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Tráfico de Escravos: Um crime complexo que alimentou um crime bárbaro chamado escravidão – Parte I

Posted by Cottidianos on 13:40
Domingo, 1o de novembro

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...

(O Navio Negreiro – Castro Alves)


Chegamos ao mês de novembro e, com ele, os muitos debates, reflexões e ações sobre a questão negra, em todo o território nacional, que atinge seu ápice, no dia 20, com o Dia Nacional da Consciência Negra. A data coincide com a morte de Zumbi dos Palmares, referência máxima do desejo de liberdade que pulsava nos corações dos negros cativos. Muitos dizem: “Ah, mas a escravidão já passou”. “Escravidão é coisa do passado, porque relembrar essas coisas”. Como se os crimes cometidos contra os negros, crimes esses que continuam refletindo ainda hoje, em cada canto e recanto das Américas, devessem ser esquecidos, empurrado para debaixo do tapete da história. 

Achei muito interessante um texto publicado na página do Facebook da Comunidade Africanos, no dia 19 de outubro, e que agora reproduzo nesta postagem. Diz o texto:

Os europeus pedem ao mundo para que as tragédias das duas Guerras Mundiais nunca sejam esquecidas, os judeus pedem a todos que o Holocausto nunca mais seja esquecido, os norte-americanos pedem ao mundo inteiro para que os atentados de 11 de setembro de 2001 fiquem na memória e que nunca sejam esquecidos, mas curiosamente e hipocritamente pedem à humanidade e aos africanos e descendentes em particular para que se esqueçam de séculos de escravatura e décadas de colonização, bem como os horrores perpetrados contra africanos.
Pergunto:
Onde está a paridade nesse pedido?
Sejamos coerentes, qual é o fundamento para este pedido?
Será que é a vítima quem deve se sentir constrangida ou culpado?
Nenhum africano ou descendente deve se sentir constrangido em pronunciar sobre os horrores do que os seus antepassados foram vítimas e muito menos em falar do racismo do século passado e do racismo disfarçado que existe nos nossos dias.
Supere, mas nunca esqueça, porque faz parte do teu passado histórico. Quem não perdoa nunca se liberta!
Saudações africanistas,
Trazer o passado à tona, é uma forma de fazer que erros históricos não devam ser repetidos, principalmente, em um país como o nosso, em que há um racismo velado, silencioso, que ainda hoje envenena a sociedade brasileira.

Dividi o texto em duas partes. Na primeira, falo das três estações principais no caminho da cruz, ou via-crúcis, percorrido pelos negros, tais sejam; o modo pelos quais os negros eram feitos escravos em solo africano, a marcha forçada empreendida por eles até a Costa, e a travessia nos horríveis navios negreiros. Na segunda parte do texto, destaco a batalha diplomática, ocorrida nos mares do Atlântico, entre Brasil e Inglaterra. Esta querendo proibir o tráfico, aquele querendo permitir, prolongando esse crime o quanto foi possível.

***

Tráfico de Escravos: Um crime complexo que alimentou um crime bárbaro chamado escravidão – Parte I



O calvário dos escravos: captura em terras africanas, marcha até a costa, e travessia do atlântico.


Ilmo Sr. José Maria de Almeida - Chefe de Revisão e Vice-Intendente da Marinha
Em observância da ordem e comunhão de Vossa Senhoria do presente dia fui à revista do navio negreiro, vindo de Moçambique, a bordo do qual não achei, nem o Mestre, nem Oficial algum do navio, que respondesse pelo manifesto, e mais circunstâncias da dita revista; e achando-se presente Custódio de Souza Guimarães por quem a dita revista foi requerida, recontaram setenta e cinco pretos; e mais três que disseram ser forros. Também se dizia haverem falecido a falta de água trezentos e sessenta e seis pretos...
Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1813
Gregório Manoel do Couto
Este trecho de uma carta, cujo manuscrito original, encontra-se nos arquivos da Biblioteca Nacional, localizada no Rio de Janeiro, nos dá uma leve ideia de quão difícil e sofrida era a travessia do Atlântico para os negros capturados em África. Na carta, o seu autor, Gregório Manoel, dirige-se ao Chefe de Revisão, e Vice-Intendente da Marinha, José Maria de Almeida para informar que trezentos e sessenta e seis negros haviam chegados ao seu destino, mortos. Ainda mais sombria se torna a tragédia ao ser revelado o motivo de tantas mortes: sede. Aqueles trezentos e sessenta e seis negros haviam morrido de sede! Grande parte dos escravos morria durante a viagem, e isso também era cena comum naqueles navios.

Segundo o Dr. Ademir José da Silva, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra o Brasil, da OAB-Campinas, os objetivos da comissão instituída nacionalmente na data de 03 de novembro de 2014, resumem-se em três os questionamentos a que a Comissão da Verdade procura responder: A escravização de negros no Brasil foi um crime? Se sim, quem cometeu esses crimes? Quais as formas de responsabilização e/ou reparação desses crimes?

Sem dúvida, a escravidão foi um crime que mancha a bandeira das Américas, inclusive a do Brasil. Entretanto, gostaria de abordar nesse texto, o tráfico negreiro, outro crime, talvez ainda mais bárbaro, e sobre cuja raiz está assentada a escravidão daqueles tempos de outrora, e cujos reflexos ainda se fazem sentir por todos os recantos do continente americano.



A via-crúcis dos negros começa ainda em terras africanas. Em sua terra natal, eles viviam tranquilos e livres em suas aldeias, na qual viviam suas tradições e costumes, e belo dia, os habitantes dessas aldeias eram capturados. Correntes eram colocadas em suas mãos, pernas e pescoço. E esses raptores, não eram necessariamente brancos, mas também podiam ser negros que viviam da venda de seu próprio povo, de seu próprio sangue. Naquele tempo, a venda de escravos era um comércio, um negócio altamente lucrativo.

Se a venda de escravos era um comércio, como todo comércio, estava sujeita as leis de mercado. Só havia a captura e venda de humanos, porque, em contrapartida, havia quem os comprasse. Se os governantes não solicitassem a força de trabalho dos negros, os quais eram feitos escravos ainda no solo africano, ou que esses governantes fizessem vistas grossas a esse infame comércio, não teriam chegados tantos escravos africanos às Américas, e milhares de outros não teriam morrido durante a travessia do Atlântico.

Essa questão é levantada pelo Duque de Broglie, em um discurso citado na obra, A Escravidão, de Joaquim Nabuco, escrita no ano de 1870. O Duque de Broglie, mais conhecido como Louis de Broglie, foi um físico francês, que nasceu em 15 de agosto de 1892, e morreu em 19 de março de 1987. Assim questiona ele em seu discurso, referindo-se ao tráfico de escravos: “Onde existe o motivo, a desculpa, o pretexto de um semelhante ato? Que pensamento pode atenuar o seu horror? Que pensamento pode embranquecer sua negridão original? São já escravos, que nós compramos, dizem-nos. Sim. São esses escravos: E sabeis porque são escravos? É porque nós os compramos. Pensais que a Costa da África tenha naturalmente em reserva a quantidade de escravos, de que nossas colônias precisam? Não. Pedi-lhe, 20, 30, 40.000 e África terá 20, 30, 40.000 a fornecer-vos. Não lho peçais, a escravidão aí se extinguirá ou pouco mais ou menos”. Em outro trecho do mesmo discurso, o duque de Broglie afirma: “O trafico dos negros é um crime, e o mais medonho de todos os crimes talvez, porque ele por si só é completo agrupamento de todos os grandes crimes, com que a humanidade jamais nodoou-se; porque ele é necessariamente e por isso mesmo o mais infame de todos os ofícios: porque ele é necessariamente, e sem possibilidade de paliativo, uma rapina abominável”.

A captura, como já citei, era um modo de escravizar. Havia ainda muitos outros artifícios bárbaros de que os negociantes lançavam mão para obter suas “peças”. Uma delas eram as alianças feitas pelos negociantes, mercadores negreiros, com os governos tiranos de países africanos. Através dessas alianças, os tiranos condenavam a população por crimes imaginários, dos quais os mercadores atuavam, em cumplicidade com os tiranos, como falsas vítimas desses crimes. Após condenados os negros, os negociantes os compravam dos tiranos a alto preço.

Outras vezes, os negociantes instigavam entre as populações a guerra civil, fornecendo armas e munições. Nessas guerras também eram feitos cativos que eram comprados pelos próprios negociantes por um preço razoável. Algumas vezes, usavam métodos ainda mais vis para fazerem escravos os livres. Eles ofereciam aos pais e mães licores deliciosos, até que o álcool os fizesse perder a consciência, ou lhes embaralhasse os pensamentos, e através desse ardiloso método, convenciam pais e mães a vender os próprios filhos. Também era comum que eles pagassem a salteadores para que capturassem negros que andavam sozinhos pelas estradas, ou então para que invadissem aldeias isoladas, matando os velhos e crianças, e fazendo cativos os jovens e de boa saúde.


Após essas abomináveis artimanhas para fazer escravos os negros, começava então o calvário destes ainda em solo africano. Após serem escravizados em sua terra natal, muitas vezes, por outros de sua própria cor e nacionalidade, eram os cativos a obrigados a caminhar, acorrentados, centenas de quilômetros, sob o sol escaldante, aos mercados costeiros de Benin, Calabar e Costa do Ouro, dentre outros. Nessa marcha forçada até a costa africana, os negros eram obrigados a caminhar, a pé, dependendo de quão longe estivessem da costa, até cerca de 1.000 quilômetros, ou até mais — na linguagem da época dir-se-ia que eles andavam de 100 a 200 léguas, ou ás vezes mais. Passando, como dizemos hoje, pelas mãos de vários atravessadores até chegar à costa, os negros, agora feito escravos, ainda tinha que enfrentar, além da penosa caminhada sob o sol escaldante, através de desertos, regiões alagadas, e matas fechadas. Assim seguiam eles, tendo à frente, a desesperança, e atrás de si, o estalo do chicote que lhes deixavam dolorosas feridas. A maioria dos cativos não aguentava tão extenuante jornada e morria pelo caminho, de sede, fome, cansaço, ou em consequências dos ferimentos, sendo abandonados à beira do caminho, servindo seus corpos como fonte de comida para abutres e feras selvagens.

Todo esse calvário por que passavam os negros ainda em solo africano, se fosse ficção, poderiam muito bem, fazer parte das cenas de um filme de horror, porém, horror ainda maior viria com o embarque nos navios negreiros. Comparativamente aos transportes de hoje, podemos dizer que havia nos negreiros primeira e segunda classe, sendo a primeira classe, o convés, onde ficavam os marinheiros, e a segunda classe, o porão, no qual viajavam os negros.

A grande, eu diria a monumental diferença, é que as viagens em segunda classe de hoje possuem infinitamente mais conforto que a segunda classe dos navios negreiros. Ali, naqueles sombrios ambientes e lúgubres acomodações não havia, absolutamente, conforto nenhum.  Duzentos, trezentos, quatrocentos e até quinhentos negros, eram alojados nessas dependências, guardadas as devidas proporções do navio, eram jogados, amontoados nos porões dos tumbeiros — nome comumente associado aos navios negreiros.

Creio que todos conheçam sardinhas enlatadas. Aquele peixe delicioso e nutritivo que pode vir, geralmente em óleo, ou molho de tomate, e que quando colocadas em lata, costumam vir umas por sobre as outras. E a expressão “como sardinha em lata”, conhecem? Essa expressão é usada expressar a superlotação em transportes públicos, pois nessas condições, as pessoas, ficam, praticamente, umas por sobre as outras. Acho que essa expressão cabe ainda melhor se aplicada ao contexto dos porões dos negreiros. Os escravos eram transportados como sardinhas em lata, com a grande diferença de que as sardinhas já estão mortas e não podem sentir mais qualquer coisa, e os negros, transportados vivos, tinham plena consciência de sua situação de opressão.



Para começar, a altura desses porões não ultrapassava 1,5 m de altura, e ocupava todo o cumprimento e a largura do navio. Devido a superlotação, para cada adulto restava apenas um pequeno espaço de 14 centímetros, talvez um pouco mais. Isso não é erro de grafia. Era nesse ínfimo espaço no qual o negro tinha que acomodar seu corpo, durante toda a viagem. Em qualquer lugar onde houvesse um mínimo de espaço, era colocado um negro, fosse de encontro às paredes do navio, ou ao redor do mastro, todos os espaços tinham que ser ocupados. Para tornar a vida dos negros ainda mais complicada, e para caber mais gente no navio, a maioria das embarcações possuía uma espécie de prateleira que saia das laterais para o meio do navio, e ali eram colocados mais escravos, de forma que os que os que ficavam embaixo dessas prateleiras ficavam, por assim dizer, quase esmagados. Havia o peso das correntes: todos os escravos eram algemados pelos pés e pelas mãos, e presos uns aos outros por uma comprida corrente. Analisando essa situação podemos concluir que os negros quase não tinham espaço para movimentar os seus corpos durante toda a viagem, permanecendo, praticamente, na mesma posição durante toda a travessia, que, geralmente, demorava entre 30 e 35 dias. Uma viagem nessas condições já caracteriza uma espécie de tortura. Talvez, alguns “bondosos” capitães, permitissem que os negros passeassem em alguma parte do dia, pela convés, para que pudessem respirar um pouco de ar puro, mas isso era exceção à regra.

Baseados no relato do médico-cirurgião britânico, Dr. Alexander Falconbridge (1760-1792), podemos ter uma ideia aproximada de como eram esses porões. Alexander fez parte de quatro viagens em navios negreiros, entre os anos de 1780 e 1787. O relato do cirurgião é citado na Tese de Doutorado, intitulada, De Costa a Costa, de autoria de Jaime Rodrigues. Esta Tese foi apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a orientação da Professora Dra. Silvia Hunold Lara. Vejamos a descrição feita pelo Dr. Alexander: “No porão, não há espaço para se ficar na postura ereta, especialmente onde há plataformas, como geralmente é o caso. Estas plataformas são um tipo de prateleira, com cerca de 8 ou 9 pés de largura, que se estendem dos lados para o centro do navio (...) Há 5 ou 6 portas-de-ar de cada lado do navio, com cerca de 6 polegadas de cumprimento e  4 de largura. Além disso, em alguns navios (1 em 20), há o que eles denominam ‘vela de vento’ (wind-sail). Mas se o mar está agitado e se chove pesado, é necessário fecha-la. Além do ar irrespirável, o porão também é intoleravelmente quente. Durante as viagens que fiz, fui frequentemente testemunha dos efeitos fatais dessa ausência de ar fresco”.


Para as negras mais bonitas havia ainda o inconveniente do abuso sexual por parte dos marinheiros.

Para compreendermos melhor o porquê de tantos negros terem morrido em uma viagem, por falta d’água, na tragédia relatada na carta que abre esse texto, vejamos o comentário de Joaquim Nabuco, na obra, A Escravidão, que cita, por sua vez, o depoimento de certo Dr. Cliff, — provavelmente, o Dr. Joseph Cliffer, ex-traficante de escravos — ao Jornal dos Economistas. Assim diz Nabuco: “A falta de água, diz ele, causava aos negros uma desgraça incrível: como tonéis exporiam os negreiros ao confisco, descobriram que, dando a cada homem uma xícara de água, dava-lhe para viver. Segundo o mesmo médico, que muito tempo foi associado a esse comércio, para fazer chegar 65.000 negros ao Brasil, é preciso tirar-se 100.000 da África e dos que chegarem, morrerão ainda até 5.000, nos dois meses depois da chegada”.

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