Arraia miúda
Domingo, 21 de fevereiro
“Em
briga de peixe grande, arraia miúda cai fora”.
“Quem
fala demais, dá bom dia a cavalo”.
Início
a postagem de hoje com esses dois ditos populares para falar do caso do deputado
Daniel Silveira, cuja prisão em flagrante, noite de terça-feira, 16, tem tido
repercussão na imprensa e provocado muitos debates. A ordem de prisão foi dada
pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moares. A reação do
ministro veio depois de assistir a um vídeo publicado nas redes sociais pelo
deputado e que continha fortes acusações e até mesmo ameaças contra os
ministros do STF.
O
vídeo publicado por Daniel Silveira excede todos os limites da liberdade de
expressão, e passa para o nível da ofensa pessoal. Com palavras de baixo calão
e em tom de ameaça, o deputado ofende a honra dos ministros, além de atacar
também os pilares da democracia. No vídeo, ele defende a cassação dos
magistrados e a volta do AI-5, um dos atos mais violentos e repressivos do
regime militar.
As
palavras de Silveira contra os ministros do Supremo são tão odiosas que ele diz
até mesmo que imaginou Fachin e todos os ministros levando uma surra: “Eu quero saber o que você vai fazer com os
generais… os homenzinhos de botão dourado, você lembra? Eu sei que você lembra,
ato institucional nº 5, de um total de 17 atos institucionais, você lembra,
você era militante do PT, Partido Comunista, da Aliança Comunista do Brasil… O
que acontece, Fachin, é que todo mundo está cansado dessa sua cara de PALAVRÃO
que tu tem, essa cara de vagabundo... várias e várias vezes já te imaginei
levando uma surra, quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa
corte… quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra… Que que você
vai falar? que eu tô fomentando a violência? Não… eu só imaginei… ainda que eu
premeditasse, não seria crime, você sabe que não seria crime… você é um jurista
pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível…. Então qualquer cidadão que
conjecturar uma surra bem dada com um gato morto até ele miar, de preferência
após cada refeição, não é crime”, diz o deputado em um trecho do vídeo.
O
vídeo tem a duração de dezenove minutos e todo ele tem o mesmo teor do trecho
destacado acima. Posteriormente, a rede social retirou do ar o vídeo.
O
ordem de prisão foi dada monocraticamente por Alexandre de Moraes, mas no dia
seguinte a decisão foi submetida em plenário para apreciação dos demais
ministros do STF sobre se manteriam ou não a prisão de Daniel Silveira. O
resultado foi que os onze ministros votaram por unanimidade para a manutenção
da prisão do deputado. A decisão final, porém, seria da Câmara dos Deputados. Era
o plenário da Câmara que decidiria se o deputado continuaria preso ou não.
A
batata quente foi então para a mão dos deputados. E a Câmara decidiu por 364
votos a favor pela manutenção da prisão dele, 130 contra, e 3 abstenções. Por
lá ninguém quis derrubar uma decisão unânime do STF, nem criar ainda mais
conflito numa relação que já vem desgastada desde que os grupos bolsonaristas se
voltaram contra o STF e contra as instituições democráticas. Desde então tem
sido constantes os ataques verbais ao STF e seus ministros.
O
ódio nunca é remédio para mal nenhum. Ao contrário, ele aprofunda as diferenças
e bloqueia o diálogo. Além de ter ameaçar os regimes democráticos os discursos
de ódio ainda podem desaguar na violência física. Foi o que vimos recentemente
ao olharmos para os Estados Unidos quando o ex-presidente, Donald Trump incitou
seus seguidores a acreditar, sem provas, que as eleições realizadas em clima de
absoluta lisura tivessem sido fraudadas, e depois os inflamou a marcharem para
o Capitólio, onde fomos testemunhas daquelas cenas horríveis e vergonhosas que
se seguiram. É preciso, portanto, cortar pela raiz esse mal.
O
deputado Daniel Silveira, em vários momentos de sua defesa, invocou a liberdade
de expressão e a imunidade parlamentar. Ora, liberdade de expressão está mais
relacionada à discussão e o debate das ideias, do que com a ameaças e
impropérios. Isso não é liberdade de expressão, é crime. De outro lado, a
imunidade parlamentar não pode dar ao deputado o direito de lutar contra o
ideal democrático sob o qual ele se elegeu e ao qual jurou defender. Seria um
contrassenso se fizesse o contrário, e muito mais que contrassenso, um crime.
E
que motivos foram esses que levaram Daniel Silveira a achar que era o rei do
radicalismo de extrema direita e a fazer um discurso tão exaltado contra os
ministros do Supremo?
O
fato que gerou discurso tão odioso tem sua origem ainda em abril de 2018.
Naquela ocasião, o STF julgava um habeas corpus do presidente Lula. O ministro
Luiz Edson Fachin era o relator do caso. Em 03 de abril daquele ano, o general
Villas Boas publicava no Twiter, um post em que dizia que o exército
compartilhava o “repúdio à impunidade.
Dizia a postagem:
Nessa situação que vive o Brasil, resta
perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País
e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?
General Villas Boas (@Gen_VillasBoas)
April 3, 2018.
A
sessão de julgamento foi longa. Durou quase onze horas. Porém, ao final, por 6
votos a 5, os ministros do STF rejeitaram o pedido da defesa de Lula de que ele
não fosse preso antes que recursos em outras instâncias da justiça fossem
analisados. Lula foi preso, pois já havia sido condenado em segunda instância
por corrupção e lavagem de dinheiro. Esse é um resumo do fato.
No
dia 11 de fevereiro deste mês, o Estadão trouxe uma reportagem em que mostrava
que no livro, General Villas Bôas:
Conversa Com O Comandante, de Celso de Castro, o general Villas Boas
revelou que aquela postagem no Twiter, feita em 2018, havia sido planejada com
o alto comando das Forças Armadas.
Apesar
da postagem trazer em si um significado de pressão sobre os ministros do STF,
pelo que se tem notícia, nenhum deles se posicionou publicamente em relação a
ela naquele momento. Houve um certo silêncio em relação a isso, como se o STF
não pretendesse esticar a discussão.
Entretanto
ao ficar sabendo das revelações de Villas Boas no livro, no dia 15 de
fevereiro, Fachin se pronunciou publicamente sobre o assunto. Disse que era
‘intolerável’ e ‘inaceitável’ qualquer tipo de pressão contra o Judiciário, e
disse ainda que “A declaração de tal
intuito, se confirmado, é gravíssima, e atenta contra a ordem institucional. E
ao Supremo Tribunal Federal, cabe a guarda da Constituição”.
No mesmo dia, Daniel Silveira vai ao Twiter, e
escreve:
Não Fachin! Intolerável e inaceitável
não são as pressões sobre o judiciário. Intolerável e inaceitável é que
marginais da lei componham a suprema corte. Intolerável e inaceitável é que
você esteja nesta corte.
Isso sim é intolerável, isso sim é
inaceitável. — Daniel Silveira (@danielPMERJ) February 15, 2021
Comprando
assim, uma briga que não era dele.
No
dia seguinte, 16 de fevereiro, Villas Boas também vai ao Twiter e ironiza a
reação de Fachin: “Três anos depois”,
escreve ele. Gilmar Mendes também entra na briga, e escreve na rede social: “A harmonia institucional e o respeito à
separação dos Poderes são valores fundamentais da nossa República. Ao deboche
daqueles que deveriam dar o exemplo responda-se com firmeza e senso histórico:
Ditadura nunca mais!”
No
mesmo dia 16, não tendo o Brasil assuntos gravíssimos como a questão do
descontrole da pandemia do coroanavírus, surgimento de novas variantes, a
questão do auxílio emergencial, a questão da vacina, ou seja, não tendo mais o
que preocupar o deputado Daniel Silveira, eis que ele vai novamente às redes
socais e grava o vídeo em que ofende os ministros do STF, ameaça à democracia,
envergonha a Câmara dos Deputados, e a maioria do povo brasileiro que não
aderiu ao discurso de ódio da extrema direita.
Como
vimos o vídeo provocou a prisão do deputado e pode também lhe custar o mandato,
uma vez que foi aberto contra ele um processo no Conselho e Ética da Câmara. O
problema é que os processos naquele órgão do parlamento andam iguais tartarugas
na areia da praia: bem devagarzinho, mas tão devagar que a gente nem percebe
que eles elas estão andando. Talvez o processo de Daniel Silveira ande mais
rápido pois é preciso dar uma resposta ao STF, mas vamos ver o andar da
carruagem.
É
possível também que o deputado seja expulso do PSL, partido ao qual pertence.
Ou
seja, se meteu em briga de peixe grande, e deu bom dia a cavalo.
Se
tivesse ficado quieto, as ironias entre STF e militares não teriam passado
disso. Apenas uma poeira que levantou e baixou e nada mais. Bem feito para o
deputado que provocou todo esse imbróglio entre Legislativo e Judiciário. Bom
mesmo que perca o mandato, assim talvez aprenda a lição.
Ainda
sobre o deputado, vale dizer que ele é de uma arrogância extrema. Ele é um
ferrenho defensor do não uso da máscara de proteção contra o coronavírus. O
deputado chama o instrumento de “focinheira ideológica”.
No
dia 26 de janeiro, ele estava no Aeroporto Internacional de São Paulo, em
Guarulhos. Embarcaria em um voo da
companhia aérea Gol. Como se recusava a usar máscara de proteção, item
obrigatório a todo passageiro, a companhia aérea o impediu de pegar o voo.
Agora,
por ocasião de sua prisão, o deputado protagonizou mais um desses ridículos
episódios. Aconteceu quando ele foi levado ao IML para fazer os exames de corpo
de delito.
O
deputado chegou ao local sem máscara. Mas um funcionário lhe entrega uma, e ele
respondeu que tinha “dispensa” de usar o equipamento. Uma funcionária do IML
então exige que ele use a máscara.
Segue
trecho desse dialogo extraído do site Globo.com:
“Não existe dispensa”, diz ela.
“Não existe? Não? Eu faço o quê?
Rasgo?”, rebate o parlamentar. “A senhora não manda em mim não”.
Silveira caminha pelo local e volta a se
dirigir a ela.
“Meu irmão, a pior coisa é militante
petista. Militante petista é um c*****. Reconhece e fala, “Pô, agora eu vou
fazer meu espetáculo’. Não está falando com vagabundo não”.
A mulher volta a dizer que, dentro das
dependências da Polícia Civil, ele precisa usar máscara.
“E se eu não quiser botar?”, ele
responde. “Se a senhora falar mais uma vez, eu não boto”, diz o deputado, que é
acalmado pelo homem de distintivo. “Se a senhora falar mais uma vez eu tiro
essa p***. Respeita que não está falando com vagabundo, não. Não fala mais não
que eu não vou usar. A senhora é policial eu também sou polícia e aí. Eu sou
deputado federal e aí?”, diz Silveira.
Novamente, o homem de distintivo tenta
acalmá-lo: “Deputado, deputado”.
“A senhora acha que eu não conheço a
p*** da lei não? Folgada para c****”.
Após a discussão, o deputado federal é
encaminhado para uma sala, para aonde vai usando a máscara, mas ao chegar ao
local, as imagens mostram ele com o nariz descoberto.
Na sala, quem filma conversa com Daniel
e pergunta antes de parar de gravar: “Encerrar aqui?”.
O deputado responde: “Encerra aí”.
Chamou
a atenção nesse episódio todo envolvendo o deputado bolsonarista, Daniel
Silveira, o silêncio do Palácio do Planalto, e do presidente, Jair Bolsonaro,
em relação a um assunto tão importante como a prisão de um aliado.
Porém,
Daniel foi esquecido pelo presidente, em primeiríssimo lugar porque não é parte
do clã Bolsonaro. Se a reação do ministro Alexandre de Moraes tivesse sido
dirigida, em vez de Daniel, a algum de seus filhos, o presidente teria virado a
República do avesso, e teria se envolvido de corpo e alma no caso.
O
segundo motivo vem na esteira do primeiro: Daniel Silveira é apenas um aliado,
e aliados, para o presidente, são tão descartáveis quanto um destes copos
plásticos que usamos para beber água: nos servem naquele momento, depois tem
destino certo: o lixo. Que o digam o falecido Gustavo Bebiano, Regina Duarte, e
Sérgio Moro.
Em
terceiro lugar, talvez mais importante nesse caso, o presidente estava
aproveitando a ocasião para “passar a boiada”, dessa vez interferindo na
Petrobras.
O
presidente passou dias criticando a política de preços da estatal. Na verdade,
estava igual cobra venenosa: preparando o bote. Na noite de sexta-feira, o
presidente anunciou a troca no comando da Petrobras: sai Roberto Castello
Branco, e entra o general da reserva Joaquim da Silva e Luna. Ex-ministro da
Defesa e atual diretor-geral da hidrelétrica Itaipu Binacional. A indicação do
presidente ainda precisa ser chancelada pelo conselho de administração da
estatal.
O
mercado financeiro ficou de cabelos em pé e com a pulga atrás da orelha com a
indicação de um general para presidir a empresa. O temor deles é que o
presidente venha a interferir na estatal com a finalidade de segurar a alta dos
preços do diesel para acalmar a categoria dos caminhoneiros que, dias atrás, já
ameaçaram e iniciaram uma greve que não teve sucesso.
Após
as intenções do presidente de interferir na estatal, a empresa perdeu R$ 28
bilhões em valor de mercado. E, dizem os especialistas, o país pode pagar um
preço muito alto a longo prazo. Aguardemos
para ver como vai reagir o mercado com a abertura dos negócios nesta segunda.
“A Petrobras entra em uma posição complicada.
Não vale a pena investir em ações da empresa até ter uma clareza maior em
relação a como seria uma gestão do general Silva Luna e até que ponto o Governo
seguirá intervindo”, disse Thiago de Aragão, da consultoria de risco
político da Arko Advice.
E
assim, uma a uma, as máscaras do presidente vão caindo. Ele prometeu acabar com
a corrupção, mas ao contrário, acabou foi com a força tarefa da Lava-Jato,
operação marco no combate à corrupção, prometeu também uma agenda liberal, mas
vai cada mais se distanciando dela.
O
temor dos agentes financeiros se justifica pois, recentemente, no governo de
Dilma Rousseff, também se praticou uma política de preços na Petrobras, que não
andava de acordo com a flutuação dos preços de mercado internacional, e deu no que
deu. Segundo reportagem publicada no site da revista Exame neste dia 21 de
fevereiro, quando a presidente Dilma Rousseff enveredou por esse caminho pelo o
presidente Bolsonaro também está querendo ir, a contenção de preços levou a uma
“perda de R$ 100 bilhões. O cálculo
inclui o que a companhia deixou de ganhar e o que gastou a mais em despesa
financeira, fruto da ausência de paridade do combustível com os preços
internacionais. A petroleira, na ocasião, mantinha o preço da gasolina quase
congelado como forma de segurar a inflação, enquanto seu endividamento pesava
cada dia mais, uma vez que era, em sua maior parte, em moeda estrangeira”.
Outra
medida que não foi vista com bons olhos pelos investidores foi a decisão do
presidente, anunciada na quinta-feira, 18, durante uma live, foi a isenção de
qualquer imposto federal sobre o diesel. A medida começará a valer a partir de
1o de março. PIS, Cofins, e Cide, são os impostos federais que incidem
sobre o diesel.
Nesse
caso, a preocupação dos investidores é o impacto bilionário que essa isenção de
impostos sobre o diesel causa nas contas do governo, contas essas que já estão
cambaleantes. Jair Bolsonaro, não entrou em detalhes de qual o impacto dessas
medidas nas contas públicas nem como esse prejuízo será compensado.
O
presidente, nos arroubos de querer agradar uma categoria, corre o risco de
jogar o país inteiro num abismo de incertezas. E, nesse caso, como diz o ditado
popular: a corda sempre arrebenta do lado
mais fraco, que nesse caso, são os governados.
O
engraçado nisso tudo, ou trágico, não sei, é que o ministro Paulo Guedes que
entrou para o governo como a promessa de que seria o homem que cumpriria essa
agenda liberal, de não intervenção do governo nas estatais, e que, em diversas
ocasiões, foi apontado pelo presidente Jair Bolsonaro como o posto Ipiranga na
área econômica, ou seja, aquele que tem todas as soluções para todos os
problemas, hoje permanece apenas como figura decorativa no governo. A própria demissão de Castello Branco da presidência
da Petrobras é motivo de constrangimento para Paulo Guedes: Castello é homem de
confiança e muito próximo de Guedes.
Em
várias ocasiões, e sempre que pode, o presidente repete seu mantra: “Quem manda
sou eu”. Então, seguindo essa linha de raciocínio, podemos até dizer que não
existe equipe de governo: existe apenas o Bolsonaro, e como ele parece não se importar
muito com os rumos do país, mas apenas com sua família e com seu mesquinho
projeto de poder, então só nos resta pedir que tenha Deus tenha piedade de nós.
E
olhem que, emoldurando todo esse quadro, todas essas mesquinharias e discursos
de ódio, ainda temos entre nós, e pairando sobre nós, uma pandemia que já
vitimou mais de 45.000 pessoas, novas variantes do coronavírus mais
transmissíveis, um ministro da Saúde incompetente, e uma campanha de vacinação
que carece de planejamento e que anda mais devagar que tartaruga.
É muita arraia miúda nesse mar. Quem tem o coração cheio de ódio, arrogância, e mesquinharias, pode até ocupar posto de peixe grande, viver como peixe grande, agir como peixe grande, mas no fundo no fundo, será sempre uma arraia miúda. Isso serve, não apenas para o deputado Daniel Silveira, mas para muita gente Brasil afora.
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