Cinismo de um presidente
Sábado,
19 de março
“Eu conheci um velho índio do Uruguai
Que há muito já foi onde a gente nem sabe
se vai
Conhece a vida traz prá frente e frente
prá traz
Andou nos caminhos do vem, nas veredas do
vai.
Eu aprendi com o velho índio do Uruguai,
Que a vida é de quem corre menos em busca
do mais”
(Índio
do Uruguai – Arnaud Rodrigues)
Esse
discurso foi proferido em 15 de abril de 1998 pelo então deputado, Jair
Bolsonaro. Na época ele era deputado pelo PPB. Hoje a sigla mudou para PP. No
dia seguinte o discurso foi publicado no Diário Oficial.
E
aí já tínhamos o estilo Jair Bolsonaro de governar: discursos dúbios, sempre
deixando brechas para escapar, posteriormente, de declarações polêmicas.
Enumerando
as ideias contidas no discurso do então deputado, vemos que elementos de
crueldade e elogio a um genocídio estão presentes nele. Bolsonaro afirma a
Cavalaria norte-americana foi eficiente no passado ao dizimar os índios, cortou
o mal pela raiz, e hoje não precisam mais se preocupar com essas questões.
O
deputado estabelece um paralelo com a cavalaria brasileira que não foi eficaz
ao dizimar todos os indígenas, deixando, por consequência, um grande problema,
não para a sociedade brasileira, mas para o próprio deputado e seus amigos
madeireiros e garimpeiros ilegais que não estão nem um pouco preocupado com o
meio ambiente e com o bem-estar da população indígena brasileira.
No
meio desse pensamento cruel Jair Bolsonaro profere uma frase que, diante dos
raciocínios expostos antes, parece um pouco fora de contexto, como se ela não
fizesse parte do discurso, e tivesse sido introduzida ali por acidente, que é
quando ele diz que não prega que se faça a mesma coisa com o índio brasileiro.
Para
finalizar ele justifica suas ideias tortas. É preciso tirar dos índios as
reservas indígenas e dar-lhes apenas uma pequena porção de terra.
O
tempo passou e aquele deputado do baixo clero, por uma conjunção de fatores,
chegou a presidência da República. E o pensamento do presidente a respeito dos
indígenas e da questão indígena não mudou muito, não. Foram várias as
declarações do presidente que confirmam essa afirmação.
Em
uma delas, em agosto do 2021, o presidente estava sendo entrevistado em uma
rádio, no estado do Rio Grande do Norte, quando foi questionado se tinha
conhecimento da moeda virtual bitcon. Bolsonaro respondeu que não, assim como
não sabiam 99% dos ouvintes que ouviam aquela entrevista.
O
presidente então disse que a Fundação Nacional do Índio (Funai) tinha destinado
R$ 50 milhões para os índios mexerem com bitcon. “Com todo respeito, a grande parte não sabe nem o que é dinheiro. Nós
estamos libertando os índios. Projeto anterior, o índio cada vez mais produzindo,
como os parecis, um orgulho para nós. Estamos estimulando agora os bacairis, os
caiapós, ianomâmis”.
Há
um certo racismo na fala acima. Ele está libertando os índios. Mas o presidente foi mais além. Ele disse que
o pessoal do agronegócio está feliz com o governo dele porque não se faz mais
demarcação de terras índigenas. “Chega. Você fica pensando como é que pode
10 mil índios terem uma área equivalente a duas vezes o estado do Rio de
Janeiro, como os ianomâmis. Chega, não dá mais porque a intenção disso é
inviabilizar a agricultura, inviabilizar o agronegócio do Brasil e virar um
conflito”, acrescentou ele.
Ainda
mais recentemente, e já com o início da guerra na Ucrânia, o presidente voltou
novamente sua munição contra os povos indígenas.
Aproveitando-se
do fator “guerra na Ucrânia”, na quarta-feira, 02 de março, o presidente foi às
redes sociais para dizer que o potássio, um dos fertilizantes usados pelo
agronegócio, pode vir a faltar ou ficar mais caro, em razão da guerra travada
entre Rússia e Ucrânia.
“O
potássio e a nossa segurança alimentar: Em fevereiro de 2016, como deputado,
discursei sobre nossa dependência do potássio da Rússia. Citei 3 problemas: o
ambiental, o indígena e a quem pertencia o direito exploratório na foz do Rio
Madeira.
Nosso
Projeto de Lei n° 191 de 2020, permite a exploração de recursos minerais,
hídricos e orgânicos em terras indígenas. Uma vez aprovado, resolve-se um
desses problemas. Com a guerra Rússia/Ucrânia, hoje corremos o risco da falta
do potássio ou aumento do seu preço. Nossa segurança alimentar e agronegócio
(Economia) exigem de nós, Executivo e Legislativo, medidas que nos permitam a
não dependência externa de algo que temos em abundância”, escreveu o
presidente.
Antes,
no dia 27 de fevereiro, em uma coletiva de imprensa, o presidente já havia
criticado a quantidade de demarcação de terras indígenas no país. Ele defendeu
na entrevista a exploração de fertilizantes e produção de energia em terras
indígenas. E mais uma vez citou como argumento o conflito no leste europeu. Na
opinião dele, o conflito faz com que o Brasil sofra um deficit de produtividade
na questão dos fertilizantes. O potássio eixstente em terras indígenas poderia
suprir essa deficiência.
Segundo
o presidente, ainda na mesma entrevista, a culpa do atraso do Brasil na questão
do agronegócio é devido a demarcação das terras indígenas. Ou seja, os
indígenas seriam uma pedra de tropeço para o país. “O Brasil foi em parte
inviabilizado no passado com a indústria da demarcação de terras indígenas”.
Aqui
a gente chega ao PL 191/2020. Em fevereiro de 2020, em cerimônia realizada no
Palácio do Planalto, e como parte dos eventos para comemorar os 400 dias de
governo, Bolsonaro assinou um projeto de lei, chamado de PL 191/2020.
O
projeto, segundo técnicos do governo, tem o objetivo de regulamentar a
exploração mineral, energética, como petróleo e gás, por exemplo, em terras
indígenas. Diz o texto que, para as atividades de garimpo, as comunidades
indígenas terão poder de veto. Para a construção de hidrelétricas ou
termoelétricas, elas serão consultadas previamente. Mas isso, é coisa que, com
certeza, ficará apenas no papel, como os índios poderão vetar uma lei tendo ela
sido aprovada pelo Congresso? A população indígena nunca teve voz, nem nunca
terá enquanto Jair Bolsonaro for presidente. Até porque, a diminuição da
demarcação de terras e indígenas, bem como a atividade de exploração de
minérios nas terras desse povo é promessa antiga de Bolsonaro, desde que ele
ainda era deputado.
Ele
preocupou-se com os ambientalistas, mas do modo dele. De acordo com Bolsonaro,
eles seriam confinados em algum lugar na Amazônia, bem distante do Planalto,
para que não “atrapalhar”. “Vamos sofrer pressões dos ambientalistas? Ah,
esse pessoal do meio ambiente, né? Se um dia eu puder, eu confino-os na
Amazônia, já que eles gostam tanto do meio ambiente. E deixem de atrapalhar os
amazônidas daqui de dentro das áreas urbanas”, disse ele.
Como
era de se esperar, povos indígenas, organizações que defendem esses povos, e
ambientalistas logo se levantaram contra o projeto, e com razão, uma vez que se
realmente o projeto se transformar, de fato, em lei, é o fim do que resta dos
povos indígenas. Diante das reações negativas, o projeto foi parar em alguma
gaveta da Câmara dos Deputados.
Enfim,
como já foi dito antes, veio a guerra da Ucrânia e a oportunidade de ouro para
Bolsonaro aprovar seu projeto genocida para os indígenas. O argumento foi de
que iríamos ficar sem fertilizantes e a matéria prima para esse produto poderia
ser encontrada nas terras indígenas.
O
presidente recorreu então a sua tropa de choque na Câmara dos Deputados, e o
assunto, que estava em banho maria, voltou a ferver novamente. No dia 09 de março,
o Plenário da Câmara dos Deputados, aprovou, aprovou por 279 votos a 180, um
requerimento do líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), a tramitação
em urgência do Projeto de Lei 191/2020, que trata da mineração em terras
indígenas.
“Está
muito claro que o Congresso foi encarregado pela Constituição de regulamentar a
exploração em terras indígenas, estamos cumprindo, com anos de atraso, a
Constituição”, disse Ricardo Barros.
Ao
anunciar a votação do requerimento, o presidente da Câmara dos Deputados,
Arthur Lira, disse que a proposta será analisada por um grupo de trabalho e
que, em abril, será incluída na pauta.
Enquanto
os deputados votavam mais esse projeto de lei de morte, artistas, ativas, e
ambientalistas se reuniam na Esplanada dos Ministérios no Ato em Defesa da
Terra, um protesto contra projetos de lei como a PL 191/2020, que afrouxam
medidas de proteção ambiental. O ato contou com a presença de artistas como
Caetano Veloso, Daniela Mercury, Malu Mader, e representantes de movimentos
sociais.
“Neste momento, a sociedade civil e os
movimentos populares estão lá fora clamando para que esta Casa pare de votar a
destruição da natureza. E a base do governo insiste em querer votar aqui
autorização para mineração, a monocultura e a construção de hidrelétricas em
terras indígenas”, disse o deputado, Nilo Tatto (PT-SP).
Por
tudo isso e muito mais do que foi escrito acima em relação a postura do governo
com a causa indígena, e também pelas coisas absurdas ditas e feitas pelo Sr. Presidente,
e que não foram ditas no texto, é que parece um tanto quanto hipócrita a
homenagem recebida por ele esta semana.
Na
quarta-feira, 16, o ministro da Justiça, Anderson Torres, concedeu a Jair
Bolsonaro, a Medalha do Mérito Indigenista. Na mesma
cerimonia receberam a mesma homenagem os seguintes ministros; Augusto Heleno (Gabinete
de Segurança Institucional); Braga Neto (Defesa); Tereza Cristina
(Agricultura), Damares Alves (Mulher, Família, e Direitos Humanos), Marcelo
Queiroga (Saúde). Anderson Torres também recebeu a medalha. Ele a entregou a si
próprio.
A
cereja do bolo da hipocrisia foi o texto publicado no Diário Oficial da União. Segundo
a publicação a Medalha do Mérito Indigenista foi entregue ao presidente e aos
ministros “como reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter
altruísticos, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das
comunidades indígenas”.
Um
grupo de indígenas, considerados aliados do presidente, também recebeu a
medalha perfazendo um total de 26 pessoas a recebê-la. O Diário Oficial também
não especifica por quais motivos cada um foi agraciado com a medalha.
Num
gesto de protesto e de repúdio ao ato, o ex-chefe da Funai, Sydnei Possuelo, entregou
ao Ministério da Justiça a Medalha do Mérito Indigenista que ele recebeu há 35
anos atrás. Junto com a medalha foi também uma carta na qual ele dizia estar se
sentindo “imensa surpresa e natural espanto” ao ver o presidente da
República recebendo tal homenagem. Ele destaca também que Bolsonaro é conhecido
pela sua oposição as pautas indigenistas. Na carta, ele diz que a homenagem “perdeu
toda a razão para a qual foi criada em 1972”.
Várias
entidades que tratam dos direitos dos povos indígenas criticaram a homenagem. “Ao
tomarmos ciência da publicação, a reação do movimento indígena foi justamente
de se questionar sobre que mérito é esse. Seria o da destruição do meio
ambiente, da utilização de agrotóxico como arma química, por incentivar garimpo
e destruição nas terras indígenas? Trata-se de um ato carregado de um cinismo
excessivo, produzido por um governo truculento e genocida”, disse Eloy
Terena, advogado indígena e coordenador da Assessoria Jurídica da Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) à revista Cenarium.
“Desde
a época de campanha, Bolsonaro prometeu não demarcar um único centímetro de
terra indígena e vem cumprindo com louvor sua promessa. Não bastasse a omissão
na defesa dos direitos indígenas, o que observamos são constantes ataques aos
povos originários. Neste momento, uma das principais pautas que a gestão
Bolsonaro defende no Congresso é justamente o PL 191/2020, que libera a
autorização para mineração em Terras Indígenas. Ao invés de esbanjar medalhas
em nosso nome, este governo genocida deve ser reconhecido por suas tragédias”,
acrescentou ele.
Já
o escritor e professor, Daniel Munduruku, escreveu no Twitter:
Daí me vem a mente outra questão. Talvez Bolsonaro se mantenha neutro na guerra da Ucrânia não apenas pela questão dos fertilizantes russos que o Brasil exporta, mas sim pelo fato de que Bolsonaro tem muitas afinidades com Wladmir Putin. Ele o entende.
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