Um anjo no inferno
Domingo, 23 agosto
Em
qualquer situação, se não sabe o que dizer, deve se ficar de boca fechada. Assim
evita-se expor em público aquilo que você deve ser guardado com cuidado no
coração: a própria ignorância. Ali ela não causa prejuízos a ninguém, exceto a quem
a cultiva.
E
a ignorância não deve ser exposta em público, principalmente, nas redes
sociais. Pois lá, o alcance de uma palavra mal colocada pode causar um prejuízo
enorme, tanto para quem a pronunciou tanto quanto a quem ela foi dirigida.
O
pior é que a redes sociais estão cheias, lotadas, abarrotadas de falsos
defensores da moral e dos bons costumes. De gente que se arvora ao direito de
exercer julgamentos sobre terceiros quando na verdade são prisioneiros dos
próprios preconceitos. Falsos juízes. Não sabem limpar a podridão que tem
dentro de si e querem dar lições de moral à sociedade.
Os posts acima, como veem são todos tirados de redes sociais.
O
primeiro post é do padre Ramiro José Perotto, de Carlinda, em Cuiabá. O
segundo, de uma professora da rede de educação básica do Estado de São Paulo. A
Secretaria estadual de Educação de São Paulo demitiu a professora após a
postagem. O terceiro é de Noeli Jucundo de Andrade, uma agente administrativo
do Pronto-Socorro de Rio Branco, Acre.
São
palavras infelizes que vem de quem deveria se colocar a favor da vida e do
sofrimento alheio, mas o que se vê nos posts é bem o contrário.
Tudo
começou quando uma criança de 10 anos deu entrada no Hospital Dr. Roberto
Arnizaut Silvares, na cidade de São Mateus, norte do Espírito Santo, no dia 08
deste mês. A garota reclamava de dores no abdômen. Os médicos pediram então um
exame de sangue, e qual não foi a surpresa ao constatar que a menina estava grávida.
Diante do absurdo, o hospital resolveu levar o caso à polícia.
O
caso foi investigado e, em menos de 10 dias, a polícia conclui as
investigações. Estas, embasadas em exames e no próprio depoimento da garota,
revelaram que ela era abusada pelo tio desde os 6 anos de idade. O homem, de 33
anos, foi então indiciado por estupro de vulnerável e ameaça. Fugiu ao saber
das acusações. Porém, a polícia o localizou em Betim, Minas Gerais, e o
prendeu.
À
polícia, a criança disse que o tio a ameaçava e dizia que se ela contasse para
alguém, que ele iria prejudicar os parentes dela. Ora, é frequente vermos nos
noticiários, casos de mulheres adultas que se calam por anos diante de um caso
de estupro por medo do agressor ou por vergonha dos julgamentos da sociedade,
imaginem os senhores e senhoras, quando se trata de uma criança. O nó na cabeça
dela deve ser então infinitamente maior. Quanto sofrimento, quanta angústia,
quanta dor, quanto medo, em um coração que está apenas começando a viver.
A
menina foi levada para um abrigo da cidade. Após saber que em seu ventre de
criança, carregava um feto, ficou ainda mais assustada, e chorava. A solução
pensada pelos médicos e pelas autoridades: um aborto.
Aborto.
Tema complexo. Controverso. Divide opiniões. Porém, em todas as situações da
vida é preciso ter sensatez. O conservadorismo não pode vencer a sensatez. A
capacidade de se colocar no lugar do outro. E nesse caso o bom senso grita no
alto a fim de que seja ouvido. Ele implora par ser ouvido pela sociedade.
Uma
menina de 10 anos não está pronta para receber uma gestação. Passar nove meses
carregando o peso de uma barriga. Como nas grandes tempestades descem as
descargas de raios ameaçadores, no corpo da menina desceriam uma carga
fenomenal de hormônios que ela não estaria preparada para receber. O ventre não
estaria preparado, assim como não estaria preparado a mente da garota. Uma
criança grávida já é por si só um absurdo. Imaginem então o peso desse pequeno
ser carregar uma gravidez indesejada?
Na
sexta, 14, o Ministério Público apresentou um pedido a Justiça do Espírito se
colocando favorável ao aborto nesse caso. A Justiça acolheu o pedido, e a
menina foi transferida para a capital, Vitória, enquanto o Ministério Público e
o governo do Estado decidiam em qual hospital seria realizado o procedimento,
autorizado pela Justiça.
Foi
então que entrou em cena o circo armado pelos conservadores. Hoje tem
marmelada? Tem sim, senhor? Hoje tem goiabada? Tem senhor? E o palhaço o que é?
É ladrão de mulher. Era assim, que o circo anunciava a sua chegada na cidade.
Lá ia o palhaço pelas ruas fazendo suas brincadeiras e arrancando sorrisos da
criançada. E tudo virava festa e alegria. No circo dos palhaços conservadores,
não. Ali não há alegria. Apenas pedantismo. Orgulho. Vaidades. Enfim, o
espetáculo é tétrico.
O
hospital escolhido foi o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes
(Hucam), em Vitória. Porém, mesmo com determinação da Justiça, o hospital se
negou a fazer o aborto. Diante das críticas o hospital veio a público dizer que
não fez o procedimento porque não tinha condições de fazê-lo devido ao
adiantado estado da gravide, cinco semanas, segundo o hospital, e não três,
conforme havia sido divulgado.
“Baseado nos critérios do Ministério da
Saúde, tomou-se a decisão de não realizar o abortamento, dado que, pelo
protocolo para realização de abortamento humanizado —que existe desde 2005—, o
aborto tem um limite de 20 a 22 semanas de gestação, e um peso fetal de até 500
gramas. Essa criança estava acima desse ponto de corte. Por isso, não tínhamos
capacidade técnica para conduzir uma antecipação de parto, já que pelos dados
não seria mais um abortamento”, disse Rita Checon, superintendente do
Hucam.
Como
os serviços público e privado de saúde do Espírito Santo não dispunham de
serviços de medicina fetal capazes de dar prosseguimento ao caso de aborto em
questão, foi escolhido então o hospital Centro Integrado de Saúde Amaury de
Medeiros (Cisam), em Recife, Pernambuco, uma referência no estado em aborto
legal. A criança, acompanhada da avó, e de uma assistente social, chegaram a
capital pernambucana no domingo 16. Na manhã de segunda-feira, 17, enfim, o
aborto foi realizado com sucesso e segurança.
Segundo
o portal Uol-notícias, pesou também a escolha de um lugar tão distante de onde
a menina morava o fato de o hospital recifense ter know-how quando se trata de
aborto legal, e também porque ali, há 11 anos atrás, foi feito o aborto de uma
criança de 9 anos que estava grávida de gêmeos. Por causa desse procedimento o
hospital chegou a ser excomungado pela Igreja Católica.
Não
foi nada fácil para uma menina de apenas 10 anos. Entre o primeiro atendimento
a finalização do procedimento foram decorridos dez dias. Nesse período a
criança passou por quatro hospitais, duas viagens, e uma grande exposição
midiática.
Se
há 11 anos o Cisam foi excomungado, dessa vez, se não chegou a tanto, também
recebeu o peso da fúria dos conservadores.
No
domingo, 16, um grupo formado por parlamentares evangélicos e fundamentalistas
religiosos se reuniu em frente ao hospital onde a menina estava sendo preparada
para o aborto. Eles protestavam contra a realização do procedimento.
Eles
Cantaram. Ajoelharam-se. Deram-se as mãos. Rezaram. Louvaram. Certamente não
invocavam ao Deus da vida, mas ao deus de suas próprias hipocrisias, de seus
próprios preconceitos e falsos valores morais. Chamaram os médicos que
realizavam o procedimento de assassinos. Eles também dirigiram ofensas à
menina.
O
portal Uol-notícias, destacou a fala de uma das representantes desse grupo que
tem 12 mil seguidores no Instagram. “Estamos
aqui como igreja para dizer que Recife não é a capital do aborto, nós somos
pró-vida, e queremos salvar as duas vidas. As duas importam e valem”, disse
ela.
No
Espírito Santo, a família da menina já havia sofrido pressão de grupos
fundamentalistas para que não permitissem a interrupção da gravidez. “E essa equipe que eu tô colocando à
disposição da senhora é uma equipe de especialistas, médicos, ginecologistas,
médicos que sabem lidar com esse tipo de situação. E tão dando toda a garantia
que fazer o que eles querem fazer agora é mais risco do que levar a gestação à
frente e fazer uma cesárea com anestesia, com tudo correto, entendeu?”, diz
um homem, segundo reportagem do Fantástico, no domingo, 16. A Promotoria da
Infância e da Juventude de São Mateus vai investigar esse caso.
Em
um momento delicado como esse o que as pessoas mais precisam é privacidade. Mas
nem isso os conservadores permitiram a menina. A conhecida militante de extrema
direita, Sara Fernanda Giromini, mais conhecida como Sarah Winter, ainda na
tarde de domingo, 16, divulgou em suas redes sociais o primeiro nome da menina
e, em caixa alta, também revelou o endereço do hospital onde seria feito o
aborto.
Em
sua postagem, Sarah também chamava o médico que realizaria o procedimento pelo
termo pejorativo de “aborteiro”. Ela ainda pediu que seus seguidores “rezassem”
e “colocassem os joelhos no chão”. De uma só vez, a extremista desrespeitou o
momento de sofrimento e angústia de uma criança, violou o artigo 17 do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura a preservação da identidade da
criança, e também desrespeitou o artigo 286 do Código Penal, que proíbe a
incitação pública à prática de crime.
O
Youtube, canal onde foi foram feitos a divulgação do dados decidiu excluir a
conta da militante por violação dos termos de serviço da plataforma. Com a
divulgação dos dados referentes ao caso da menina, a extremista que já estava
enrolada com a Justiça no processo das fake News, pode se enrolar mais ainda.
Em
ação movida pela promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Mateus, o
Ministério Público do Espírito Santo entrou na Justiça contra a extremista, e
pede que ela pague R$ 1,32 milhões por danos morais coletivos.
Após
todo esse drama, a família da menina aceitou participar de um Programa de Apoio
e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Violência (Provita),
oferecidas pelo governo do Espírito Santo. O programa oferece apoios como
mudança de identidade e de endereço.
A
garota e sua família partirão enfim para uma nova vida, sob novas identidades e
endereço. As marcas entretanto... Essas ficarão pelo resto da vida. É preciso
muito cuidado, muito carinho, muito apoio e tratamento psicológico. São feridas
na alma. E essas são as mais difíceis de tratar.
Mas
se a menina recebeu pedradas dos hipócritas também recebeu flores, presentes e
mimos. Um destes mimos veio dos Youtuberes Felipe Neto e Whinderson Nunes. Eles
se ofereceram para ajudar a menina. Felipe Neto se ofereceu para pagar os
estudos da garota até sua maioridade, e Whinderson Nunes ofereceu tratamento
psicológico à menina.
Cura
para as feridas do corpo e da alma é o que nós todos desejamos para garota,
para que ela possa ter paz em sua vida. E para o tio, que abusava dela desde os
seis anos de idade, que tenha severa punição.
E que a menina livre dos demônios possa, enfim, encontrar o seu céu ainda nesta vida.
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