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O poder do amor

Posted by Cottidianos on 13:07
Domingo, 27 de maio

Enquanto o país tenta ensaiar uma volta à normalidade depois da semana conturbada que passou, com greve dos caminhoneiros, greve que ainda não se dissipou de todo, e com falta de combustíveis, e de alimentos nos supermercados e feiras-livres, este blog foge um pouco de tudo isso para falar do sublime sentimento do amor, que deveria ser o combustível a alimentar e mover o mundo. Certamente, isso nos proporcionaria uma era de excelência nas relações humanas e de paz entre as nações.

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Se a solidão for demais
E em teu coração não sentires a paz
Eu quero estar bem perto
Como alguém que torce por teu bem
Como ponte sobre as águas turvas
Hás de me encontrar
Como ponte sobre as águas turvas
Hás de me encontrar
(Ponte Sobre Águas Turvas (Bridge Over Troubled Water)
Paul Simom – Versão Pe. Zezinho
CD – Francisco e Clara, o musical)


O poder do amor




Como uma brisa que acaricia as folhas de uma árvore frondosa na mata selvagem, ou tal qual a folha que vaga tão suave ao vento que mais parece uma bailarina a dançar os clássicos dos clássicos da música universal, ou como o vento que sopra vigoroso sobre as ondas, assim é o amor.

São belas e sonoras as palavras do apóstolo Paulo aos Coríntios, palavras estas que atravessaram os tempos e vieram ecoar em nossos ouvidos. Dizia ele àquela comunidade que mesmo que nós tivéssemos as línguas dos homens e dos anjos, mas não tivéssemos o amor seríamos apenas como o metal que soa ou como o sino que repica. E ainda que se nós tivéssemos o dom da profecia, e se conhecemos todos os mistérios da ciência, e se tivéssemos uma fé tão grande que fosse capaz de transportar os montes, mas não tivéssemos amor, isso de nada nos adiantaria.

Quando ainda nem existíamos foi o amor que nos gerou. E quando ainda éramos crianças muito pequenas a necessitar de cuidados foi o amor que nos cuidou, mesmo tendo ele mesmo que perder noites de sono, ou ter o sono interrompido ao menor sinal de nosso choro fosse por qual motivo fosse.

E quando fomos crescendo tal qual planta frágil a precisar daquele toque de jardineiro a fortalecer lhe a raiz para que ela entrasse solo adentro a buscar nutrientes a fim que crescesse forte e vigorosa a ponto de dar frutos apetitosos que saciasse a fome daquele que estava faminto, e que, ao viajante permitisse encontrar debaixo de suas copadas o refresco e animo para revigorar as forças e prosseguir a caminhada foi o amor que nos proporcionou tudo isso.

Este nobre sentimento foi a tônica dos discursos de todos os grandes líderes religiosos desde tempos imemoriais. Nenhum deles pregou o ódio e a violência. Se alguma “religião” hoje em dia prega esses sentimentos nocivos com certeza esses ensinamentos não vêm da força divina que rege o universo, mas tão somente de falsas interpretações dos livros sagrados e do egoísmo que ecoa alto nos seguidores de tais ensinamentos.

O amor é como uma força motriz que impulsiona o mundo e dá aos fracos o poder de se tornarem fortes quando o perigo ameaça àqueles de quem se gosta ou por que se tem grande estima.

A quem amam os corruptos, os maus e os violentos senão a si mesmos? A quem querem eles ajudar senão a si mesmos? E fazendo assim eles se tornam como a semente que apodrece dentro da terra antes mesmo de nascer.

Os corações iluminados ao contrário não podem apodrecer dentro da terra sem que tenham, ao menos, brotado. Eles sentem a mesma necessidade que sente a semente sadia: querem brotar, crescer, florescer e frutificar.

Assim como o amor, comparado às flores, precisa do sol para que desabroche em cores vivas e com grande esplendor, assim o ódio precisa de maus sentimentos para que cresça cada vez mais tenebroso.

Há tempos a sociedade vive uma encruzilhada: ao mesmo tempo em que avançam as grandes inovações e mudanças nos campos da ciência e da tecnologia, parece haver um retrocesso nos campos moral, ético, e em todas as áreas do comportamento. Para não desmentir esse pensamento vemos a grande quantidade de gente sem caráter no executivo e legislativo, congresso esse que também é um reflexo da sociedade brasileira.

A rede mundial de computadores também é palco de dualidades, uma vez que, ao mesmo tempo em que nos proporciona manter contato com pessoas do mundo inteiro, dando às informações uma celeridade nunca vista antes na história da humanidade, e realização de um número incontável de campanhas filantrópicas, também permite que por trás da tela de um computador se escondam mentes perturbadas e dispostas a semear e fazer o mal.

Na religião não é diferente. Também nela a via de dualidade está presente. Enquanto a maioria dos diferentes credos religiosos se utiliza do religare para promover a vida, outras minorias a utilizam para, em nome de Deus, matar e destruir vidas.

Também por causa de todas essas contradições não devemos julgar a exceção como se fosse o todo. Todas as maravilhas da ciência e da tecnologia devem e podem ser bem aproveitadas pelo homem. Bem como a religião deve ser um caminho que leve a Deus, desde que se entenda que também há outros caminhos e crenças que também levam o homem, ou a alma deste, ao mar de amor infinito. Pois o que, normalmente se vê por aí é um grupo religioso se afirmar como o único caminho para o infinito, muitas vezes, agredindo, ferindo, e humilhando aqueles que seguem outra estrada na esperança de encontrar o mesmo Deus infinito.

Quando os homens compreenderem que o amor não morre nunca, e que ele é tão eterno quanto o autor da criação. Quando compreenderem que ele é capaz de sobreviver a todas as vicissitudes da vida, então saberão que esse nobre sentimento são as asas libertadoras que permitem ao homem transpor as barreiras do tempo e da eternidade, asas que o tornarão livre para viverem sua maior vocação que é o amor e a caridade.

Quando também os homens vislumbrarem que o ódio e a maldade são como sanguessugas pequenas que se alimentam de maus sentimentos e, nesse alimento, encontram forças para crescer, e quando compreenderem que esses mesmos sentimentos são como grossas correntes a prender os que odeiam e fazem o mal nas moradas escuras e tenebrosas da eternidade sem nunca poderem experimentar a liberdade, apenas a solidão da prisão em que eles próprios se enredaram, então quererão fugir destes sentimentos, como diz o ditado popular, “como o diabo foge da cruz”.

Falando de amor, na manhã de sábado, dia 19 de maio, o mundo acompanhou o casamento do príncipe Harry com a atriz Meghan Markle. Uma história de amor que mais parece contos de fada parecido com o de qualquer moço e moça que se descobrem apaixonados e que desejam imergir suas emoções na doce taça do vinho da felicidade.

Seria igual se Harry não representasse uma instituição: a realeza britânica. Aí tudo muda de figura, com direito, inclusive, a transmissão ao vivo para o mundo inteiro.

Chamou bastante atenção nesse casamento o protagonismo que noivo e noiva deram aos negros através do canto e da própria cerimonia religiosa. Esse protagonismo não é por acaso: a noiva é filha de uma afro-americana, e descende de escravos que trabalharam nas plantações de algodão, na Geórgia, Sul dos Estados Unidos. Uma árvore que assume as próprias raízes, ao invés de renega-las, só tem por destino elevar sua copada em direção ao alto e à luz. Ambos, noivo e noiva deixavam transparecer a felicidade em seus semblantes. Sinal de que o amor estava presente naquela cerimonia.

O reverendo Michael Bruce Curry, um pastor negro da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, convidado pelo casal para proferir a homilia daquela data solene que marcaria suas vidas, fez um discurso que abordou o tema do qual trata esta postagem: o amor, e que merece ser relembrado aqui.

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Homília do reverendo Michael Bruce Curry no casamento de Harry e Meghan Markle 





"Ponha-me como um selo em seu coração, como um selo em seu braço; porque o amor é tão forte quanto a morte, uma paixão sólida como a sepultura. Seus clarões são clarões de fogo, uma chama violenta. Muitas águas não podem apagar o amor, nem inundações podem afogá-lo.

Dr. Martin Luther King Jr. disse certa vez: ‘Precisamos descobrir o poder do amor, o poder redentor do amor. E quando descobrirmos isso, seremos capazes de fazer deste velho mundo um novo mundo. O amor é o único caminho.’

Há poder no amor. Não o subestime. Qualquer um que já tenha se apaixonado sabe o que eu quero dizer.  Mas pense no amor sob qualquer forma. Ser amado e expressar amor é bom. Há alguma coisa certa a respeito disso. E por um motivo.

Um antigo poema medieval diz: 'Onde houver o amor verdadeiro, o próprio Deus estará presente.' Na Bíblia, João diz isso da seguinte forma: 'Amada (o), vamos amar um ao outro porque o amor vem de Deus; todos os que amam são filhos de Deus. Aquele que não ama não conhece Deus Porque Deus é amor.'

Há poder no amor. O amor pode ajudar e curar quando nada mais pode. O amor pode levantar e liberar para a vida quando nada mais o fará. E o amor que aproxima duas pessoas é o mesmo amor que pode mantê-las juntas, seja no cume da felicidade ou nos vales da dificuldade.

O amor é forte como a morte. Seus clarões são clarões de fogo. Muitas águas não podem apagar o amor. O amor pode ver através de você. Há poder no amor.  Mas o amor do qual eu falo não é apenas para casais que se casam ou apenas para relações pessoais.

Jesus de Nazaré nos ensinou que o caminho do amor é o caminho para uma relação verdadeira com o Deus que criou todos nós, e o caminho para uma relação verdadeira com os outros como filhos de um único Deus, como irmãos e irmãs na família humana de Deus.

Um erudito disse isso da seguinte maneira: 'Jesus encontrou o mais revolucionário movimento da História humana: um movimento construído sobre o amor incondicional de Deus pelo mundo e o mandato para viver este amor' (Charles Marsh, 'The Beloved Community'). E ao fazer isso, mudamos vidas e o próprio mundo. Há um motivo para isso.

Um velho 'spiritual' pode sugerir por quê: 'Se você não pode pregar como Pedro,

E não pode rezar como Paulo, Você pode falar do amor de Jesus, Como ele morreu para nos salvar Há um bálsamo em Gileade Para curar os feridos Há um bálsamo em Gileade Para curar a alma doente do pecado. Apenas fale sobre o amor de Jesus, como ele morreu para nos salvar.'

Ele não sacrificou sua vida por si mesmo, por nada que pudesse ganhar. Ele fez isso pelos outros, pelo outro, pelo bem e o bem-estar de outros. Isso é amor. Como Paulo diz isso? O amor não é invejoso, rude ou arrogante O amor não busca os seus próprios interesses. O amor é altruísta, se sacrifica, é bom e justo.

O amor busca o bem e o bem-estar do outro. O amor cria espaço para que o outro seja. Esse amor, esse é o caminho de Jesus. E é o que muda o jogo. Imagine nossos lares e famílias quando esse caminho de amor é escolhido.

Imagine nossos bairros e comunidades quando o amor é o caminho. Imagine nossos governos e nossos países quando o amor é o caminho. Imagine os negócios e o comércio quando o amor é o caminho. Imagine o mundo quando o amor é o caminho.

Nenhuma criança iria para a cama com fome em um mundo como esse. A pobreza seria história em um mundo como esse. Nós trataríamos uns aos outros como filhos de Deus, sem prestar atenção nas diferenças. Nós aprenderíamos a largar nossas espadas e escudos à beira do rio e não estudaríamos mais a guerra. Haveria um novo céu, uma nova terra, um novo mundo. Uma nova e bela família humana.

Este é o sonho de Deus O amor é tão forte quanto a morte Seus clarões são clarões de fogo Muitas águas não podem apagar o amor".







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24 de maio: um dia de caos no Brasil

Posted by Cottidianos on 00:37

Sexta-feira, 25 de maio


Todos nós sabemos que na condição de seres humanos não somos uma massa vazia, sem funções e sem propósito.  Há em nosso organismo vários sistemas e subsistemas que nos ajudam a viver bem e saudáveis. Do funcionamento eficiente de todo esse conjunto de órgãos, tecidos, e nervos é que depende nossa saúde.
Um desses sistemas que auxiliam essa perfeita máquina criada pela natureza que é o corpo humano é o sistema circulatório formado pelo coração e pelos vasos sanguíneos. Ele é o responsável por distribuir nutrientes e oxigênio pelo corpo inteiro. Basta que haja no funcionamento desse sistema uma peça fora do lugar, como um entupimento nas artérias, por exemplo, para que logo se acenda uma luz vermelha em sinal de perigo.
Pensemos no Brasil como um grande organismo também cheio de sistemas. Nesse sistema circulatório campo e cidade seria o coração. As estradas, rodovias, ruas, e avenidas, os vasos sanguíneos e artérias que distribuem nutrientes e oxigênio por todas as partes desse imenso organismo.
Hoje se acendeu uma luz vermelha no sistema circulatório do país. Sinalizando que alguma coisa não anda bem, e que um exame mais detalhado da situação precisa ser feito. Um remédio precisa ser encontrado para sanar o problema.
Todo esse transtorno ocorre devido a uma paralisação feita pelos caminhoneiros em todo o território nacional. A paralisação começou na segunda-feira (21),inicialmente em apenas 10 estados da federação, e depois atingiu todo o país. A classe já havia ameaçado fazer a greve desde a semana anterior, se o governo federal não atendesse uma série de reivindicações feitas por eles.
O estopim do movimento foi o aumento nos preços do diesel. Na sexta-feira (18), a Petrobras havia anunciado um aumento de 8% nos preços do óleo diesel, e de 1,43% nos preços da gasolina. O quinto reajuste diário seguido no preço dos combustíveis irritou os caminhoneiros.
De acordo com Agência Nacional do Petróleo, do Gás Natural e dos Biocombustíveis (ANP), o preço do óleo diesel já acumula um aumento do 8% nas bombas, e 1,34% nas refinarias. Tudo isso acontece em meio a uma alta internacional no preço do petróleo.
Nesta quinta-feira (24), a paralisação teve seu dia mais crítico desde o seu início, quando, além do campo, as grandes cidades também viveram seu dia de caos.
A corrida aos postos de gasolina foi geral. Todos queriam abastecer seus veículos diante da incerteza do que pode acontecer nos próximos dias. Enormes filas se formaram. Houve confusão e desentendimentos entre os próprios clientes. O transito ficou caótico. Muitos postos fecharam por falta de combustível logo pela manhã. Outros fecharam à tarde.
Em diversas rodovias federais Brasil afora os caminhoneiros fizeram bloqueios e barricadas impedindo a circulação de veículos e aumentando ainda mais a situação caótica. Enormes filas de caminhões se formaram nessas rodovias provocando quilômetros de engarrafamento. Em alguns lugares, quem tentou furar o bloqueio teve pneus furados ou vidros quebrados, ou as duas coisas juntas.
Muito leite foi derramado pelos produtores, alguns porque simplesmente não tinham onde por o leite para que nova ordenha fosse feita. Outros por puro protesto, como foi o caso de agricultores em que derramaram leite em pleno asfalto em Minas Gerais e em Santa Catarina.
Nas grandes cidades a falta de combustíveis afetou a frota de ônibus fazendo com que as empresárias concessionárias do serviço reduzissem os veículos em circulação. Escolas e universidades não funcionaram, e muitos estabelecimentos comerciais, e órgãos do poder judiciário liberaram seus funcionários mais cedo do que o horário normal. Houve abusos por parte de muitos donos de postos que, aproveitando-se da situação de preocupação geral aumentaram em muito o preço da gasolina e do diesel.
Pairando acima desse cheiro de gasolina e diesel ainda há o medo do desabastecimento de produtos, coisa que também já ocorreu em alguns estabelecimentos comerciais. Muita gente correu para os supermercados em busca de mais alimentos para comprar e deixar estocados em casa com medo ou da alta desses produtos ou de que eles venham a faltar nos próximos dias.
O cenário preocupante é mais um tiro no pé do governo de Michel Temer, que tem se mostrado um governo cada vez mais fraco e impopular. O governo era sabedor de que toda essa situação estava para explodir hora ou outra e cruzou os braços. Não buscou soluções para o problema. Talvez não tenha realmente acreditado que os caminhoneiros fossem ter voz tão ativa na roda desse destino.
O pior é que as soluções apresentadas até agora pelo poder público vão de mal a pior, e ainda por cima podem aumentar ainda mais o rombo nos cofres públicos e endividar ainda mais a já tão endividada Petrobras, e o que pior, colocando a já tão abalada credibilidade da estatal deixando-a no vermelho em relação a confiança nos investidores.

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O sofrimento de Maria

Posted by Cottidianos on 13:50

Domingo, 13 de maio

Hoje, 13 de maio, coincide de o calendário juntar duas datas a ser comemoradas: o Dia das Mães e os 130 anos da abolição da escravatura. Para celebrar esses dois eventos especiais esse blog brinda aos leitores e leitoras com o conto, O Sofrimento de Maria, que fala do sofrimento e das alegrias de uma escrava negra chamada Maria, mãe do menino Emanuel.
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O sofrimento de Maria



Corria o ano de 1884.  O sol dourado descia por trás dos montes na Fazenda Engenho Novo pintando o horizonte de um amarelo-dourado que lembrava mais o ouro das minas do que a vida sofrida que levavam os escravos naquele pedaço de chão do agreste pernambucano. A natureza caprichosa parecia ter copiado os tons, sombras e cores de algum quadro de Van Gogh.
Pode, porém, o criador copiar a criatura? Mais provável é que o inverso aconteça. É mais natural que o famoso pintor, embevecido pela delicadeza da mãe natureza e pelo traço perfeito e inconfundível da força criadora do universo, tenha se posicionado com sua tela, tintas, e pinceis, em algum fim de tarde e, copiando a natureza, tenha se tornado ele mesmo criador.
Nenhum outro pintor soube captar tão belamente a energia e a luz da estrela central de nosso sistema solar como o fez Vincent Van Gogh. Sem ele, o sol, não haveria vida nessa via de expiação a que os humanos resolveram chamar de Terra.
Sem dúvida, derramar os olhos na imensidão daquela beleza de quadro pintado no horizonte, ajudava a aliviar o sofrimento da gente negra que dividia aquele espaço com os senhores de engenho, com seus filhos e filhas e demais familiares, e também com os feitores, sempre dispostos a castigar os negros à primeira ordem dos patrões. Para merecer esses castigos não era preciso grandes crimes: às vezes um copo de cristal quebrado bastava para que os escravos sentissem no corpo o peso das chibatas.
Ali naquele pedaço de chão encravado naquele pé de serra, em Belo Jardim, agreste pernambucano, a estrela central do funcionamento de toda aquela estrutura era a casa grande senhorial. Diferentemente do astro rei, se algum dia a estrela central daquele sistema opressor viesse a faltar, para os negros escravos sobraria ainda uma longa vida de liberdade a ser vivida e aproveitada com intensidade.
A casa grande do Engenho Novo, como quase todas as casas grandes daquela época, era construída na parte mais elevada do terreno. Isso porque a preocupação maior, herdada dos primeiros tempos da colônia, era mais com a segurança que com o conforto, se bem que não possa dizer que a casa grande daquele engenho fosse feia ou desconfortável, muito pelo contrário, a arquitetura da construção mais parecia com um castelo, internamente decorado com finas louças trazidas de viagens que os senhores de engenho faziam frequentemente ao exterior.
Nas proximidades da fortaleza ficavam; a senzala, ampla habitação coletiva, sem divisórias, que abrigavam escravos. Essa habitação sim, feita de madeira, não contava com conforto nenhum. Os escravos dormiam em esteiras, ou até mesmo no chão. Nela não havia banheiro ou coisa parecida. Quando os escravos queriam fazer suas necessidades fisiológicas, a mata era vastíssima para isso. Quando era necessário banhar-se, as águas dos rios e cachoeiras eram limpas e claras.
Na frente da senzala, e debaixo de um frondoso pé de juá, ficava o terror de todos os negros e negras que derramavam seu suor do nascer ao pôr do sol para o enriquecimento do patrão: o pelourinho, que nada mais era que um tronco onde os escravos eram amarrados e sofriam dolorosos castigos físicos. Muito sangue já havia escorrido naquele tronco, debaixo daquele juazeiro. Muitas vidas negras também já tinham sido tombadas naquele temido pedação de chão.
Nas redondezas da casa grande ficavam ainda o engenho onde a cana era transformada em açúcar, a casa de farinha, onde a mandioca era transformada em farinha, o paiol, e as instalações que funcionavam como uma espécie de escritório que geria toda aquela estrutura.
O banco onde era guardada a fortuna arrecadada era os cofres que se situavam dentro da casa grande, onde também eram guardadas as joias de propriedade da família senhorial.  Bem próximo à casa grande e a senzala ficava também a capela, onde os brancos faziam suas orações aos santos, e os negros, quando podiam entrar lá, pelo sincretismo faziam aos seus orixás, pedidos ardentes por liberdade.
Os ágeis pincéis do criador do universo já tinham feito sumir o amarelo dourado e, no lugar dele, pinçava alguns tons em um cinza forte e mais escuro. Era o manto da noite que caia suavemente sobre o Engenho Novo.
O sino da capelinha bateu anunciando às seis horas, chamando os devotos e devotas para a reza do terço. Dentro da sala da casa grande, as mãos delicadas da sinhazinha abriram uma partitura, se debruçaram sobre as teclas do piano, e começaram a entoar com perfeição e sentimento, a bela melodia escrita por Charles Gounod para a Ave Maria. A melodia, executada com tanta perfeição, pareceu ganhar vida e saindo pelas amplas portas e janelas, foi-se a correr pelos campos e ao pé da serra, divinizando ainda mais uma hora tão bela.
Enquanto na sala da casa uma canção ecoou, na mesma hora sexta, debaixo do pé de jucá, a mão do feitor desceu com o chicote na pele de uma negra, e um grito de dor ecoou dentro da recém-chegada noite.
Chegara a vez de a negra Maria sofrer os castigos corporais. Dos castigos corporais se diz por que das torturas psicológicas ela já sofria faz tempo, principalmente, há três anos, depois que chegara naquele engenho.
Lembrava-se de quando subira a ladeira em direção à senzala. Enquanto subia ficava a pensar no que a aguardava naquelas paragens. Já havia sido alertada por outros escravos, durante as negociações de sua compra no mercado de escravos, de que, na Fazenda Engenho Novo ficava um dos senhores de engenho mais cruéis da região. Não apenas ele, mas também a sinhá, esposa dele, era muito cruel e intolerante. Ao lembrar-se das coisas que os companheiros de cativeiro lhe haviam falado daquele lugar, sentiu um arrepio a lhe percorrer o corpo... E entregou-se nas mãos dos seus orixás e da sua homônima, a virgem Maria.
Apesar de jovem, tinha ela 22 dois anos de idade, em suas andanças pelas terras brasileiras já tinha ouvido muita coisa, nas senzalas, e nas salas da casa grande, pois, por diversas vezes, já trabalhara como escrava doméstica acompanhando as sinhazinhas em pequenos afazeres. Uma dessas coisas que ouvira foi de que os movimentos abolicionistas já estavam bem avançados, tendo inclusive diversos senhores de engenho já concedido liberdade a seus escravos. Em seu último trabalho em casa de um senhor de engenho no Rio de Janeiro, ela estava a limpar os cristais da cristaleira da sinhá, quando, discretamente, ouviu a conversa do patrão com um figurão bem próximo aos monarcas, de que a escravidão estava com os dias contados e que logo seria abolida em solo brasileiro.
Maria não tinha ido à escola, mas tivera a sorte de encontrar uma patroa que lhe ajudara a dar os primeiros passos no mundo das letras. Aprenderam um pouco, o suficiente para observar com mais atenção o mundo que a cercava e dele tirar suas conclusões.
Ao subir aquela leve ladeira que levava ao complexo casa-grande e senzala, pensou em como ainda havia gente de pensamento tão atrasado pelos recantos do Brasil, e ela tivera a infelicidade de cair nas mãos de um desses.
Enfim, começara a trabalhar na casa grande como escrava doméstica, auxiliando a sinhá e a sinhazinha em afazeres domésticos. Os filhos do patrão, um estava estudando na Europa e outro no Rio de Janeiro. Nesses três anos em que ela estivera trabalhando ali, só tivera oportunidade de vê-los duas vezes quando eles vieram em férias.
Tudo corria tranquilo para ela. Fazia o seu trabalho como houvera feito normalmente em outras casas senhoriais por onde passara. Porém, sua beleza não passou despercebida ante os olhos do patrão. Começou a sofrer investidas constantes. Na frente da patroa não fazia nada. Comportava-se. Porém, bastava que essa virasse as costas para que ele começasse a passar a mão pelos seus seios, suas coxas, e tocasse suas partes íntimas.
Maria sempre se esquivara e até mesmo ameaçara contar para a patroa os intentos do patrão, mas essa era uma mulher vingativa. A escrava tinha sabido conquistar a patroa, após observar-lhe os pontos fracos. Sabia que o ciúme que ela sentia do marido era do tamanho dos montes que circundavam o engenho e, por isso fugia das investidas do sinhô como o diabo foge da cruz.
Mas o homem era mesmo perverso. Certa vez, a sinhá foi ao Rio de Janeiro com suas filhas assistir ao espetáculo de uma famosa cantora parisiense que viera ao Brasil para um concerto no Teatro João Caetano. Elas estavam empolgadas com a vinda da cantora de quem gostavam bastante.
O sinhô logo pôs uma série de obstáculos para que Maria não as acompanhasse. Mentiu que estava doente e que iria precisar dos cuidados dela. Como ele era bom em convencer as pessoas, mesmo quando estava com más intenções, as três logo acreditaram nele.
Naqueles dias em que a patroa e filhas estiveram na capital do Brasil, as investidas do patrão tornaram-se ainda mais fortes. A escrava sempre dava um jeito de fugir dele, aproximando-se de outras pessoas, ou inventando outros artifícios.
Uma noite, porém, não teve como fugir. Ele colocou algo dentro de um chá de erva doce que ela frequentemente tomava antes de recolher-se à senzala. Completamente dopada e sem o uso de suas faculdades. Ele a levou para o quarto na casa grande e ali passou à noite com ela. Depois disso, a patroa retornou e Maria ficou em segurança pois junto da esposa e da filha, ele continuaria a ficar apenas nas ameaças.
Um mês depois, o pavor tomou conta de Maria. Ela descobriu que estava grávida e só podia ter sido naquela noite com o patrão. Mas ficou em silêncio sobre essa descoberta, pois se falasse alguma coisa, era bem capaz de a patroa pedir para o feitor sumir com o corpo dela em algum lugar escondido na mata.
Certa feita, o patrão aproximou-se dela com segundas intenções e ela, perdendo a cabeça, lhe deu um tapa no rosto. Foi o suficiente para o furor dele contra a escrava crescer. Esperou o momento certo, e, quando ela quebrou, acidentalmente, a taça de vinho preferida dele, e que havia sido trazido de Portugal, ele impiedosamente, mandou castiga-la no tronco.
E ali, estava ela, com o corpo ensanguentando. A Ave Maria que vinha do piano da sala da casa grande trazia-lhe certo alivio. Amarrada aquele tronco ela sonhava com a liberdade. Pensava nas palavras do fidalgo no Rio de Janeiro de que a escravidão logo acabaria. No desespero, pensava em mil maneiras de fugir para o quilombo. Agora tinha mais motivos ainda para pensar nisso. Ia ser mãe. Tinha de sair dali antes que a barriga começasse a crescer. Isso era urgente, a fuga. Era um filho que fora concebido de forma indesejada, e de um homem de quem não gostava, mas era seu filho, estava na sua barriga e ela o estava gerando. Tinha de amá-lo e cobri-lo de carinhos. Já tinha visto outras escravas fazerem aborto, mas isso além de arriscado, ia contra seus princípios.
Um mês depois dessa noite horrorosa passada no tronco. Ela finalmente conseguiu fugir. O plano foi simples. Um dia em que o feitor relaxou na vigilância, ela inventou de ir ao riacho lavar algumas roupas da patroa, e de lá, desapareceu na mata para nunca mais voltar. Foi bem acolhida entre os irmãos quilombolas. Seis meses depois dava à luz a um menino e lhe pôs o nome de Emanuel.
E, no quilombo ensinou ao menino que um homem deve fazer da liberdade o seu farol, o seu Norte na vida, e que de gaiolas, nem os pássaros gostam. Passou ao filho o que sabia do mundo das letras para que ele não crescesse na ignorância delas e que soubesse conversar até com os doutores que dele se aproximassem.
Junto de Emanuel, Maria experimentou o amor sem limites, a gratuidade do amor. Era mãe, e mãe não mede esforços nem sacrifícios quando se trata de cuidar e proteger o filho.
Poucos anos mais tarde, se cumpriu o que o fidalgo fluminense havia profetizado em casa de um antigo patrão dela. Era 13 de maio de 1888, a escravidão no Brasil havia sido abolida. Houve festa no quilombo e por todo o Brasil o tambor tocou em comemoração a esse fato.
Um sorriso iluminou o lindo rosto de Maria, ao olhar o filho correndo para lá e para cá, junto com as outras crianças negras do quilombo, seus companheiros de brincadeiras. Eles cresceriam num país de homens livres. Não sabia ela, que por muito tempo ainda o negro ainda carregaria o estigma do preconceito e da discriminação.
Quem sabe algum espírito santo ainda venha e pouse sobre os homens e liberte os preconceituosos de seus próprios preconceitos, assim como os negros foram libertos da escravidão.

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