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Glória Maria: O adeus a uma rainha do jornalismo

Posted by Cottidianos on 22:07

Quinta-feira, 02 de fevereiro

Mas se a tristeza tem dia

Tua força me guia meu caminho é o mar

E que lançem as pedras

Yemanjá faz areia pra não machucar

 (Prece de Pescador - Joviniano José Velloso Barretto /

Roque Augusto Ferreira)

Em busca de informação navego na Internet, leio artigos impressos, vejo jornais televisivos, e documentários, mas uma das minhas principais fontes de informação é o rádio. Ouço rádio na Internet, mas ouço no aparelho de rádio raiz, daqueles que você vai rodando o dial, até achar a estação preferida, e minha estação preferida é a CBN.

Foi assim, através das ondas radiofônicas, que fiquei sabendo de acontecimentos recentes como a vitória do presidente Lula em outubro passado, e da morte Gal Costa, e agora, da Glória Maria.

Hoje pela manhã, fazia tarefas cotidianas em casa. Ouvia um quadro dentro do Jornal da CBN chamado Hora de Expediente. O quadro é apresentado por Dan Stulbach, José Godoy e Luiz Gustavo Medina. O quadro havia acabado de começar quando Cassia Godoi, apresentadora do jornal, interrompeu, pois, uma repórter do Rio chamava. Logo pensei que era notícia importante, pois os apresentadores não costumam interromper um quadro do programa para dar notícia, a não ser que elas sejam de relevância.

E de fato a repórter trouxe a triste notícia. Depois chamaram a Maju Coutinho para comentar a notícia. Maju conseguiu falar um pouco, mas depois começou a chorar, pediu desculpas, e interrompeu o comentário.

Faz tempo que vejo a Glória na TV, mas, no momento, não lembro de nenhuma reportagem especial que ela tenha feito. O que me vem a memória mesmo é o jeito dela fazer jornalismo.

Ela fazia da notícia uma experiência e mergulhava profundamente nessa experiência. Fazer notícia para ela não era uma coisa fria, nem morna, também não era quente demais, era na justa medida para dar a reportagem um tempero especial, um sabor diferente. Se o assunto da reportagem pedisse que ele atravessasse desertos, rios, e mares, de manhã, de tarde ou de noite, se pedisse que ela saltasse de paraquedas, ou um salto de asa delta, caminhar por desfiladeiros, lá estava ela, talvez, morrendo, de medo, mas firme e forte, se jogando de cabeça naquela reportagem.

“Eu sou uma pessoa movida pela curiosidade e pelo susto. Se eu parar para pensar racionalmente, não faço nada. Tenho que perder a racionalidade para ir, deixar a curiosidade e o medo me levarem, que aí eu faço qualquer coisa”, disse Glória, falando de seu próprio trabalho.

E era por isso que ela cativava o telespectador. Essa espontaneidade que ela esbanjava fartamente em suas matérias fazia que quem estava em casa se identificasse e se reconhecesse dentro daquela matéria, pois Glória reagia aos acontecimentos e as emoções que o momento exigia como o telespectador também agiria diante da mesma situação.

Há pessoas que estão à frente de seu tempo, e Glória era uma dessas pessoas. Nas religiões de matrizes afro-brasileiras existe um orixá chamada Iansã, que ocupa o trono feminino da lei. Quando levanta sua espada não há guerra que Iansã não vença, e quando falo de vencer, não é apenas os inimigos externos, mas as nossas lutas interiores, a injustiças que se nos apresentam e as pedras que aparecem em nosso caminho.

Glória Maria esse arquétipo de mulher guerreira, batalhadora, lutadora, que gostava de inovar, e que não tinha medo do novo, do desconhecido. Uma Iansã que pegou carona num raio e foi embora no dia de Iemanjá.

O sol não nasce no meio do céu, ele vai se levantando devagarinho, devagarinho, um raio, depois o outro, e logo está brilhando com todo o seu esplendor, dominando o céu. Assim foi Glória. Chegou na TV Globo e foi começando bem debaixo, fazendo a apuração da notícia, naquele tempo em que Internet nem sonhava em existir, e muito menos ser tão rápida como a conhecemos hoje.

A jovem profissional foi ali fazendo apuração dos fatos, usando as páginas das listas telefônicas, buscando fontes, enfim, envolvida e apaixonada pela notícia, e como o sol se levanta no céu, foi se levantando também o seu talento, e força da sua personalidade.

Glória Maria estava na TV Globo desde 1970 e quem a levou para lá foi uma amiga. O primeiro trabalho dela na redação foi o de rádio escuta. A função do rádio escuta era ficar ouvindo as frequências do rádio da polícia ou dos bombeiros para se informar do que estava acontecendo pela cidade, e filtrar as ocorrências que poderiam virar notícia.

De repente sala de redação era invadida pelos gritos do rádio escuta dizendo que um prédio estava pegando fogo, que em tal rodovia acabara de acontecer um acidente, ou que em tal bairro havia um tiroteio. Coisa impensável nos dias de hoje.

A primeira reportagem em um telejornal da emissora foi em 1971, e o assunto era a queda do viaduto Paulo Frontim, no Rio de Janeiro. Naquela época os repórteres não apareciam no vídeo, era uma praxe do jornalismo. Os câmeras se posicionavam de forma que aparecia só a mão do jornalista segurando o microfone.

Uma pioneira em vários aspectos, ela foi a primeira repórter a entrar ao vivo e uma transmissão em cores no Jornal Nacional, ícone de audiência da TV brasileira. Na ocasião Glória falou do movimento de saída de automóveis do Rio de Janeiro durante um fim de semana. Em 2007, em outro momento pioneiro, ela fez a primeira transmissão em alta definição em uma reportagem para o Fantástico, falando da festa do pequi, uma fruta amarela dourada, no Alto Xingú.

E assim era Glória; primeira mulher negra a conseguir destaque no telejornalismo brasileiro, primeira mulher a fazer cobertura de uma guerra. Enfim, Glória deixa um legado imenso para o jornalismo brasileiro. Foi e será fonte de inspiração não para as mulheres negra, mas para todas as mulheres, jornalistas ou não, que decidem que nasceram para brilhar e brilham. E não só para as mulheres, mas para todos os homens que amam a notícia e que fazem dela sua paixão.

Na TV Globo, Glória Maria foi ancora do RJ TV, do Bom Dia Rio, e do Jornal Hoje. Durante o período de 1998 e 2007, ela apresentou o Fantástico. Além de diversas reportagens especiais que fez, e das reportagens que fez nos telejornais da emissora.

Michael Jackson, Mick Jagger, Madonna, Elton John, Freddie Mercury, Julio Iglesias, Roberto Carlos, Leonado DiCaprio, Harrison Ford e Nicole Kidman, foram apenas alguns dos seus entrevistados.

Falei logo no início que a Maju Coutinho havia chorado durante uma entrevista ao Jornal da CBN, mas não só ela, o repórter Heraldo Pereira chorou ao falar dela no Bom Brasil, e o apresentador Pedro Bial também chorou ao falar dela durante o programa Encontro.

Choram os amigos que tiveram o privilégio de conviver e trabalhar junto com Glória Maria, e chora também o jornalismo brasileiro que perdeu uma estrela de primeira grandeza.

Em 2019, Glória descobriu que tinha um tumor no cérebro, e desde então vinha fazendo tratamento contra a doença. Hoje, apesar de toda a luta foi vencida pelo tumor. Também os guerreiros e guerreiras são vencidos pelas doenças. Faz parte da jornada da vida.

“É com muita tristeza que anunciamos a morte de nossa colega, a jornalista Glória Maria’, informou a TV Globo em nota. A jornalista morreu esta manhã no Rio de Janeiro. Seu legado para o jornalismo será eterno.

Enfim, vida que segue, de formas diferentes, para Glória Maria e para nós. Penso que Iemanjá viu sofrimento e a levou para um lugar de paz, junto do grande Pai de todos nós.

Descanse em paz, guerreira! Sentiremos usa falta.


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