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Mistérios e conflitos no mar da vida
Posted by Cottidianos
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Sábado, 09 de fevereiro
“Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão se ficam
Quem vai quem foi...
Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada se apaixonou...”
(Mistérios da Meia-Noite – Zé Ramalho)
Se pudessemos nos livrar deles
seria tão bom. Mas não há como. Eles fazem parte de nossa natureza humana.
Esses nossos embates internos são como molas propulsoras podendo tanto nos
impelir para a vitória ou para o fracasso, para a glória ou para a derrota,
para a alegria ou para a tristeza, e assim por diante. Tudo vai depender da
maneira como os utilizamos, da forma com que lidamos com eles.
Tirem os conflitos dos homems e
mulheres e já não teremos mais homens e mulheres, mas, sim, robôs, precisos,
exatos, mas, frios e carentes de sentimentos. Essas guerrilhas, próprias do ser
humano não tem nada a ver com o mundo moderno ou pós- moderno, seja lá como for
que denominem os estudiosos dessa nossa tribo humana que habita a aldeia Terra
localizada nos confins de uma imensidão chamada universo. Esses embates
nasceram quando nasceu a humanidade.
Por certo, se intensificaram nos
tempos modernos devido a grande explosão de ciência e tecnologia que tomou
forma, principalmente, após a Revolução Industrial, que teve como cenário a
segunda metade do século XVIII.
Diferente da Idade da Pedra, hoje
os problemas do homem vão muito mais além do que decidir se acendem o fogo através
do atrito entre duas pedras ou entre dois pedaços de madeira. Os tempos são
outros, as preocupações do ser vivente também.
O interessante é que tudo tem
origem no íntimo de cada ser. Até mesmo os grandes conflitos da história da
humanidade, aqueles que envolveram uma ou mais de uma nação tiveram como origem
o coração de cada homem ou mulher que dele tomou parte.
E assim fomos caminhando enquanto
particípes de uma humanidade em formação que incorporou novos hábitos, novas
formas de agir e pensar. Já ficaram bem para trás os tempos em que se acendia o
fogo com os métodos arcaicos citados acima. Os tempos em que uma tribo se
comunicava com outra através de sinais de fumaça já fazem parte de um passado
que está exposto nos livros de história e na oralidade contada pelos antigos.
As tribos atuais usufruem das ondas
eletromagnéticas, cabos de fibras óticas, computadores, noteboks, smartphones,
além dos impressos, para se comunicarem umas com as outras. É muito mais fácil,
rápido, e prático. A verdade é que vivemos na era da comunicação instantanea.
Entretanto, apesar de todo esse
avanço nos mais diversos campos do conhcimento, da ciência, e da tecnologia,
muitos seres humanos ainda trazem dentro de si ideias que estão mais para a
medievalidade do que para os tempos modernos. Dependo do país que em que se
encontre o vivente essa percepção se torna mais acentuada, o pensamento
medieval é mais latente.
Isso porque o homem moderno sabe
muito bem falar de investimentos na bolsa, de qual a forma mais rápida de
propogação dos dados da Internet, dos saberes que adquiriu nas diversas áreas
do conhecimento, mas quando se trata de questões fundamentais, daquelas que
existem desde que o mundo é mundo e raça humana é raça humana, aí, a coisa
complica, enrola, dá um nó cabeça.
E quais são esses bichos de sete
cabeças que tanto dão nó na cabeças medievalescas dos pobres mortais?
Esses monstros, que podem ser
resumidos a dois, e que nos desconcertam gravitam nos conceitos de início e
fim, vida e morte, bem e mal: eles são a morte e o sexo.
A morte, por exemplo, é uma
realidade. Aliás, é a única certeza do homem desde que ele nasce. Mas ela é
tabu ainda em muitas sociedades. Isso porque a ideia de finitude nos assusta. Mesmo
diante das promessas dos fundadores das diversas religiões que dizem que um
mundo diferente, de realidades diferentes nos aguardam depois que nossa alma
deixa o corpo, nem assim, a grande maioria se sente confortável diante desse
mistério.
O outro assunto que deixa os
humanos ainda meio atordoados e cheios de tabu é o sexo. Quantos problemas,
neuroses, e até doenças são causadas por esse mistério que deveria ser encarado
com tanta naturalidade como qualquer outra necessidade biológica.
E o tabu em relação ao sexo
aumenta ainda mais, chegando muitas vezes ao cúmulo da intolerância, se aquele
que o vive, vive de forma diferente da nossa. É o caso dos gays, léssbicas e
transgêneros. “Credo em cruz, coisa do diabo”, saem por aí a apregoar em praças
públicas e nos parlamentos os carolas.
No momento atual brasileiro há um perigo de sair-se por aí a
atirar pedras nesses seres tão humanos quanto nós, mas que são pregados na cruz
do preconceito, simplesmente, por terem vindo ao mundo com uma natureza que
difere da natureza da maioria.
A regra geral, o que manda o
figurino é que homens gostem de mulheres e queiram com elas se casar, e
vice-versa. Entretanto, eis a questão: As regras são ditadas por uma autoridade
competente, ou estabelecidas de comum acordo por um grupo social. É uma coisa
inventada pelos homens.
Já natureza humana é aquilo que
é, é rebelde, é ela mesma, o que faz com que divirja dos padrões estabelecidos.
Há naturezas diferentes e que não seguem o mesmo curso que a maioria dos mortais.
É o caso de nascerem homens que gostam de homens, mulheres que gostam de mulheres,
mulheres que não se sentem à vontade com o corpo feminino que tem, e homens que
não se sentem bem com o corpo masculino com o qual nasceram.
No Brasil atual combater aqueles
que carregam a cruz de possuir uma natureza diferente tem se tornado uma
prioridade do novo governo e de sua equipe, alfinetados por um congresso
extremamente conservador nessas questões, e abertamente liberal quando se trata
de desnudar as riquezas dos cofres públicos e guarda-las em cofre próprio.
São os contrassensos a que está
sujeita uma sociedade que mergulhou de cabeça na corrupção e dela não consegue
sair. Talvez levantar a bandeira da moralidade sirva para encobrir a bandeira
da imoralidade, para que mais imoralidade continue a ser praticada sem que
ninguém incomode os do mundo político, uma vez que estão com as mãos prontas a
jogar pedras em quem cujo pecado é ser diferente, e viver diferente.
Mas a questão do ser diferente no
sexo, ou melhor, de ter vindo ao mundo com uma natureza sexual diferente isso não
é coisa nova. Isso existe desde tempos imemoriais. Não é algo inventado por uma
ideologia de esquerda, ou de direita, ou de centro, ou qualquer outra.
E assim, esse texto volta ao tema
inicial, do qual nunca se afastou: os conflitos. Tanto a ficção quanto a
realidade estão recheadas deles.
Tony Ramos e Bruna Lombrdi, na minissérie Grande Sertão Veredas |
A questão dos trangêneros foi retratada numa das obras principais da literatura brasileira: O
Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa. O visionário Guimarães Rosa, já
em 1956, em meio a uma sociedade ainda mais conservadora do que a atual já
mergulhava, através dos personagens Riobaldo e Diadorim, crias suas, no
universo dos transgêneros e da homossexualidade. E o tema se torna ainda mais
audacioso para a época por ser ambientado no sertão brasileiro — representado
no romance, por Minas Gerais e Bahia — lugar em que o machismo é mais forte. A
profissão dos dois personagens — jagunços — também os coloca num ambiente ainda
mais fechado a relacionamentos homoafetivos e ainda mais quanto a questão da
transgeneridade.
A obra é extensa, portanto, e,
muito mais que apenas um romance regionalista, envolve temas universais e
profundos, presentes no coração de qualquer homem que habite qualquer sociedade,
tais como bem e mal, Deus e diabo. Entretanto, esse texto destaca a questão da
sexualidade e do erotismo que permeia a relação de amizade entre os dois
amigos.
Diadorim é o personagem chave do
romance. Ele vive em um ambiente absolutamente masculino e é tratado como homem
por quase toda a narrativa. Realiza e executa com perfeição as tarefas que o
dia a dia de um jagunço exige. Ao final da trama é que se descobre que Diadorim
não é um homem, e sim uma mulher que viveu o tempo todo, desde a sua meninice, um
universo masculino.
Seu nome na verdade, era Maria
Deodorina da Fé Bettancourt Martins. Uma menina que nunca se sentiu à vontade
no corpo de menina. Que não sentia vontade de brincar de casinhas e bonecas,
mas que, em seu coração, sentia o ímpeto de guerrear, de embrenhar-se no meio
do mato, em busca de animais perdidos, ou de inimigos à espreita. Desde menina
sentia-se que sua vocação era imergir nesse duro mundo masculino sem medo ou
receio. Diadorim, quem diria, era transgênero.
Riobaldo, o personagem narrador
do romance, também ele homem de lutas e batalhas, quando chegava perto de
Diadorim era tomado de doçuras. Isso fazia nascer nele sentimentos
contraditórios, uma vez que o amor entre dois homens no sertão nordestino, e,
principalmente, entre dois jagunços, era, naquela época, e ainda hoje o é, um
amor impossível. Nem sabia ele que sua paixão masculina era, na verdade,
feminina.
“Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha roupa: duas
camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana. Às vezes
eu lavava a roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque
eu achava tal serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com mais
jeito, mão melhor. Ele não indagou donde eu tinha estado, e eu menti que só
tinha entrado lá por causa da velha Ana Duzuza, a fim de requerer o significado
do meu futuro. Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se
ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os braços dele ― tão
bonitos braços alvos, em bem feitos, e a cara e as mãos avermelhadas e empoladas,
de picadas das mutucas”, narra Riobaldo em um trecho do romance.
Imaginem os caros leitores os
conflitos que tomaram lugar naqueles dois corações apaixonados. Ela uma mulher
que não se sentia mulher. E ele um homem que pensava que estava apaixonado por
outro homem. Na verdade, o corpo de Diadorim era de mulher, mas a alma, essa
era toda homem.
Assim foi com Diadorim no mundo
fantástico da literatura do mestre Guimarães Rosa, assim foi na vida real com
Lourival.
Domingo (03) o Fantástico
apresentou uma reportagem mostrando um caso curioso e intrigante, acontecido em
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, caso esse que motivou a escrita do presente
texto.
Era dia 05 de outubro de 2018,
quando a areia do tempo na ampulheta de Lourival chegava ao fim. O idoso, de 78
anos, estava em casa naquele dia quando passou mal. Problemas do coração. Não deu
tempo levar a um hospital e o homem teve um infarto fulminante. Familiares choravam
a morte daquele que por tanto estivera com eles. Não sabiam que a história não
acabava ali e que uma grande surpresa lhes estava reservada quando fosse realizada
a autopsia.
A equipe de socorristas do Serviço
de Atendimento Médico de Urgência (Samu) compareceu ao local e deu o diagnóstico:
morte natural. Levaram o corpo para o necrotério. Quando despiram o cadáver a
equipe que realizava o serviço teve uma grande surpresa: Lourival, na verdade,
não era um homem, e sim uma mulher. Uma mulher que passara uma vida inteira se escondendo
por detrás de uma identidade masculina.
Exames feitos no cadáver revelaram
na pele, na região das mamas marcas semelhantes a faixas, ou outras roupas
apertadas que ele usava para esconder os seios.
E o que era o desfecho de um
decurso natural da vida, tornou-se um grande enigma para a Polícia de Mato
Grosso do Sul e para a família do falecido.
Este texto não tem elementos para
que o leitor conheça em detalhes a história de Lourival, até porque, como já foi
dito acima, os fatos relativos à vida dele estão ainda envoltos na nevoa do
mistério, como atestam as forças policiais e os familiares que com ele
conviviam.
Quem é, na verdade, Lourival?
Quem são seus pais? Quem são os verdadeiros pais dos filhos por ele registrados
com a primeira companheira? São peças de um quebra-cabeça que a polícia ainda não
conseguiu montar, e por isso, o corpo da mulher que se fez passar por homem a
vida inteira, falecida há quatro meses, ainda não pode ser enterrado.
O que se sabe é como partes de um
quebra-cabeça espalhadas em cima da mesa para que o monte de peças ganhe um
rosto, uma forma.
Há 50 anos, Lourival conheceu a
companheira, chamada Maria Olina de Souza Apollo, em Goiânia, Goiás. Nesta cidade,
o casal registrou quatro filhos. Resolveram então mudar-se para Ituverava,
interior de São Paulo.
Como em muitos casamentos por aí
afora, foram surgindo as desavenças, e o casal se separou. Os quatro filhos
ficaram com Maria Olina, e Lourival seguiu sozinho para Cuiabá, em Mato Grosso.
Em Cuiabá, Lourival conheceu uma cuidadora, que, com o decorrer do tempo também
se tornou sua companheira. O casal resolve então mudar-se para Campo Grande,
Mato Grosso do Sul.
Em Cuiabá, tudo seguiu sem
maiores empecilhos para os dois. Ele assumiu a filha da companheira e ainda
adotaram um menino para completar a família. Na cidade, Lourival exerceu
diversas atividades para ganhar o sustento de cada dia. Ele trabalhou como
corretor de imóveis, pintor de paredes, e também chegou a trabalhar como médium
em um centro espírita.
Para a sociedade, os dois talvez
fossem reconhecidos como marido e mulher. Mas a verdade é que entre os dois
parece ter havido mais uma relação de companheirismo e amizade. Um pacto,
digamos assim. A cuidadora, apesar de viver todo esse tempo com Lourival, não
sabia de sua dupla identidade, pois o mesmo nunca ficava nu em presença de
outra pessoa, e sempre trancava a porta do banheiro ao tomar banho ou trocar de
roupa.
Ele evitava médicos e hospitais,
e, quando era necessário ir a algum médico, não permitia que estes lhe tocassem
o corpo. Evitava também usar shorts, camisetas, ou qualquer outra vestimenta
que pudesse dar alguma dica do segredo que escondia.
Foi somente quando o companheiro
já estava doente que a cuidadora conseguiu dar banho nele, viu as faixas que
ele sempre trazia amarrada aos seios, e descobriu o segredo guardado a sete
chaves por tanto tempo. Porém, como havia feito a primeira companheira de
Lourival, a cuidadora manteve o segredo guardado.
Mais uma vez pode o leitor,
imaginar o drama vivido por essa mulher durante tanto tempo. Nascida num corpo
de mulher, mas que em um determinado momento da vida, descobriu que nele não se
encontrava e nem se sentia à vontade. Que angústias devem ter vivido? Quantos
sustos? Quantos medos de ser descoberta?
Diadorim e Lourival: eis mais uma
vez a vida imitando a arte nesse caldeirão de conflitos, fantasias, sonhos,
esperanças, que é o coração humano.
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