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Tráfico de Escravos: Um crime complexo que alimentou um crime bárbaro chamado escravidão – Parte II

Posted by Cottidianos on 00:30
Terça-feira, 3 de novembro

Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs”.
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu”.

(Sou negro – Solano Trindade)



As batalhas diplomáticas travadas entre Brasil e Inglaterra na luta contra a extinção do tráfico negreiro.

Houve outrora um homem mau e amaldiçoado pelo céu. Esse homem era forte, e odiava o trabalho; de maneira que disse consigo: O que devo fazer? Se não trabalhar morrerei e o trabalho me é insuportável. Então entrou-lhe no coração uma ideia infernal. Saiu à noite e prendeu alguns dos seus irmãos, quando dormiam, agrilhoando-os. Porque dizia ele, eu os forçarei com as vergastas e os chicotes, a trabalharem para mim, e comerei o produto do seu trabalho. Fez o que imaginara; outros, vendo isso, fizeram o mesmo, e não houve mais irmãos, houve senhores e escravos. Foi um dia de luto em toda a terra.
Muito tempo depois, houve outro homem ainda mais perverso que o primeiro e mais amaldiçoado do céu. Vendo que os homens se tinham multiplicado por toda a parte, e que sua multidão era inumerável disse consigo: “Eu poderia muito bem, talvez, acorrentar alguns e forçá-los a trabalhar para mim: mas seria preciso alimentá-los, e isso reduziria meu lucro. Façamos melhor; que trabalhem por nada! Morrerão, na verdade, mas como seu número é grande, eu acumularei riquezas antes que se reduzam muito, sempre restarão bastante”.
Este é um pequeno trecho do VIII capítulo do livro, Palavras de um Crente, de autoria de Lamennais, filósofo e escritor político francês. Na obra, publicada em abril de 1834, o autor expressa sua aversão contra as tiranias e reforça sua confiança no povo. Esse capítulo, do qual foi extraído o trecho acima, poderia muito bem servir para discutir as relações de trabalho baseadas na tirania e opressão, mas vamos nos ater ao tema em questão que é a escravidão. Esta, uma instituição tão antiga quanto à própria humanidade, e organizada como instituição social, primeiramente na Grécia e depois em Roma, sendo que nestas cidades ainda restava ao escravo, certa dignidade, coisa que lhes foi completamente negada nas sociedades escravistas formadas nas Américas.

Retomando o assunto do comércio de escravos. Parece haver algumas leis praticadas por forças contidas nesse imenso cosmos — do qual todos nós somos partes intrínsecas — que, mesmo invisíveis e incompreensíveis, atuam para que os homens, de tempos em tempos iluminem suas consciências e saiam das trevas da ignorância. Como algumas pedras de ignorância existentes no coração dos homens são bastante pesadas, as forças cósmicas levam anos para retirá-las de lá, muitas delas levaram séculos. De forma que, em algum momento, também aqueles atos praticados em nosso momento atual da humanidade, e que nos deixam estarrecidos, perplexos, ainda, em algum momento da história, essas consciências trevosas deverão ser iluminadas. Queira Deus que isso não demore muito a acontecer.

Assim também aconteceu na época da escravidão. Algumas luzes foram se acendendo e iluminando a verdade. Algumas consciências foram despertando, e percebendo que o comércio e o trabalho escravos era uma afronta e um retrocesso à raça humana. A partir daí, lutas foram surgindo para que o mundo fosse liberto desse mal.

A Inglaterra também não escapou dessa mancha em sua história. Ela também vendeu escravos para América, os registros históricos dão conta de que o país tenha vendido cerca de 3 milhões de escravos para o continente americano. Porém, a tomada de consciência começou a tomar conta da sociedade inglesa já no ano de 1787, quando um grupo de doze pessoas fundou a Sociedade para a Abolição do Comércio de Escravos. O grupo mobilizou a população, e o que se viu foi uma campanha abolicionista sem precedentes. Homens, mulheres e crianças, religiosos e cidadãos comuns, saíram às ruas, de porta em porta, entregando folhetos e panfletos, na esperança de mobilizar, sensibilizar e chamar a atenção da opinião pública para a questão.


Finalmente, em 25 de março de 1807, o Parlamento Britânico aprovou o Ato contra o Comercio de Escravos. O Ato proibia o comércio de cativos em todo o território britânico. Em 23 de agosto de 1833, foi aprovada a Ata de Abolição da Escravidão que tornava livres todos os escravos das colônias britânicas. Com esses atos humanitários realizados com sucesso, a Inglaterra reivindicou para si a condição de modelo na luta contra a escravidão... E partiu para a luta contra o comércio de escravos nos mares do atlântico. Alguns historiadores defendem a tese que a Inglaterra só adotou essa posição em relação à venda de escravos para as Américas, apenas e tão somente por interesses comercais. Defendem tais historiadores que os objetivos dos britânicos era criar e movimentar um comércio consumidor no continente Americano. 

O importante é que, se por motivos de interesses econômicos egoístas ou não, a Inglaterra contribuiu, e muito, para extinguir a grande tragédia humana enfrentada pelos negros na travessia África-Brasil. É verdade que o governo britânico, algumas vezes, usou de força e abuso de autoridade para fazer os seus ideais ter efeito, o que, em muito irritou, o governo imperial brasileiro. Houve alguns Tratados e Convenções assinados pelos dois países, acordos esses geralmente, descumpridos, ou praticamente, ignorados pelo brasil. A respeito desse assunto, assim se expressa o abolicionista brasileiro, Joaquim Nabuco, em sua obra, A Escravidão: “A série de negociações entre Portugal e Inglaterra remonta ao tratado de 19 de fevereiro de 1810. Três anos antes a política Fox-Granvelle tinha extinguido o trafico em esse último país: os esforços de Wilberforce haviam sido coroados com o sucesso, e desde então, por mais que se atribua o seu procedimento a moveis interesseiros, comerciais e egoísticos, a Inglaterra pôs-se à frente da cruzada contra o tráfico, fazendo nela grandes sacrifícios de todo o gênero: a sua corajosa iniciativa deve-se em grande parte a extinção dele entre nós, iniciativa que, todavia, sem o leal concurso do governo nacional nos últimos anos nada produziria de sólido, assim como melhor boa vontade de nosso governo nada conseguiria sem o auxílio da Inglaterra. É uma justiça que é preciso render aos dois países, aos quais cabe a mesma glória nesse grande resultado”.

O Tratado de Comércio e Navegação, assinado por Portugal e Inglaterra, em 1810, e citado por Joaquim Nabuco no parágrafo anterior, tinha o objetivo de aproximar e harmonizar as relações entre as duas monarquias. Sendo o foco principal, como o próprio nome já diz, as relações de comércio e navegação entre os dois países. Naquela época, alguns produtos brasileiros, como por exemplo, o café, e o açúcar não tinham permissão de entrar nos portos britânicos, e o artigo 20 desse tratado autorizava a entrada desses produtos brasileiros nos portos ingleses.

Outro artigo importante desse tratado é o artigo 10, através do qual, D. João era obrigado a extinguir o tráfico de maneira gradual.  Como nos mostra a história, pelo menos esse artigo do tratado, não foi cumprido por Portugal, e os tráfico continuou sendo feito. Isso irritou os ingleses, e estes passaram a, digamos assim, confiscar, os escravos que eram transportados da África. O fato de ter escravos apreendidos irritou os traficantes, e uma nova convenção foi assinada, a Convenção de 12 de janeiro de 1815, obrigava a Inglaterra a indenizar os navios prejudicados com quantia de 300 mil libras.

Entretanto havia um movimento em nível mundial que ia contra esse vergonhoso comércio. E as convenções e tratados entre as nações iam se sucedendo. Em 1817, surge no cenário do direito nacional, o direito de visita, que, por sua vez, era uma consequência da Convenção de Londres de 28 e Julho. O direito de visita estabelecia visitas mútuas entre navios portugueses e ingleses. Na teoria esse direito era mutuo, porém, na pratica, ele era exclusivo do governo inglês, o que apenas provava a superioridade do governo inglês sobre o português. 

Com a independência do Brasil em relação a Portugal, em 1822, uma nova convenção foi assinada, entre a nação recém-independente e a potencia inglesa, em 23 de novembro de 1826. Essa convenção reuniu os tratados assinados anteriormente entre Portugal e Inglaterra, o que incluía, o direito de visita e o de busca e julgamento por comissões mistas.

O artigo 1o dessa Convenção de 1826, estabelecia que após três anos de sua ratificação, ficava proibido aos brasileiros o comércio de escravos trazidos das costas africanas, sob qualquer pretexto, e que se isso acontecesse, o caso seria tratado como pirataria. Anos mais tarde, o não cumprimento dessa clausula, traria as duas nações, grandes constrangimentos.

Como podemos ver, o movimento da maré era sempre contra o tráfico, visando sua extinção. Em 7 de novembro de 1831, uma nova lei promulgada pela regência brasileira, declarava livres todos os escravos que chegassem aos portos brasileiros vindos da África. Como também nos mostra o desenrolar da história, essa lei ficou apenas no papel. Assim como também, não foi cumprido o acordo firmado com a Inglaterra na Convenção de 1826, de que passados três anos da ratificação da Convenção, o tráfico de escravos seria tido como pirataria.

Chegava o ano de 1945, e com ele, seria extinto o direito de visita garantido pela Convenção de 1817. Esse direito que vinha sendo, renovadamente, ampliado, estava com os dias contados. Ele seria extinto no dia 13 de março de 1845. Uma forte nuvem de preocupação começou a baixar sobre a coroa inglesa. E não era pra menos. O governo inglês deve ter pensado: “Ora, se os brasileiros não cumpriram o acordo de extinguir o tráfico após três anos da ratificação da Convenção de 23 de novembro de 1826; Se já estavam no ano de 1945 e o governo brasileiro não havia cumprido um acordo já deveria ter sido cumprido em 1930; Se não cumpriu a lei de 7 de novembro de 1831, que declarava livres os escravos vindos da África que entrassem nos portos brasileiros, então, ou o governo brasileiro mostrava má vontade na extinção do tráfico, ou então não tinha força política para tal. Com o fim do direito de visita, que, de certa forma, colocava um freio no infame comércio de escravos, aí é que o governo brasileiro não ia se emprenhar em cumprir tal função".


O que fazer? Teriam sido 30 anos de esforço em vão? Pensavam os ingleses. É verdade que no seu papel de redentora, a potência inglesa, amparada no direito de visita havia cometido abusos diplomáticos contra os navios portugueses e brasileiros, como nos relata Joaquim Nabuco, na obra já citada: “A nota de 11 de janeiro de 1844 do Sr. Paulino José Soares de Souza, consigna muitas das violências cometidas pelos agentes ingleses, entre as quais se tornam salientes as seguintes: uma lancha inglesa insultara o brigue de guerra brasileiro – Três de Maio – trazendo este à bandeira, içada, e a tripulação de um cruzeiro inglês desembarcara armada na praia de Armação de Búzios”.

Talvez, por esses e outros abusos o governo brasileiro de então, tenha recusado continuar com o direito de visita, vigente desde 1817.  Sentindo que estava prestes a perder o controle sobre o tráfico de escravos, a Inglaterra, em 08 de agosto de 1845, lança mão de um recurso violento, e que feriu a soberania nacional, que foi o ato que ficou conhecido como Bill Aberdeen. O Bill Aberdeen, lei, de autoria do ministro George Hamilton-Gordon (Lord Aberdeen), foi uma lei através da qual a Marinha do Reino Unido ficava autorizada a interceptar os navios negreiros brasileiros e submetê-los a julgamentos em tribunais ingleses. O artigo 6o dessa lei dizia: “Qualquer navio ou embarcação que for detido em virtude de tal ordem ou autorização, como fica dito, e for condenado pelo alto tribunal do almirantado ou por qualquer tribunal de vice-almirantado de S. M., poderá ser comprado para o serviço de S. M., pagando-se por ele a soma que o lorde grande almirante ou os comissários que exercerem aquele cargo julgarem ser preço justo do mesmo navio; e se assim não for comprado, será desmanchado completamente e os seus materiais vendidos em leilão em lotes separados”.

Se a Inglaterra esperava uma interrupção do tráfico com essa medida, “o tiro saiu pela culatra”, como diz o ditado popular. Com o orgulho ferido, o governo brasileiro fez vistas grossas ao comércio de escravos, que cresceu ainda mais após 1845. Em contrapartida, a vigilância inglesa dobrou, declarando guerra implacável aos negreiros, e o seu desrespeito pela bandeira e pelo território brasileiro era evidente,. E por que então o número de escravos que entravam em portos brasileiros dobrou depois do Bill Aberdeen? Ora, os traficantes de escravos também não eram nada bobos. Eles viam que a lei inglesa, havia ferido a honra nacional. Sentiam que o governo brasileiro, com relações estremecidas com a Inglaterra, não iria compactuar com as ações violentas daquela potencia. Percebiam também que as leis promulgadas, e que poderiam frear o comércio de escravos não eram cumpridas. Assim, esses mercadores de vidas humanas sentiram-se ainda mais confiantes depois do Bill Aberdeen, apesar de toda a repressão inglesa.

Mas enfim, como já disse, o movimento pela extinção do tráfico era como uma onda avassaladora, e não restou alternativa ao Brasil, senão votar uma séria lei que reprimisse esse comércio de humanos que manchava a nossa bandeira. Finalmente, em 4 de setembro de 1850, foi aprovada a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico inter atlântico de escravos. A Eusébio de Queiroz funcionou como um tiro certeiro no peito desse vil comércio, pois em 3 anos a entrada de novos escravos em portos brasileiros caiu para zero.

A luta, entretanto ainda não havia cessado definitivamente. Fechados os portos aos navios que cruzavam o atlântico fazendo comércio de escravos, os negociantes deram um jeito de fazer crescer o comércio interno, concentrando-se nas lavouras de café do Rio de Janeiro de São Paulo. Novamente a Inglaterra pressionou, e a partir de 1870, a fiscalização se fez sentir de modo mais intenso. Em consequência disso, começou a mão de obra começou a escassear, e o modo encontrado pelos grandes agricultores foi importar mão de obra assalariada em países da Europa.

Foi difícil a luta para extinguir o tráfico de escravos, assim como foi difícil acabar com a escravidão no Brasil, assim como foi difícil acabar com a escravidão na cidade de Campinas, mas o objetivo foi conquistado, a batalha foi vencida. Entretanto, aquelas barbaridades e atrocidades que se cometeu contra o povo negro no passado, ainda encontra eco no presente, ainda se faz sentir na pele dos afrodescendentes, em forma de preconceito e discriminação racial.

Na noite de sábado, 31 de outubro passado, a bela e talentosa atriz negra, Taís Araújo, foi alvo de comentários racistas, feitos em sua página no Facebook. Em julho, havia sido a vez da jornalista, Maria Júlia Coutinho (Maju), que faz a previsão do tempo no Jornal Nacional. Inúmeros jogadores de futebol também já foram alvo de ataques racistas enquanto trabalhavam, fazendo a bola rolar pelos campos do Brasil e do mundo. Esses casos divulgados envolvem pessoas famosas e chamam a atenção da mídia e da sociedade, mas pelas ruas e pelos guetos do Brasil afora, quantos negros não sofrem discriminação, quantos não são marginalizados e até perseguidos pela polícia pelo simples fato de serem negros?  

Um dia, ainda aqui em vida, ou depois que deixarem essa casca que é o corpo físico que nos envolve, todos hão de ver quão absurdo é julgar uma pessoa pela cor de sua pele. Um dia esses covardes que se escondem através do anonimato de uma rede social, ou de uma torcida de futebol, verão que o importante em um ser humano é uma coisa que eles ainda não possuem: caráter. Bem aventurados são aqueles que conseguirem amadurecer suas retrogradas ideais e inúteis pensamentos de que o que nos faz melhores ou piores que outros é a cor de nossa pele, ainda neste plano terreno.

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