A realidade paralela de Jair Bolsonaro
Quinta-feira, 24 de setembro
Mais
uma vez os poderosos do mundo estiveram reunidos na 75ª Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas, sob o lema: O futuro que queremos. O evento foi
online devido à pandemia, e foi realizado na terça-feira, 22.
Mais
uma vez, como já é tradição, o Brasil foi o primeiro país a discursar. O que
poderia ter sido diferente foi o discurso do presidente, Jair Bolsonaro, que,
mais uma vez, inventou uma realidade paralela para explicar os incêndios que
devoram as florestas brasileiras e a pandemia, provocada pelo poderoso vírus,
batizado pelos cientistas de Covid-19.
Em
resumo, Bolsonaro parecia mais estar falando para seu público eleitor que para
líderes mundiais de diversos países. Os eleitores do presidente, sim, gostam da
realidade parelela que o presidente narra. Líderes mundiais, nem tanto.
Segundo
dados divulgados pelo consórcio de imprensa, o Brasil, na data de hoje, 139.065
mortes por coronavírus. Porém, no discurso o presidente quase não menciona essa
quantidade absurda de mortos pela pandemia.
“A COVID-19 ganhou o centro de todas as
atenções ao longo deste ano e, em primeiro lugar, quero lamentar cada morte
ocorrida”, diz ele, sem mencionar o número de mortos. Na verdade, ele faz
pouco caso dessas vidas perdidas desde o início da pandemia. Lembram do “E daí?”. Ou então do “Eu não sou coveiro”.
Segue
o discurso: “Desde o princípio, alertei,
em meu País, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego,
e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma
responsabilidade”.
Conversa
para boi dormir. Será que alguém acredita nisso, além dele mesmo, e de seus cegos
eleitores?
Quem
ouviu o presidente, desde o início da pandemia, dizer que o vírus representava
uma ameaça e que ele estava preocupado com isso? A contrário, ele sempre
minimizou a pandemia, fez pouco caso do coronavírus. “É só uma gripezinha”, dizia ele.
Com
a economia, sim, a preocupação era total, sem considerar que as mãos que movem
a economia e que fazem ela acontecer são as mãos de trabalhadores, e
trabalhadores são humanos, sujeitos a pegar doenças desconhecidas para as quais
ainda não remédio e morrer desse mal. Esses trabalhadores, com certeza também
não dispõem do aparato médico e de saúde de que o presidente dispõe no caso de
contrair a doença, como de fato contraiu.
Além
disso, o presidente ainda ironizou as medidas sanitárias tomadas pelas
autoridades para conter o avanço da doença. A pandemia estava a todo vapor no
país, o número de mortos estava na casa dos mil por dia, e o presidente lá,
passeando sem máscara, provocando aglomerações, e participando de atos
antidemocráticos.
Quão
mais fácil teria sido, quantas mortes teriam sido evitadas, e quanto a economia
teria sido menos atingida se ele tivesse dado apoio aos seus ministros da
Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e depois Nelson Teich? E também se tivesse tido
a humildade de ouvir o que a OMS tinha, e tem a dizer?
“Nosso governo, de forma arrojada,
implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior:
- Concedeu
auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1000 dólares para 65
milhões de pessoas, o maior programa de assistência aos mais pobres no Brasil e
talvez um dos maiores do mundo;
- Destinou mais
de 100 bilhões de dólares para ações de saúde, socorro a pequenas e
microempresas, assim como compensou a perda de arrecadação dos estados e
municípios.
É
verdade que o governo distribuiu auxilio emergencial aos trabalhadores que
ficaram sem renda, ato que até ajudou, e muito a alavancar a popularidade do
presidente. Mas o presidente talvez tenha exagerado um pouco quando fala de
valores gastos em tal iniciativa.
O
programa de apoio à micro e pequenas empresas também existe, mas nos Estados
Unidos, por exemplo, foi sete vezes maior que aqui o incentivo dado pelo
governo às empresas. É verdade também que um número grupo de microempresários
ainda permanece sem receber qualquer ajuda do governo.
Quanto
a saúde também não é que tenha havido tanto empenho em empregar recursos
públicos para deter o vírus. Por exemplo, em julho, o Ministério da Saúde
dispunha de uma quantia de R$ 38,9 bilhões, mas apenas haviam saído dos cofres
públicos 11, 4 bilhões. Naquele mês o país já contabilizava 55 mil mortos, e
1,2 milhões de casos notificados, mas o ministério havia gastado apenas 29% por
cento da verba emergencial. O que aconteceu ali? Falta de gestão?
Ainda
em relação a esse assunto, com relação aos indígenas o governo diz que: “Assistiu a mais de 200 mil famílias
indígenas com produtos alimentícios e prevenção à COVID”
Na
verdade, o presidente é um pouco cruel para com o povo indígena. Em julho, por
exemplo, ele sancionou com vetos uma lei que previa medidas de proteção ao povo
indígena durante a pandemia de coronavírus. Foram barrados pelo Executivo artigos
importantes para proteger qualquer pessoa durante uma pandemia, por exemplo, o
acesso do povo das aldeias à agua potável, a leitos hospitalares, matériais de
higiene, e respiradores. Em agosto, o Congresso derrubou os vetos do
presidente.
Também
em agosto, uma equipe do Médicos Sem
Fronteiras queria ir fazer um trabalho em sete comunidades indígenas do
Mato Grosso do Sul. O governo não autorizou a entrada dos médicos na
comunidade. O objetivo dos profissionais de saúde era impedir o avanço do
coronavírus entre os povos indígenas.
A
Hidroxicloroquina. Essa não podia faltar nesse discurso. Um remédio, segundo a
comunidade científica mundial, sem eficácia comprovada nenhuma no combate ao
coronavírus. O presidente sempre atuou como garoto propaganda do medicamento.
Por que tanto empenho na defesa e na propaganda do remédio? Algum objetivo há
nisso tudo. O medicamento foi produzido em grandes quantidades. Alguém lucrou
com isso. Não há dúvida.
Meio
Ambiente. Uma pedra no sapato do governo. Todos ficaram na expectativa sobre o
que diria o presidente nesse tema. E ele falou.
“Somos vítimas de uma das mais brutais
campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal.
A Amazônia
brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições
internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a
associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de
prejudicar o governo e o próprio Brasil”.
A
Amazônia arde em chamas. O Pantanal também. As altas temperaturas tem contribuído
para isso. Porém, grande parte dos focos de incêndio dessas duas joias brasileiras
são criminosos. O evento dos incêndios aqui no Brasil dependem mais da mão
humana do que da ação da natureza para que ocorram.
Os
dois principais órgãos do Meio Ambiente, o Ibama e o ICMBio sofrem nesse
governo uma espécie de desmonte. A política governamental não é de combate aos
incêndios criminosos e a quem os provoca, mas, sim àqueles que ajudam a combate-los.
Essa política às avessas parece perseguir aos profissionais que estão tentando
salvar a floresta. Ao invés de o governo reforçar as normas de proteção
ambiental, ele as combate.
Isso
parece ter ficado bem claro quando, na reunião ministerial de 22 de abril, o
ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar o momento em que
todos estavam preocupados com o coronavírus para passar a boiada e mudar as
regras. “Então pra isso precisa ter um
esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto
de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e
mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da
Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério
daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de
regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”, disse ele.
Depois
disso tudo dito, soa irônica a frase do presidente no discurso da ONU quando
ele diz: “Somos líderes em conservação de
florestas tropicais. Temos a matriz energética mais limpa e diversificada do
mundo”. Na frase, o presidente apenas errou o verbo. Em vez de dizer “somos”
ele deveria ter dito “fomos”.
Mas
o discurso do presidente ainda pode se tornar mais chocante. Vejam só esse
trecho:
“Nossa floresta é úmida e não permite a
propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente, nos
mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam
seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”.
Ora,
todos sabem que os grandes criminosos, aqueles que não querem ver sobrar pedra
sobre pedra na floresta, ou melhor, árvore sobre árvore, são os fazendeiros que
querem queimar a floresta para fazer dela pasto para seus rebanhos. Notem que o
presidente, em nenhum trecho do discurso do discurso se refere a essa gente. A culpa
então cai no colo de quem? Do índio e do caboclo.
“Os focos criminosos são combatidos com rigor
e determinação. Mantenho minha política de tolerância zero com o crime
ambiental”.
Por
parte dos ambientalistas não há essa impressão que os incêndios sejam
combatidos com o devido rigor e determinação. A política de tolerância zero com
o crime ambiental também parece uma falácia.
Em
agosto, por exemplo, o Ibama havia preparado uma operação contra o garimpo
ilegal na Terra Indígena (TI) Munduruku, na região de Jacareacanga, no Pará.
Três helicópteros do órgão ambiental já estavam preparados para decolar da Base
da Força Aérea Brasileira, na Serra do Cachimbo, quando foram impedidos. Às vésperas
da operação, a coordenação de fiscalização do Ibama recebeu um ofício do
Ministério da Defesa cancelando todas as operações na região.
Não
poderia faltar ainda no discurso de Bolsonaro, uma reverência, no popular, uma
puxada de saco, para aquele a quem Bolsonaro bate continência: o presidente
Trump. “O Brasil saúda também o Plano de
Paz e Prosperidade lançado pelo Presidente Donald Trump, com uma visão
promissora para, após mais de sete décadas de esforços, retomar o caminho da
tão desejada solução do conflito israelense-palestino”.
E
assim, de incoerência em incoerência nos discursos presidenciais brasileiros à
comunidade internacional, a gente vai pagando mico após mico. Os seguidores de
Bolsonaro podem engolir tudo o que o presidente Jair Bolsonaro fala. A comunidade
internacional, não. E é aí que mora o perigo.