nossa. É o caso dos gays, léssbicas e transgêneros. “Credo em cruz, coisa do diabo”, saem por aí a apregoar em praças públicas e nos parlamentos os carolas.
No momento atual  brasileiro há um perigo de sair-se por aí a atirar pedras nesses seres tão humanos quanto nós, mas que são pregados na cruz do preconceito, simplesmente, por terem vindo ao mundo com uma natureza que difere da natureza da maioria.
A regra geral, o que manda o figurino é que homens gostem de mulheres e queiram com elas se casar, e vice-versa. Entretanto, eis a questão: As regras são ditadas por uma autoridade competente, ou estabelecidas de comum acordo por um grupo social. É uma coisa inventada pelos homens.
Já natureza humana é aquilo que é, é rebelde, é ela mesma, o que faz com que divirja dos padrões estabelecidos. Há naturezas diferentes e que não seguem o mesmo curso que a maioria dos mortais. É o caso de nascerem homens que gostam de homens, mulheres que gostam de mulheres, mulheres que não se sentem à vontade com o corpo feminino que tem, e homens que não se sentem bem com o corpo masculino com o qual nasceram.
No Brasil atual combater aqueles que carregam a cruz de possuir uma natureza diferente tem se tornado uma prioridade do novo governo e de sua equipe, alfinetados por um congresso extremamente conservador nessas questões, e abertamente liberal quando se trata de desnudar as riquezas dos cofres públicos e guarda-las em cofre próprio.
São os contrassensos a que está sujeita uma sociedade que mergulhou de cabeça na corrupção e dela não consegue sair. Talvez levantar a bandeira da moralidade sirva para encobrir a bandeira da imoralidade, para que mais imoralidade continue a ser praticada sem que ninguém incomode os do mundo político, uma vez que estão com as mãos prontas a jogar pedras em quem cujo pecado é ser diferente, e viver diferente.
Mas a questão do ser diferente no sexo, ou melhor, de ter vindo ao mundo com uma natureza sexual diferente isso não é coisa nova. Isso existe desde tempos imemoriais. Não é algo inventado por uma ideologia de esquerda, ou de direita, ou de centro, ou qualquer outra.
E assim, esse texto volta ao tema inicial, do qual nunca se afastou: os conflitos. Tanto a ficção quanto a realidade estão recheadas deles.

Tony Ramos e Bruna Lombrdi, na minissérie Grande Sertão Veredas
A questão dos trangêneros foi retratada numa das obras principais da literatura brasileira: O Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa. O visionário Guimarães Rosa, já em 1956, em meio a uma sociedade ainda mais conservadora do que a atual já mergulhava, através dos personagens Riobaldo e Diadorim, crias suas, no universo dos transgêneros e da homossexualidade. E o tema se torna ainda mais audacioso para a época por ser ambientado no sertão brasileiro — representado no romance, por Minas Gerais e Bahia — lugar em que o machismo é mais forte. A profissão dos dois personagens — jagunços — também os coloca num ambiente ainda mais fechado a relacionamentos homoafetivos e ainda mais quanto a questão da transgeneridade.
A obra é extensa, portanto, e, muito mais que apenas um romance regionalista, envolve temas universais e profundos, presentes no coração de qualquer homem que habite qualquer sociedade, tais como bem e mal, Deus e diabo. Entretanto, esse texto destaca a questão da sexualidade e do erotismo que permeia a relação de amizade entre os dois amigos.
Diadorim é o personagem chave do romance. Ele vive em um ambiente absolutamente masculino e é tratado como homem por quase toda a narrativa. Realiza e executa com perfeição as tarefas que o dia a dia de um jagunço exige. Ao final da trama é que se descobre que Diadorim não é um homem, e sim uma mulher que viveu o tempo todo, desde a sua meninice, um universo masculino.
Seu nome na verdade, era Maria Deodorina da Fé Bettancourt Martins. Uma menina que nunca se sentiu à vontade no corpo de menina. Que não sentia vontade de brincar de casinhas e bonecas, mas que, em seu coração, sentia o ímpeto de guerrear, de embrenhar-se no meio do mato, em busca de animais perdidos, ou de inimigos à espreita. Desde menina sentia-se que sua vocação era imergir nesse duro mundo masculino sem medo ou receio. Diadorim, quem diria, era transgênero.
Riobaldo, o personagem narrador do romance, também ele homem de lutas e batalhas, quando chegava perto de Diadorim era tomado de doçuras. Isso fazia nascer nele sentimentos contraditórios, uma vez que o amor entre dois homens no sertão nordestino, e, principalmente, entre dois jagunços, era, naquela época, e ainda hoje o é, um amor impossível. Nem sabia ele que sua paixão masculina era, na verdade, feminina.
Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana. Às vezes eu lavava a roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque eu achava tal serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com mais jeito, mão melhor. Ele não indagou donde eu tinha estado, e eu menti que só tinha entrado lá por causa da velha Ana Duzuza, a fim de requerer o significado do meu futuro. Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele ― tão bonitos braços alvos, em bem feitos, e a cara e as mãos avermelhadas e empoladas, de picadas das mutucas”, narra Riobaldo em um trecho do romance.
Imaginem os caros leitores os conflitos que tomaram lugar naqueles dois corações apaixonados. Ela uma mulher que não se sentia mulher. E ele um homem que pensava que estava apaixonado por outro homem. Na verdade, o corpo de Diadorim era de mulher, mas a alma, essa era toda homem.
Assim foi com Diadorim no mundo fantástico da literatura do mestre Guimarães Rosa, assim foi na vida real com Lourival.
Domingo (03) o Fantástico apresentou uma reportagem mostrando um caso curioso e intrigante, acontecido em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, caso esse que motivou a escrita do presente texto.
Era dia 05 de outubro de 2018, quando a areia do tempo na ampulheta de Lourival chegava ao fim. O idoso, de 78 anos, estava em casa naquele dia quando passou mal. Problemas do coração. Não deu tempo levar a um hospital e o homem teve um infarto fulminante. Familiares choravam a morte daquele que por tanto estivera com eles. Não sabiam que a história não acabava ali e que uma grande surpresa lhes estava reservada quando fosse realizada a autopsia.
A equipe de socorristas do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) compareceu ao local e deu o diagnóstico: morte natural. Levaram o corpo para o necrotério. Quando despiram o cadáver a equipe que realizava o serviço teve uma grande surpresa: Lourival, na verdade, não era um homem, e sim uma mulher. Uma mulher que passara uma vida inteira se escondendo por detrás de uma identidade masculina.
Exames feitos no cadáver revelaram na pele, na região das mamas marcas semelhantes a faixas, ou outras roupas apertadas que ele usava para esconder os seios.
E o que era o desfecho de um decurso natural da vida, tornou-se um grande enigma para a Polícia de Mato Grosso do Sul e para a família do falecido.
Este texto não tem elementos para que o leitor conheça em detalhes a história de Lourival, até porque, como já foi dito acima, os fatos relativos à vida dele estão ainda envoltos na nevoa do mistério, como atestam as forças policiais e os familiares que com ele conviviam.
Quem é, na verdade, Lourival? Quem são seus pais? Quem são os verdadeiros pais dos filhos por ele registrados com a primeira companheira? São peças de um quebra-cabeça que a polícia ainda não conseguiu montar, e por isso, o corpo da mulher que se fez passar por homem a vida inteira, falecida há quatro meses, ainda não pode ser enterrado.
O que se sabe é como partes de um quebra-cabeça espalhadas em cima da mesa para que o monte de peças ganhe um rosto, uma forma.
Há 50 anos, Lourival conheceu a companheira, chamada Maria Olina de Souza Apollo, em Goiânia, Goiás. Nesta cidade, o casal registrou quatro filhos. Resolveram então mudar-se para Ituverava, interior de São Paulo.
Como em muitos casamentos por aí afora, foram surgindo as desavenças, e o casal se separou. Os quatro filhos ficaram com Maria Olina, e Lourival seguiu sozinho para Cuiabá, em Mato Grosso. Em Cuiabá, Lourival conheceu uma cuidadora, que, com o decorrer do tempo também se tornou sua companheira. O casal resolve então mudar-se para Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Em Cuiabá, tudo seguiu sem maiores empecilhos para os dois. Ele assumiu a filha da companheira e ainda adotaram um menino para completar a família. Na cidade, Lourival exerceu diversas atividades para ganhar o sustento de cada dia. Ele trabalhou como corretor de imóveis, pintor de paredes, e também chegou a trabalhar como médium em um centro espírita.
Para a sociedade, os dois talvez fossem reconhecidos como marido e mulher. Mas a verdade é que entre os dois parece ter havido mais uma relação de companheirismo e amizade. Um pacto, digamos assim. A cuidadora, apesar de viver todo esse tempo com Lourival, não sabia de sua dupla identidade, pois o mesmo nunca ficava nu em presença de outra pessoa, e sempre trancava a porta do banheiro ao tomar banho ou trocar de roupa.
Ele evitava médicos e hospitais, e, quando era necessário ir a algum médico, não permitia que estes lhe tocassem o corpo. Evitava também usar shorts, camisetas, ou qualquer outra vestimenta que pudesse dar alguma dica do segredo que escondia.
Foi somente quando o companheiro já estava doente que a cuidadora conseguiu dar banho nele, viu as faixas que ele sempre trazia amarrada aos seios, e descobriu o segredo guardado a sete chaves por tanto tempo. Porém, como havia feito a primeira companheira de Lourival, a cuidadora manteve o segredo guardado.  
Mais uma vez pode o leitor, imaginar o drama vivido por essa mulher durante tanto tempo. Nascida num corpo de mulher, mas que em um determinado momento da vida, descobriu que nele não se encontrava e nem se sentia à vontade. Que angústias devem ter vivido? Quantos sustos? Quantos medos de ser descoberta?
Diadorim e Lourival: eis mais uma vez a vida imitando a arte nesse caldeirão de conflitos, fantasias, sonhos, esperanças, que é o coração humano.

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