As marcas da discriminação
Domingo,
21 de novembro
“Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
...
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor”
(Canto das Três Raças – Mauro
Duarte e Paulo César Pinheiro)
Sábado, 20, comemorou-se o Dia da Consciência Negra. E eu gostaria de começar
falando de uma experiência pessoal.
O
Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim, é um dos lugares favoritos onde
gosto de passear aqui, na cidade de Campinas, São Paulo. O lugar onde fica o
parque era originalmente a Sesmaria e Engenho Fazenda do Mato Dentro. É uma
grande área verde aberta ao público. Lá as pessoas vão para fazer piqueniques,
caminhadas, andar de bicicleta, enfim, fugir um pouco da rotina. Segundo
informações do Wikipedia, o local possui uma área de “2.850.000 m² (sendo
1.100.000 m² aberta ao público”.
A
data de fundação da fazenda é de 1806. Ainda faltavam 133 anos para que a
escravidão fosse abolida no Brasil. Portanto, os donos daquela enorme fazenda
também tinham escravos. E julgar, pelo tamanho da casa em que moravam e o
tamanho das terras que possuíam, também eram donos de muito capital.
O
parque conserva alguns prédios remanescentes da construção original, entre elas
a casa grande, onde moravam os senhores do engenho, a casa anexa, a capela, e a
senzala. Antes, esses prédios também eram abertos à visitação pública. Hoje, o
público só consegue ver o exterior das construções.
Porém,
quando estavam ainda estavam abertos à visitação, tive a oportunidade de entrar
neles. Fui junto com um amigo. Comecei visitando a pequena capela onde os donos
daquelas terras e seus familiares faziam suas orações, depois entrei na
casa-grande.
Passeamos
tranquilamente pela parte de cima, onde viviam os senhores de engenho. Olhando
o mobiliário, louças, e outras coisas que estavam expostas deu para ter uma
visão dos costumes dos habitantes daquela época e, especialmente, daquela casa.
Enquanto estávamos visitando essa parte da casa, tudo me pareceu muito
tranquilo. Meus sentimentos estavam todos em harmonia.
No
subsolo da casa grande, ficavam as instalações onde os escravos eram alojados.
Desci até lá, junto com o meu amigo. Lá estavam expostos objetos referentes ao
mundo dos escravos, objetos com os quais eles eram torturados, e tudo o mais. O
contraste entre os dois ambientes era gritante. Lá em cima, o luxo. Embaixo, a
mais pura simplicidade.
Imediatamente
quando entrei naquele ambiente, fui acometido por uma outra sensação, bem
diferente da que tinha experimentado quando visitei o espaço onde ficavam os
donos do engenho. Comecei a sentir uma sensação de como quem está sufocando. Me
faltava o ar. Não conseguia respirar. Não aguentei ficar muito tempo ali, e saí.
Meu amigo, que também desceu até a senzala junto comigo, não sentiu as mesmas emoções.
Embora
não percebamos, mas o bem, ou mal que praticamos, cria em torno de nós, e
daqueles que nos rodeiam um campo de energia, igualmente boa ou má. Os escravos
daquela fazenda viveram ainda nos anos 1800, muito tempo já se foi, mas a
energia pesada na qual eles viviam ainda estava impregnada naquele ambiente.
Nas
senzalas do Brasil colônia e do Brasil Império, certamente, circulava uma
energia de dor e sofrimento. Havia os clamores de corpos cansados implorando
por descanso e paz, e consciências roubadas implorando por liberdade. Havia
muito ódio contra senhores tiranos. Claro, havia também momentos de alegria e
de festa, mas, creio, ser os primeiros dominantes. Finalmente, em 13 de maio de
1888, os escravos receberam suas cartas de alforria, e tudo mudou.
Será
que mudou mesmo?
Para
começar, os escravos saíram dos locais onde trabalhavam, como dizemos
atualmente, apenas com a roupa do corpo. É como se os trabalhadores das
indústrias do Brasil fossem mandados embora sem direito a coisa alguma. Sem
serem remunerados pelo tempo em que trabalharam para suas empresas.
Como
recomeçar a vida numa situação dessas? Foi mais ou menos isso o que aconteceu
com o povo escravizado libertado pela Lei Áurea. E o pior, o estado brasileiro,
não fez a menor ação no sentido de prover aquele povo de meio algum meio com os
quais eles pudessem recomeçar suas vidas.
Vale
destacar que o Brasil foi o último país do continente americano a abolir a
escravidão, e Campinas, a última cidade brasileira a fazer o mesmo.
A
“demissão” dos escravos naqueles fins de 1800, e a ida deles para a rua da
amargura, deixou para o povo negro uma herança de pobreza, miséria, racismo e
preconceito. Ainda hoje, os negros ainda são atingidos pelas balas do
preconceito, e pelos tiros que saem das armas dos policiais.
Por
que o Dia da Consciência Negra é comemorado no dia 20 de novembro, e não em 13
de maio?
Por
que, como vimos, nas ações que resultaram nos eventos de 13 de maio, os negros
foram coadjuvantes, e não protagonistas. Foram os brancos que lutaram pela
causa abolicionista, foi uma princesa branca que assinou a Lei Áurea.
Dia
20 de novembro foi o dia da morte de Zumbi dos Palmares, o líder do maior
quilombo brasileiro e que mais tempo resistiu ao poderio português. Apenas sob
o comando de Zumbi foram quase 20 anos de luta. Ele assumiu a liderança do
quilombo em 1678. Os primeiros registros da chegada dos negros ao Quilombo dos
Palmares se dão por volta do ano de 1580. Sem dúvida, a história de Palmares
explicita uma história de luta e resistência contra a opressão que reinava nas
fazendas de açúcar e de café, e também contra os portugueses que temiam o poder
de organização social e política que os quilombolas conseguiram desenvolver
dentro dos quilombos.
A
luta dos negros não terminou com a abolição da escravidão. Ao contrário, ela
continua até hoje. Em parte, herança daquela “demissão” em massa, sem direito a
nenhuma remuneração por tempo trabalhado, em parte porque tem gente cujo
pensamento não evoluiu e ainda pensam
que ainda estão nos atrasados tempos, em que se achava que negro não merecia
circular nos mesmos lugares que os brancos, e nem frequentar os mesmos espaços
que eles. Diríamos que são pessoas mentalmente atrasadas em relação ao espaço e
ao tempo.
Por
exemplo, neste dia 20 de novembro, dia em que se comemorava o Dia da
Consciência Negra, enquanto várias cidades brasileiras faziam suas comemorações
e protestos, dois irmãos, em Belo Horizonte, sentavam-se na cadeira de uma
delegacia para registrar um boletim denunciando uma injuria racial que
sofreram.
Carlos
Miguel de Almeida, anos, e Carlos Eduardo Almeida, 22 anos, saíram no sábado á
noite para ver a partida do time do coração: O Atlético Mineiro. O Atlético
jogou naquela noite com o Juventude.
Já
dentro do estádio ocorreu uma discussão. Segundo os jovens, um homem que eles
conheciam por terem amigos em comum com ele, dirigiu-se até os dois irmãos e
falou para eles: “Estão olhando o quê, macaco? Bando de macacos”.
Ao
Portal G1, Carlos disse “Senti uma angústia tão grande (...) Por ser uma
pessoa que a gente conhece, sabe quem é, foi o que doeu mais. Não tem desculpa
porque estava bêbado, ele sabia o que estava falando”.
A administração do estádio disse que repudia os casos de discriminação e injuria racial e que a atendimento, orientação e acolhimento foi prestado aos dois ofendidos. E que auxiliará as autoridades nas investigações. A administração também disse que tem trabalhado em campanhas educativas.
E
ainda dizem que o Brasil não é um país racista. O próprio fato de serem
elaboradas campanhas educativas contra o racismo é uma prova cabal de que ele
existe em nossa sociedade. Basta olhar para as estatísticas de mortes pela
polícia na qual os negros são a maior parte das vítimas em relação aos brancos,
e a falta de negros em alguns ambientes e postos de trabalho para vermos outras
provas evidentes que o racismo ainda é muito forte em nosso país.
Mesmo
quando os negros chegam a postos de destaques, nem assim eles são poupados.
Na
noite de segunda-feira, 08, deste mês, ocorria uma sessão na Câmara Municipal
de Campinas. A vereadora do PT, Paolla Miguel, ocupava a tribuna fazendo um
discurso no qual abordava o projeto que trata do Conselho de Desenvolvimento e
Participação da Comunidade Negra e um Fundo Municipal de Valorização da
Comunidade Negra, quando, da área destinada ao público ouve-se uma voz de
mulher que dizia: “Preta lixo”.
Na
hora, o vereador Zé Carlos (PSB), disse: “Alguém na plateia disse uma
besteira. Nós estamos gravando a sessão. Nós vamos buscar as imagens, e quem
falou vai pagar [...] Já vieram três vereadores falar aqui do racismo que
aconteceu aqui dentro. A TV Câmara grava neste momento e já vai separando essas
imagens. Quem fez isso vai pagar. A gente está pedindo com educação. As imagens
falam por si, fiquem tranquilos. Eu vou expor aqui na Câmara quem falou essa
bobagem”.
A
vereadora registrou um boletim de ocorrência por injúria racial e uma
investigação se seguiu. A mulher foi identificada e prestou depoimento. À polícia
a mulher disse que foi mal interpretada. Que não tinha intenção de proferir a
ofensa. Quem for bobo que acredite que ela não tinha intenção de ofender.
Também o que esperar de uma pessoa que estava na Câmara Municipal de Campinas gritando
que as vacinas contra a Covid-19, matam? A mulher fazia parte de um grupo que protestava
contra o passaporte de vacina. Nas galerias da Câmara o grupo gritava: “Vacina
mata”.
É lamentável que o tempo tenha passado, que a escravidão tenha ficado no passado. É louvável que avanços tenham chegado. Mas é triste ver que algumas mentes tenham ficado no passado, que ainda vivam no passado opressor dos tempos das senzalas. E, radicados nesse tempo, sem dele querer sair, ainda não compreenderam que racismo nos tempos atuais é crime, e que peito de negro não é alvo sobre o qual eles possam praticar tiro ao alvo. E racismo tem mesmo que ser considerado crime, porque racismo mata.
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