Um ritual marcado pela intolerância religiosa
Domingo, 16 de agosto
Kate Ana Belintani, mãe de adolescente impedida de realizar ritual |
“Estou muito feliz. Ela já dormiu em casa,
estamos muito felizes. Não desejo o que passei para ninguém. Foram 17 dias sem
fim, foram dias tristes, mas agora é aproveitar”.
Esse
foi o depoimento de Kate Ana Belintani, manicure, mãe de uma adolescente de 12
anos, ao portal G1 neste sábado, 15, ao recuperar a guarda da filha.
Você
que é pai, você que é mãe, já imaginou a aflição de ver seu filho ou sua filha
tirada de seus braços, repentinamente, por uma decisão judicial? Já pensou nos
dias de angústia e desesperos nos que se seguiriam enquanto lutava para ter de
volta ao seu lar aquele ser amado que haviam lhe tirado?
É
certo que você não gostaria de passar por tal situação, não é verdade? Creio que
ninguém gostaria de experimentar tais aflições. Mas e quanto as pessoas que tem
a coragem de fazer isso com outras, o que você pensaria delas? E se essa
atitude tivesse suas raízes em algum tipo de preconceito ou intolerância?
O
que aconteceu para a mãe dar o depoimento acima citado ao G1? Vejamos.
Era
dia 23 de julho deste ano, um grupo de conselheiro tutelares e policiais
chegava ao terreiro de candomblé Ilê Asè Egbá Araketu Odè Igbô, localizado no
bairro Água Branca, em Araçatuba, interior de São Paulo. A avó de uma
adolescente de 12 anos havia feito, junto ao Conselho Tutelar da cidade, uma
denúncia de que a neta estava sofrendo maus tratos e possível abuso sexual.
Ao
chegarem ao local, os policiais e conselheiros encontraram uma jovem que fazia,
de livre e espontânea vontade, sua iniciação no candomblé, em um ritual chamado
pelos adeptos da religião de “feitura de santo”.
A
vida é ritualística. A própria geração de um ser humano e seus nascimento podem
ser entendidos como um ritual. O pequeno embrião está para iniciar um novo
ciclo. Desabrochar para uma nova vida que terá suas fases: nascimento,
crescimento, envelhecimento, e morte. Se não houver contratempos nesse
percurso, esse é o destino de todo ser humano.
Enfim,
todos nós, em nossas vidas, vivemos vários ritos de passagem ou de iniciação
que ocorrem em nossa vida em sociedade, ou em nossa vida religiosa, o quem vem
a ser a mesma coisa, uma vez que a religião existe porque a sociedade existe. O
mistério, ao contrário, existe desde sempre, e não precisa das religiões para
que se manifeste.
As
religiões, todas as religiões são ritualísticas. Todas elas, sem exceção, lidam
com o mistério. E o modo que os homens encontraram para lidar com aquilo que
não conhecem, que está além da sua compreensão foi mergulhar no ritualismo.
Assim
como o mistério permeia a vida e as religiões, não seria diferente para com as
religiões afro-brasileiras.
O
orixá não obriga nem um filho a fazer os ritos de passagem ou iniciação. Na
feitura de santo, por exemplo, durante um período que varia de 16 a 21 dias o
iniciado precisa ficar em recolhimento total, distante da vida profana, e até
mesmo privado do convívio familiar. É como se ele entrasse no ventre do sagrado
e ali passasse por um processo de gestação, do qual surgirá para uma nova vida.
Poderíamos
afirmar, sem medo de errar, que a umbanda e o candomblé são religiões altamente
ecológicas, e que seus fiéis levam muito a sério essa orientação, porque sabem
que poluindo os mares estão maculando a casa de Iemanjá. Se derrubarem as
pedreiras estão destruindo a casa de Xangô. Se derrubarem as matas e florestas
estão cortando o coração de Oxóssi. Se sujarem os rios estão desagradando a
Oxum. E assim por diante, uma vez que cada Orixá tem seu campo de atuação na
natureza.
Se
nos despirmos do preconceito veremos que as religiões afro possuem uma beleza
singular e que, assim como as demais religiões, estão fundadas nos alicerces do
amor, da caridade, e da fé.
E
no rito em questão — e que motivou a denúncia da avó por maus tratos — o fiel,
buscando essa conexão com a natureza, recebe vários banhos de ervas,
defumações, e incensos, além de receber lições sobre o fundamento da religião.
Faz
parte desse ritual também o ato de raspar a cabeça. Como o leitor pode ver, o
rito de iniciação no candomblé é algo que tem que ser levado muito a sério pela
sua sacralidade, pela sua beleza, e pela sua entrega, afinal, é nele que o iyawô
(filho de santo) vai receber a grande energia que vem dos orixás. Então
espírito, corpo, e cabeça devem estar bem preparados.
Foi
em meio a essa preparação, a esse ritual sagrado, que os policiais chegaram ao
terreiro onde ele estava sendo realizado. E de nada adiantou o pai de santo
responsável pela casa, Rogério Martins Guerra, dizer que estava acontecendo um
grande mal-entendido. Também não adiantou a mãe da adolescente, chamada às
pressas ao local, dizer que havia permitido a iniciação da adolescente, e que
estava totalmente de acordo com isso. Muito menos adiantou a própria
adolescente dizer que não estava sendo vítima de nenhum abuso sexual ou maus
tratos.
Apesar
de todas as justificativas dadas pelos envolvidos, mãe e filha foram levadas a
uma delegacia que, por sua vez, as encaminhou ao Instituto Médico Legal (IML),
onde fizeram exames de corpo de delito. Os exames não detectaram nenhuma lesão.
Somente após estes procedimentos, mãe e filha foram liberadas. Também foi
pedido pelo delegado que fosse feita uma perícia no local onde estava sendo
realizado o ritual. Ali também nada indicou agressões ou violência. Sete dias
após o início do ritual, a adolescente foi obrigada a deixar o terreiro por
causa desses contratempos.
E
o que levou a avó da menina a fazer a denúncia junto ao Conselho Tutelar?
Segundo
a mãe da adolescente, o restante da família é da religião evangélica, e duas de
suas irmãs teriam influenciado a mãe para que ela entrasse com a denúncia.
Essa
parte da família então, mesmo não tendo sido confirmado pelos exames do IML
nenhum sinal de abuso ou maus tratos na adolescente, não desistiram. Resolveram
apresentar outra denúncia ao Conselho Tutelar, dizendo, dessa vez, que a
adolescente era obrigada a ficar no terreiro e fazer o ritual.
Novamente,
policiais e conselheiros tutelares foram ao terreiro, e dessa vez não
encontraram ninguém. O ritual já fora finalizado. Obviamente, abreviado, e sem
a paz necessária para sua realização.
Novamente
os familiares da jovem, incansáveis justiceiros, não se conformaram. E
recorreram à Promotoria, onde denunciaram o caso como lesão corporal por causa
do cabelo raspado da jovem. Enfim, entraram na Justiça e saíram vitoriosas. No
dia 03 de agosto, a Justiça concedeu a guarda da menina a avó.
Separadas,
mãe e filha apenas se viam em visitas curtas e rápidas ou por conversas pelo
celular. Numa dessa visitas, a avó proibiu que a menina se encontrasse com a
mãe. A jovem então fugiu e foi encontrar a mãe numa praça da cidade. A polícia
foi acionada e chegou até as duas estavam, colocou a jovem na viatura e a levou
de volta para a casa da avó.
Foram
dias de muita angústia e sofrimento para Kate e para a filha. Nesse período em
que estiveram separadas, o G1 a procurou novamente a mãe da jovem e ela afirmou
que nem conseguia mais dormir, e que a única coisa que conseguia fazer era
chorar. “Não consigo mais dormir. Só
choro esperando ela voltar para casa. Eu acredito que o juiz na hora que deu a
sentença não sabia que era por questão religiosa”, disse ela. Kate também
informou que havia contratado um advogado para fazer com que a menina fosse
trazida de volta.
Enfim, para alívio da mãe da adolescente, do
grupo religioso ao qual as duas pertencem, e para parte da sociedade que
acompanhou o caso e que torcia para que as duas, mãe e filha, fosse reunidas
novamente, na sexta-feira, 14, a Justiça revogou a guarda provisória que havia
sido concedida a avó, e determinou a que jovem voltasse a morar com a mãe. No
mesmo dia, a ordem foi cumprida. A queda de braço na Justiça foi intensa, mas a
verdade prevaleceu.
O
caso ganhou repercussão nacional e era grande o número de pessoas que torciam
para que o preconceito religioso não separasse duas pessoas que se amam. Na
quinta-feira, 13, moradores de Araçatuba se reuniram em frente ao Conselho
Tutelar, em um ato ecumênico de protesto contra a intolerância religiosa. Dali
seguiram para uma praça da cidade.
As
falas das lideranças durante o ato, versavam todas sobre o tema da
intolerância. É lamentável que em um país que se diz laico não exista
diversidade. O jornal Folha da Região, de Araçatuba, destacou a fala do
babalorixá, Rogério Guerra, responsável pelo terreiro onde os fatos ocorreram.
“Nós que somos de matrizes africanas
sofremos preconceito religioso. Nós só queremos a liberdade de cultuar nossos
ancestrais e as divindades nagô. Nós todos temos direito de vivermos nossa fé e
em pleno século XXI ainda sofremos”.
O
mesmo jornal também destacou a fala do reverendo Paulo Sanda, da igreja
Anglicana: “O que está acontecendo em
Araçatuba, já acontece há 520 anos com a população indígena que enfrenta
constante perseguição. Esquecem da cultura do Brasil e da cultura ‘afro’. Mas
nós estamos vivos, felizmente, e estamos na luta”.
Estes
fatos dessagráveis devem e merecem receber destaque midiático, e mais
importante que isso, devem merecer o repúdio de toda a sociedade para que não
se normalize um comportamento animal que advém da intolerância e do preconceito
seja ela de qual tipo for.
São
recorrentes no Brasil os casos de violência contra os praticantes da umbanda e
do candomblé. Já houve no país diversos casos de praticantes dessas religiões
que tiveram seus locais de culto apedrejados ou incendiados. Também já houve
casos de apedrejamento de pessoas, como foi o caso da adolescente, de 11 anos,
no subúrbio do Rio de Janeiro.
Era
domingo, 14, de junho de 2015. A adolescente, a avó dela, que é mãe de santo, e
outras pessoas, andavam pelas ruas vestidos de branco, com os trajes
caraterísticos da religião. Haviam acabado de sair do culto de candomblé.
Estavam indo para casa, na Vila da Penha, descansar após o trabalho religioso.
No
caminho do grupo, a apareceram dois homens que, com a bíblia nas mãos, gritavam
exaltados, chamando o grupo de “diabos”, e dizendo que eles “iam para o
inferno”, que “Jesus estava voltando”, e essas coisas.
As
agressões não ficaram apenas no nível verbal. Eles pegaram uma pedra e jogaram
em direção ao grupo. A pedra bateu em um poste e depois atingiu a cabeça da
menina.
Não
podemos aceitar mais viver numa sociedade que privilegia o ódio em vez do amor.
E hoje, mais do que nunca, devemos repudiar esses comportamentos raivosos. E
por que isso se faz mais necessário que nunca?
Ora,
é fato que estamos vivendo em nosso país uma grande polarização entre esquerda
e direita que não tem nada de bom a nos oferecer. Ao contrário, o que temos
visto são as redes sociais recheadas de discursos de ódio. As pessoas já não
sabem mais conversar sobre perspectivas, esperanças, e sonhos. Em vez do pão do
amor, compartilha-se o pão do ódio. Não sabem conviver com quem pensa
diferente.
A
classe política e seus seguidores, à exceção de alguns poucos, estão muito mais
empenhados em destruir reputações dos adversários, espalhar fake news, do que
discutir projetos de um Brasil melhor.
E
todo esse quadro de violência respinga em outros setores da sociedade. Resulta
na incapacidade de aceitar o outros em suas diferenças sem agredi-los. `
Para terminar este artigo, deixo aos leitores e
leitoras duas reflexões. Uma está na fala de Kate Ana
Belintani, mãe da adolescente cujos fatos foram relatados nesse texto.
Falando
ao portal G1 ela diz: “Felicidade de mãe
agora não cabe no peito. Não temo mais perdê-la. Ficou provado que não houve
nada. Que fique a lição, com toda a repercussão, que as pessoas não
discriminem, não só a religião, mas por raça. As pessoas ainda não entendem a
religião”.
A
outra reflexão é de Claudia Alexandre, doutora em Ciência da Religião e
pesquisadora da PUC-SP. Ao portal UOL notícias, ela chama a atenção de como o
ataque a uma religião em particular torna claro a polarização da sociedade. “Eu
vejo uma questão muito mais grave, que é como as pessoas não conseguem mais se
relacionar, apartadas por um discurso de ódio, de odiar o outro, ao ponto de
separar uma criança de sua família, por conta de uma confissão religiosa que o
outro tem. É preciso repensar imediatamente em que sociedade estamos, se a lei
realmente vai agir no caso do racismo. E quem vai restituir a saúde psicológica
de uma criança que passa por uma situação como essa, da família e das pessoas
do convívio religioso”.
Para
ser seguidor de uma religião, qualquer que seja ela, deve se observar
princípios como a paciência, a fé, a tolerância. Se não se tem essas coisas no
agir cotidiano, algo está profundamente errado na crença que essa pessoa
professa.
Aos
atingidos pelo preconceito e pela intolerância é preciso ser muito forte para
não se deixar abalar diante dos obstáculos colocados no caminho, nem pelas
pedras jogadas na direção deles.
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