Quinta-feira.
24 de abril
“Hoje eu tive um sonho
E foi o mais bonito
Que eu sonhei em toda a minha vida
Sonhei que todo mundo vivia preocupado
Tentando encontrar uma saída
quando em minha porta alguém tocou
Sem que ela se abrisse ele entrou
E era algo tão divino, luz em forma de
menino
E uma canção me ensinou”.
(Guerra
dos Meninos – Roberto e Erasmo Carlos)
Que
não chegou a tempo...
Como
vocês já sabem, me chamava Bernardo Boldrini, tinha 11 anos e morava na cidade
de Três Passos, no Estado do Rio Grande do Sul. Meu pai, Leandro Boldrini é um
conhecido e respeitado médico-cirurgião, um excelente profissional. Ele é
casado com a bela e competente enfermeira, Graciele. Os dois tem uma filha,
minha irmã, com um ano e poucos meses.
Fui
feliz até o dia 10 de fevereiro de 2010. Naquele dia, uma trágica notícia caiu
como uma bomba sobre a minha cabeça. Minha mãe, Odilaine Uglione, saiu de casa
dizendo que ia a clinica onde ela e meu pai trabalhavam (eles também eram
sócios no negócio), a fim de resolver um assunto. A relação entre ela e meu pai não
andava muito boa. Eles estavam pensando em se divorciar. Faltavam apenas três
dias para ela assinar a separação. Os dois já tinham acertado com os advogados
e, em decorrência da partilha de bens, minha mãe receberia R$ 1,5 milhão e ainda teria
direito a uma pensão de R$ 10 mil por mês. Ao sair de casa mamãe me abraçou Ela
estava bem, pelo menos não parecia triste, deprimida ou coisas desse tipo.
Sentia-se até um pouco aliviada pois vinha sofrendo muito ultimamente.
Passadas
algumas horas após a saída dela, chegou em minha casa alguns policiais dizendo
que minha mãe havia se suicidado dentro da clinica, com um tiro na cabeça.
Minha mãe tinha apenas 32 anos quando isso aconteceu e meu pai tinha 38 anos.
Ao ouvir aquela triste notícia, as lágrimas começaram a cair de meu rosto, como
caem as águas da cachoeira. Custei a acreditar que meu precioso tesouro havia
ido embora de um modo tão trágico. Na verdade, tinha minhas dúvidas de que
minha mãe houvesse cometido suicídio. Vô Jussara acreditava que ela tinha sido
assassinada. Mas não podíamos fazer nada, pois os laudos periciais concluíram que foi suicídio. Não adiantava brigar: eram as palavras dos peritos contra as
nossas suspeitas.
Quando
minha mãe morreu eu tinha sete anos. Após a morte dela, a felicidade fez as
malas e saiu de minha casa para nunca mais voltar. Desfez-se tal qual se tal qual se desfazem os castelos de areia. O
mais triste para mim foi ver que meu pai não partilhava da dor pela perda de
minha mãe. Nunca o vi derramar uma lágrima sequer. Enquanto meus olhos e os de
minha vô, pareciam rio à transbordar, os de meu pai eram rio seco pelo qual não
corria água há muito tempo.
Acho
normal o marido querer arranjar uma outra companheira quando a mulher morre. Afinal de contas, ele precisa de alguém que lhe dê suporte emocional para superar aquela
dor e, até mesmo, pensando em questões práticas, como a criação dos filhos.
Evidentemente, tudo isso após guardar o luto por aquela que foi sua
companheira. No caso de meu pai, essa coisa de arranjar uma nova namorada foi algo
escandaloso. Menos de um mês depois da morte de minha mãe, ele andava de braços
dados com a loira e bonita Graciele. Graciele era enfermeira, porém, havia sido
contratada como secretaria de meu pai. Ela já havia namorado outros médicos na
cidade e confessara, certa vez, a uma amiga, que seu sonho era se casar com um médico.
Não
demorou muito para que eles se casassem e Graciele viesse morar em nossa casa.
A partir do dia em que entrou em nosso lar como dona da casa, ela começou a
viver o sonho dela e eu começava a viver o meu inferno. No início, ela fez o
papel da boa madastra. Levava-me para passear, tomavamos sorvetes juntos,
brincavamos muito também. Depois de um certo tempo, a máscara de mulher afável
caiu e eu, assustado, percebi que, por trás daquele rosto bonito e daquela
mulher amável, se escondia uma mulher má e estupidamente ambiciosa.
Kelly
- era assim que nós a chamávamos na intimidade - tinha uma mente fértil, porém,
inclinada ao mal. Vivia inventando coisas que eu não havia feito e quando meu
pai chegava fazia ele acreditar em suas mentiras. E meu pai acreditava nas
coisas que ela dizia. Ficava bravo, às vezes me batia, ou me dava alguma outra
espécie de castigo.
Na
escola em que estudava, frequentemente, havia reuniões de pais e mestres. Pensa
que eles apareciam por lá? Nunca. Se queria mesmo ficar por dentro dos assuntos
da escola, era eu mesmo quem tinha que ir a essas reuniões. Ainda falando da
escola, eu passava a maior vergonha entre os meus amigos, pois eu nunca tinha
dinheiro para compra lanches. Se não ficava com fome por completo, era porque
os meus amigos dividiam o lanche deles comigo. Enquanto eles estavam sempre
cheirosos e limpinhos, eu andava com o mesmo uniforme sujo e amarrotado durante
dias seguidos. Sapatos novos e roupas novas? Esses presentes, fazia tempo que
não ganhava nenhum.
Nas
férias escolares, meus amigos costumavam viajar com os pais. Meu pai e minha madrasta também costumavam viajar para fora do país. Eu nunca os acompanhava.
Eu ficava na casa dos amigos e familiares, na cidade mesmo, ou quando alguma
dessas boas almas me levava para algum lugar, era no mínimo, até a cidade mais
próxima.
Havia
coisas bem piores que estas. Eu não tinha as chaves de casa. Então muitas vezes
eu chegava em casa e a porta estava fechada. Certa vez, fazia muito frio e eu
estava sem agasalho e apenas de chinelos. Fiquei esperando algum tempo que
alguém chegasse para abri a porta de casa, naquele frio que quase me cortava a
pele. Um dentista, conhecido nosso, passou e me viu naquele sofrimento, então
ele teve a bondade de me levar para a casa dele.
Isso
ainda não foi o pior. Certa noite, eu dormia tranquilamente em minha cama. De
repente, acordei sufocado, agoniado e gritando. Era como se tivesse me faltando
a respiração. Quando despertei por completo, vi a Kelly perto de minha cama,
com um travesseiro na mão. Perguntei o que ela fazia ali e ela me respondeu que
tinha ido apenas fechar as janelas. Desconfio que naquela noite ela tentou me
matar, asfixiando-me com um travesseiro.
No
dia 04 de abril deste ano, uma sexta-feira, ela me encheu de esperança dizendo
que teríamos que ir a cidade de Frederico Westphalen, pois ela gostaria de me
dar uma televisão nova. Fiquei super feliz com a novidade. Contei para todos os
meus amigos da escola que iria ganhar uma nova TV. Quando voltei da escola
naquele dia, ela estava na maior pressa em sairmos comprar a TV. Não tive nem
ano menos, tempo de trocar o uniforme da escola. Saí do mesmo jeito que
chegara: sujo e suado. Aliás, essa coisa de andar sujo e suado não era nenhuma
novidade para mim. Ela me disse também que, depois, nós passaríamos na casa de
uma benzedeira, uma rezadeira.
Achei
estranho quando ela me deu um comprimido para eu tomar. Disse-me que o
medicamento servia para que não vomitasse durante a viagem. Na verdade, o
remédio servia para que eu adormecesse, era uma primeira tentativa de me dopar.
Estava tão ansioso pela novidade que o remédio não fez efeito algum. Ela
dirigia a caminhonete preta, uma L200, em alta velocidade, a 117 km/h. O carro
parecia voar por sobre o asfalto. A polícia rodoviária nos parou e multou a
Graciele, advertindo-a para que não corresse daquele jeito. Vi quando o
policial olhou em minha direção no banco de trás do carro, acho que ele queria
conferir se eu estava usando cinto de segurança. Até acenei para ele, pois
achei que, diante da velocidade em que estávamos, ele tinha sido até simpático.
Descemos
da caminhonete, próximo a um posto de gasolina e uma amiga de Graciele, a
assistente social Edelvânia Wirganovicz, se juntou a nós. Estranhei a presença
dela, mas minha madrasta me disse que ela nos ajudaria a fazer as compras. Kelly
deixou a caminhonete estacionada no posto e entramos no carro de Edelvania.
Antes de entrar no carro, notei que havia câmeras do posto de gasolina,
apontadas em nossa direção. Dentro do
carro, a madrasta me deu mais um daqueles comprimidos. Quando perguntei onde
estávamos indo, ela me disse que íamos à casa da benzedeira e que para isso ele
precisava apenas levar uma picadinha na veia. Foi quando ela pegou uma seringa
e aplicou na veia do meu braço esquerdo.
A partir daí as coisas foram perdendo a nitidez... O mundo foi perdendo
a cor... E eu fui apagando devagarzinho, feito uma vela... Até que apaguei
completamente.
Elas
me levaram para um lugar afastado na beira de um rio. No local já havia uma
cova pronta, acho que uma delas, ou as duas já tinham ido antes ao local e
prepararam tudo direitinho. Depois elas tiraram minha roupa, meu uniforme da
escola, que ainda estava usando. Tiraram também os meus tênis. Depois colocaram
meu corpo no buraco. Kelly jogou soda caustica sobre meu corpo para que ele
fosse consumido com mais rapidez e não deixasse mau cheiro. Edelvania colocou
pedras em cima de mim e depois cobriram tudo com areia.
O
que restou do meu corpo foi encontrado na noite de segunda-feira, dia 14, dentro
de um saco plástico e enterrado próximo às margens de um rio, em um matagal, um
local de difícil acesso.
A
multa que Graciele levou no caminho, as câmeras de segurança do posto de
gasolina e a nota de compra de um extintor para carro foram fundamentais para
que a polícia esclarecesse imediatamente o crime. Logo após a descoberta do corpo, foram presos;
minha madrasta Graciele, meu pai Leandro e a amiga deles, Edelvania. Quanto a
meu pai, a polícia ainda está investigando a participação dele no crime.
Por
que todo esse ódio que eles sentiam por mim? Ambição desmedida. Quando eu
fizesse dezoito anos, herdaria a parte da herança que minha mãe havia deixado.
Eles não estavam interessados em dividir a herança, queriam toda a fortuna para
eles. Quanto a Edelvania, coitada dela também. Em troca de dinheiro para pagar
um apartamento, ela ajudou a tirar a vida de um inocente.
Quanto
a mim, seguirei meu caminho pela eternidade e descansarei em paz, junto à minha
mãe. Na manhã de terça-feira, dia 15, meu corpo foi enterrado no Cemitério
Ecumênico Municipal de Santa Maria (RS), no mesmo cemitério onde minha
querida mãe foi enterrada, em 2010. O cemitério estava lotado e o carinho dos
amigos e familiares que lá estavam embalaram minha alma e a encheram de
ternura. Há 295 km dali, em Três Passos, cidade onde nasci e na qual morava,
houve um absoluto silêncio e lagrimas rolaram em muitas faces. Havia muita
revolta também. Os habitantes quiseram colocar fogo na casa em que meu pai
morava. A polícia chegou e os convenceu de que se fizessem aquilo, estariam
destruindo provas.
A
você que leu esse triste relato, eu peço que me ajude, rezando por mim para que sejam
afastadas as sombras que me perseguiram nos últimos anos de minha breve vida
terrena. Bernardo Uglione Boldrini é meu nome.