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Claas Relotius: O astro impostor da Der Spiegel
Posted by Cottidianos
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00:15
Segunda-feira,
11 de março
Ele
era um belo guerreiro. Tinha dois metros e noventa centímetros de altura. Sobre
a cabeça usava um capacete de bronze e vestia uma impressionante couraça de
escamas de bronze que pesava cerca de 60 quilos. Em suas pernas, trazia
caneleiras de bronze, e, nas costas, trazia um dardo também de bronze
pendurado. A haste de sua lança era parecida com uma lançadeira de tecelão, e
apenas a ponta de ferro dela pesava sete quilos e duzentas gramas. Por via das
dúvidas, um escudeiro seguia sempre à sua frente. Era guerreiro desde a
mocidade estava, portanto, acostumado a vencer grande batalhas e a derrotar
muitos guerreiros. Seu nome era Golias.
O
filisteu Golias, desafiava os israelitas. Dizia ele: “Por que vocês estão se
posicionando para a batalha? Não sou eu um filisteu, e vocês os servos de Saul?
Escolham um homem para lutar comigo. Se ele puder lutar e vencer-me, nós
seremos seus escravos; todavia, se eu o vencer e o puser fora de combate, vocês
serão nossos escravos e nos servirão”. E acrescentava: “Eu desafio hoje as
tropas de Israel! Mandem-me um homem para lutar sozinho comigo”.
Ninguém
se atrevia a lutar com aquele gigante, acostumado a vencer batalhas e a
derrotar adversários.
Não
havia encontrado, até um dia em quem um rapaz, franzino, e sem experiência
nenhuma em guerra, havia ido deixar mantimentos para os irmãos que estavam no
campo de batalha. O nome desse rapaz era Davi.
Ao
chegar ao local em que os irmãos estavam Davi tomou conhecimento do filisteu e
de suas ameaças. E decidiu que era ele, Davi, pequeno e franzino, que iria
lutar contra o gigante Golias. Certamente, os soldados devem ter pensado que
Davi enlouquecera.
O
desejo de Davi chegou aos ouvidos do rei Saul. O rei disse a Davi: “Você não
tem condições de lutar contra esse filisteu; você é apenas um rapaz, e ele é um
guerreiro desde a mocidade”.
Davi,
porém, disse ao rei que era ele quem cuidava do rebanho de ovelhas do pai e
que, quando aparecia um leão ou um urso e levava alguma delas, ele os
perseguia, dava-lhe golpes e livrava a ovelha da boca das feras. E quando esta
se virava em direção a ele, ele lhes pegava pela juba e dava-lhes golpes até
matá-los.
O
relato e a coragem convenceram o rei, e este deu o aval para que Davi
enfrentasse Golias.
Saul
armou Davi como a um guerreiro. Vestiu-lhe túnica, colocou nele uma armadura, e
lhe pôs na cabeça um capacete de bronze. O rapaz, não conseguia nem andar com
toda aquela parafernália, e tirou a armadura e o capacete. Seguiu apenas com a
espada sobre a túnica, ainda assim fazendo esforço para andar.
Pegou
seu cajado, e seguiu seu rumo em direção ao lugar onde estava o adversário, não
sem antes passar em um riacho e pegar as armas que estava acostumado a usar na
sua lida, entre os animais: cinco pedras lisas, e as colocou no seu alforje de
pastor. Pôs sua atiradeira na mão, e se aproximou de Golias.
O
gigante olhou com desprezo para o adversário que havia resolvido lhe enfrentar.
Fez pouco caso daquele rapazote de aparência frágil e com armas de matar
passarinho.
E
foi, com aquela arma simples, que Davi atirou uma pedra certeira na cabeça de
Golias, fazendo-o tombar, conseguindo dessa forma, aquilo que parecia
impossível: vencer o filisteu tão temido pelos israelitas.
Um
pouco longa essa introdução, ou melhor esse resumo do relato da batalha entre
Davi e Golias, tirado do livro de Samuel, capítulo 17, da Bíblia Sagrada.
Versões
desta batalha onde o impossível acontece estão sempre ocorrendo em vários
momentos da história da humanidade, e também em nossas próprias histórias e batalhas pessoais.
Algo
parecido aconteceu dentro de um dos maiores veículos de comunicação da
Alemanha: a revista Der Spiegel. O fato aconteceu no ano passado, mas sempre é
tempo de lembrá-lo para que coisa semelhante não venha a ser repetir, nem na
Der Spiegel, nem em qualquer outro veículo de comunicação.
Class Relotius |
O
repórter Claas Relotius, 33 anos, era a grande estrela da publicação alemã. As
reportagens que ele assinava eram eletrizantes. Sabe aquelas fontes que não
falam com a imprensa em hipótese alguma? Pois é, Claas conseguia falar com elas
e trazer seus depoimentos para as reportagens que escrevia. E aqueles lugares
em que se é preciso muita cautela para transitar por eles? Ele também ia a
esses lugares com muita coragem e desenvoltura. Aliado a todo esse faro
jornalístico, histórias bem escritas, recheada de muita ação e personagens. Ao
receber as pautas mirabolantes do empenhado jornalista a reação de Ullrich
Fichtner, um dos chefes da publicação, era muito mais de satisfação do que de
desconfiança.
Com
seu arrojado trabalho, Relotius já havia recebido por quatro vezes o grande
prêmio alemão de jornalismo. Também havia ganho o prêmio “Jornalista do ano”
concedido pela CNN, em 2014. O carisma dele era tão grande que conquistou toda
a equipe e o colocou como repórter acima de qualquer suspeita.
Há
um ditado muito popular que diz que mentira tem pernas curtas. E esse ditado
caiu como uma luva para o astro do jornalismo alemão. No final do ano passado,
descobriu-se que as fantásticas reportagens que ele assinava eram falsas e os
personagens inacessíveis aos quais ele conseguia acesso eram fictícios. E todo
o castelo de cartas de Relotius ruiu por causa de um pequeno Davi dentro da
publicação: o jornalista Juan Moreno, que assinava algumas reportagens como
freelancer da lendária publicação alemã.
Era
início de novembro e Moreno fazia mais uma dessas reportagens. Dessa vez ele
estava no México, onde acompanhava uma caravana de migrantes. No meio desse
trabalho, ele recebeu um telefonema da Der Spiegel avisando que ele fora
escalado para escrever uma reportagem com o repórter astro da revista, Class
Relotius. A missão de Moreno nesse trabalho era acompanhar um grupo de
migrantes até a fronteira com os Estados Unidos e fazer um relato da viagem
deles. Enquanto isso, nos Estados Unidos, Relotius tentaria se infiltrar em um
grupo de milicianos civis determinados a impedir a entrada dos migrantes.
Qualquer
outro freelancer teria se entusiasmado com a parceria. Mas não Moreno. Ele é
como se diz aqui no Brasil “igual mineiro”, isto é, desconfiado. Já lera
trabalhos publicados pelo parceiro de reportagem e achava que alguma coisa não
combinava nelas. Algo parecia estar sempre fora da ordem. Certa vez, lera um
trabalho do conceituado jornalista da Der Spiegel sobre um assessor cubano que
lhe trouxera desconfianças sobre a veracidade da reportagem.
Mas
tudo bem. Ordens são ordens, e Moreno aceitou o trabalho em pareceria com
Relotius. De fato, o trabalho foi realizado por ambas as partes. Juan Moreno
recebeu uma preliminar do texto e logo descobriu detalhes que não se
encaixavam. Escreveu então ao departamento de checagem da revista — um
departamento no qual trabalham cerca de 60 pessoas — mas ali não lhe deram a
menor atenção. Moreno percebeu então que teria, realmente, de travar uma luta
de Davi contra Golias, e buscar a verdade dos fatos. Afinal, era seu nome que estava em jogo. Era
seu nome que, em parceria com Relotius, apareceria na reportagem forjada.
Outro
fato chamou a atenção do freelancer. O parceiro premiado de reportagem lhe
enviou uma nova cena que não havia aparecido no rascunho anterior que ele lhe
enviara. Nela um miliciano atirava contra algo que se movia, dando a entender
que esse algo que se movia era um migrante.
O
fato é que quanto mais percebia a falsidade da reportagem que ele mesmo
assinava em pareceria, mais os conflitos internos e a vontade de esclarecer a
verdade lhe tiravam o sono. A grande pergunta era sobre como fazer isso, sendo
que seu parceiro era tido pela Der Spiegel como alguém acima de qualquer
suspeita.
As
peças do quebra-cabeças foram se juntando. As descobertas foram sendo feitas,
uma a uma. Moreno foi fazendo, secretamente, um trabalho de formiguinha.
Checando suas informações, Moreno acabou descobrindo uma reportagem publicada
pela imprensa norte-americana e que era muito semelhante aos relatos descritos
por Relotius na reportagem que assinaram. Em ambas havia um personagem
miliciano chamado Jaeger, mas as descrições de ambos os personagens não
coincidiam.
Juan Moreno |
Moreno
percebeu que as inconsistências na reportagem só aumentavam. Resolveu escrever
novamente para a revista. Dessa vez dirigiu-se ao editor de Sociedade da revista,
que era quem havia encomendado a reportagem. O editor também não lhe deu
ouvidos.
Diante
da insistência de Moreno, as desconfianças acabaram se voltando contra ele
mesmo. Os editores chefes da revista acharam que era ele quem estava inventando
os fatos. Afinal de contas, Relotius era da casa. Repórter conceituado.
Enquanto seu acusador era apenas um freenlacer que trabalhava do conforto de
sua casa em Berlim, e que poucas vezes fora a sede, em Hamburgo. Juan Moreno é
filho de operários espanhóis que migraram para a Alemanha quando ele tinha um
ano e meio.
O
empenho e a motivação de Moreno em esclarecer os fatos aumentaram mais ainda.
Fez um trabalhado investigativo particular, já que não podia contar com o
pessoal da revista. Em uma viagem de trabalho aos Estados Unidos, secretamente,
aproveitou para conversar com os personagens que Relotius citara na entrevista
como tendo sido seus entrevistados. Procurou Tim Foley e Chris Maloof, supostos
entrevistados por Relotius. Mostrou-lhe fotos dele. Os dois revelaram que nunca
haviam estado com Relotius antes.
Moreno
gravou esses depoimentos em vídeos, levou-os para a Alemanha e mostrou-os aos
diretores da revista. Relotius usou como argumento o fato de que fazia
reportagens sobre atividades ilegais e que milicianos, ou qualquer outro
entrevistado que fossem citados nelas, jamais reconheceriam em vídeo que havia
cometido tais atividades. Fazia sentido. E mais uma vez foi a palavra de
Relotius contra a de Moreno.
Moreno,
entretanto, não desistiu. Continuou suas investigações com afinco. As luzes
sobre as trevas, porém, haveriam de aparecer. Acreditava ele. E apareceram. Em
03 de dezembro, a revista recebeu um e-mail de uma mulher chamada Janete. Ela
era assessora de um grupo de vigilantes que Relotius dizia ter acompanhado e
questionava como era possível que o repórter tivesse escrito uma reportagem
citando-os sem que ao menos tivesse estado lá.
A
partir daí, Moreno convenceu os diretores da revista para que checassem dados
de reportagens feitas por Relotius, e descobriram que Moreno era quem estava
com a verdade. O castelo de fantasias de Claas Relotius havia desabado.
Em
22 de dezembro a Der Spiegel publicou uma reportagem em um número especial que
dedicava 23 páginas ao assunto. Nessas páginas a revista admitia que seu
repórter premiado, Class Relotius era, na verdade, um impostor. A revista o
demitiu.
Quanto
a Moreno, depois de noites sem dormir ele, finalmente, provou que vale a pena
lutar pela verdade e pelos princípios do bom jornalismo. Fosse ele também
impostor teria ficado de braços cruzados apenas colhendo os falsos louros da
vitória. O fato é que o poder de persuasão de Class Relotius era muito grande.
Tanto que muitas das 60 reportagens que fez para a Der Spiegel eram falsas e
ninguém na lendária publicação alemã percebeu. Até mesmo Moreno teria sido
enganado se tivesse no círculo de pessoas próximas de Relotius. Ele mesmo admite que pensou em retroceder por
não acreditar que uma pessoa como Class Relotius pudesse cometer uma fraude tão
grande, dentro de uma revista tão poderosa. Mas as evidencias falaram mais
alto.
* Este texto foi baseado na reportagem “O escândalo da 'Der Spiegel’: parem as máquinas, é tudo mentira”, de autoria de
Ana Carbajosa, publicado no jornal El País Brasil, em 18 de fevereiro de 2019.
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