Fim da novela André Mendonça
05
de outubro de 2021
Finalmente,
o Brasil assistiu ao fim da novela André Mendonça.
Em
julho deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurelio de
Mello, se aposentou de suas funções como ministro daquele órgão máximo da
Justiça em nosso país. Sempre que um ministro do STF se aposenta, é atribuição
do presidente indicar um novo nome para compor os quadros da corte, e ao senado
aprovar o nome indicado pelo presidente.
Para
nos situarmos melhor nessa questão, voltemos um pouco no tempo.
Na
manhã de 10 de julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro participava de um
culto evangélico na Câmara dos Deputados. E em aceno à base evangélica ele
disse que indicaria dois ministros para uma vaga no STF, e que um deles seria
“terrivelmente evangélico”.
Nem
tento explicar isso, pois não saberia definir uma pessoa comum “terrivelmente
evangélica”, nem muito menos um ministro de uma Corte Suprema com a mesma
qualidade.
Mais
tarde, naquela mesma manhã, Bolsonaro reafirmou em plenário o que havia dito no
culto. “Muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o estado é laico. O
estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares
[Alves, ministra]: Nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar
presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois
ministros para o Supremo Tribunal Federal [STF]. Um deles será terrivelmente
evangélico”.
Nada
contra escolher um ministro do STF evangélico. Assim, como não haveria nada de
mais ter um ministro católico, ou umbandista, pois a carta, a letra, o livro
que rege as normas do Supremo Tribunal Federal chama-se Constituição Federal, e
não a Bíblia. E um estado deve ser laico pois nem todas as pessoas que o formam
professam os mesmos credos, as mesmas crenças. Há, inclusive, pessoas que não
professam crença nenhuma. A lei não seria Lei, se abrigasse debaixo de seu
manto, apenas pessoas desta ou daquela religião, deste ou daquele segmento,
desta ou daquela raça.
Pois bem, o carro andou, e o ministro Celso de Melo se aposentou em outubro de 2020. Na verdade, Celso de Melo adiantou sua saída em cerca de duas semanas, uma vez que só completaria 75 anos em 01 de novembro daquele ano, data limite para sua aposentadoria compulsória. Uma vaga surgiu. Ficou o suspense: Oh, quem terrivelmente evangélico Bolsonaro indicará? Essas cogitações por si mesmas já são completamente ridículas, pois um ocupante de uma cadeira no STF não deve ser terrivelmente praticante dessa ou daquela religião, mas sim, um terrivelmente conhecedor da lei e da Constituição Federal.
Pois,
bem. Bolsonaro não cumpriu a promessa, e indicou o desembargador Kassio Nunes
para a vaga aberta. A indicação foi feita no dia 01 de outubro de 2020. Foi
criticado pela sua base, pois Nunes não é terrivelmente evangélico, mas, como
podemos deduzir da atuação de Nunes no STF, essa coisa de ser “terrivelmente
evangélico” parece não ser o critério em si mesmo dentro dos critérios de
Bolsonaro, e isso faz todo o sentido analisando-se seu modo de governar. E já
explico essa sopa de letra.
Desde
a indicação até o caminho para a sabatina de Kassio Nunes pelo Senado, e sua
consequente aprovação pelos membros daquela casa, o caminho foi bem curto.
Bolsonaro indicou o nome de Nunes no dia 01 de outubro de 2020, e no dia 21
daquele mesmo mês o Senado aprovado o nome do indicado pelo presidente.
Mas,
deixando de lado essa coisa de querer agradar a base com um ministro
evangélico, parece que, para Bolsonaro, o importante é ter um ministro que ele
possa chamar de seu no STF, isso é gravíssimo para uma democracia. É como diz o
ditado popular: “Amigos, amigos, negócios à parte”.
E
Nunes tem provado diante dos seus votos no STF que é um tapete de Jair
Bolsonaro naquele orgão. Ele invariavelmente tem votado com o governo em todas
as matérias. Parece que a ordem é não desagradar o chefe. Acho que ele apenas
se esquece que o chefe é Constituição Federal, e não o governo federal. Há,
portanto, um descompasso Kassio Nunes em relação aos princípios básicos do
Supremo.
O
que temos visto é que Bolsonaro tenta de todas as formas aparelhar o Estado. E,
em muitos casos, tem conseguido. Por que Sérgio Moro deixou o governo? Pelo
fato de acusar Bolsonaro de querer interferir nos trabalhos da Polícia Federal.
Moro estava errado? Pelo que temos visto da atuação do governo, a resposta é
não. E essa interferência parece continuar, pois todos aqueles da PF e de
outros órgãos também, que dão pareceres ou fazem alguma ação contrária ao
governo federal ou aliados dele, são logo afastados, substituídos em suas
funções. A livre manifestação do cidadão também é proibida, ou pelo menos
tentam inibi-la, como é próprio das ditaduras.
Dois
exemplos recentes. No dia 10 de julho deste ano, uma mulher foi presa em Porto
Alegre, por estar protestando contra o presidente. A mulher estava batendo
panelas. Na ocasião, Bolsonaro estava na capital gaúcha para mais uma de suas
motociatas.
No
dia 27 de novembro, Bolsonaro estava em Rezende, RJ, para uma cerimônia de
formação dos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras. Antes de seguir
para a cerimônia, o presidente se aproximou das margens da Dutra para acenar
para os motoristas que por ali passavam e para cumprimentar policiais
rodoviários que faziam sua segurança.
Uma
mulher que passava pelo local, xingou o presidente e foi detida pelo crime de
injúria contra ele. Em depoimento, a mulher negou as acusações.
Allan
dos Santos, é um blogueiro aliado do presidente, e é um dos responsáveis pela
divulgação e fake news, inclusive durante a pandemia de Covid-19, e que, com a
ajuda de Eduardo Bolsonaro, conseguiu sair do Brasil para não ser preso pela
PF.
A
delegada da Polícia Federal, Dominique de Castro Oliveira, processou o pedido
de extradição do jornalista na Interpol. O que aconteceu com a delegada? Adivinhem. Ela
foi exonerada da organização internacional de combate ao crime, na
quarta-feira, 01 de dezembro. Dominique é delegada de carreira da PF, e estava há
apenas 16 meses na polícia internacional. Mas, cometeu o “erro” de mexer com um
aliado do presidente, e foi exonerada. Depois ainda dizem que não há perseguições
e interferência na PF... E os tolos que acreditem.
Alan
dos Santos mora nos Estados Unidos. Sua extradição foi determinada pelo
ministro do STF Alexandre de Moraes, ainda em outubro, mas ainda está em
tramitação.
O
presidente do PSD, Gilberto Kassab, participou na sexta-feira, 3, do Derrubando
Muros, evento organizado por empresários, intelectuais e políticos. Nesse
evento, o político disse que nem a ditadura aparelhou tanto o Estado como faz o
governo de Jair Bolsonaro. “O Brasil vive hoje uma situação bastante
difícil. Um governo que ameaça, que aparelha como nunca. Talvez nem na ditadura
se aparelhasse tanto”. Kassab está errado? Decerto que não.
De
certo modo, o Brasil vive uma espécie de ditadura, perigosa porque ela acontece
de modo silencioso. Não é aquela de colocar tanques nas ruas, mas é aquela de
amarrar a mãos dos órgãos do governo, não apenas na polícia, mas na educação,
no meio ambiente, cultura, e quem mais ousar levantar a voz e a caneta para
contrariar o governo.
E
essa ditadura branda, se torna ainda mais perigosa porque conta com fiéis
escudeiros como o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o
procurador-Geral da República, Augusto Aras. Arthur Lira tem mais de 100
pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, mas não os tira da
gaveta, pois, para ele, Bolsonaro é como uma galinha dos ovos de ouro. Com
Bolsonaro, Lira navega em rios de dinheiro de orçamento secreto e emendas
parlamentares. Além, de tentar mudar a legislação brasileira para que ela se
torne cada vez condizente e conivente com aqueles que praticam a corrupção e
vivem dela.
Aras,
por sua vez tem os seus interesses. Esperava, talvez, uma vaga no STF por
indicação do presidente. Quem, sabe em um segundo governo de Jair Bolsonaro? Segundo
governo de Bolsonaro que Deus nos permita não aconteça.
Depois
dessa pausa para falar da interferência do governo nos órgãos públicos,
voltemos a falar de André Mendonça.
O
novo ministro do STF, André Luiz de Almeida Mendonça, tem 48 anos. Completará 49
no próximo dia 27 de dezembro. É advogado e pastor da igreja presbiteriana. É funcionário
de carreira da União desde o ano 2000. Após quatro meses em banho maria, seu
nome foi finalmente aprovado pelo Senado na quarta-feira,1 de dezembro. Obteve
18 votos a 9 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e em plenário o placar
também lhe foi favorável: 47 votos a favor e 32 contrários a sua indicação.
O
que fazer quando você se depara com duas versões de uma mesma pessoa, e ainda
uma terceira referente a esse mesmo individuo que é uma incógnita?
Assim
é o novo indicado do presidente para o SFT e aprovado pelo Senado. O André
Mendonça que se sentou na cadeira no Senado para ser sabatinado pelos
senadores, não foi o mesmo que comandou a Advocacia Geral da União e o
Ministério da Justiça depois da saída de Sérgio Moro.
Antes
de Bolsonaro anunciar, em 21 de novembro de 2018, o nome André Luiz de Almeida
Mendonça, para o comando da Advocacia Geral da União, ele ocupava naquela época
o cargo de consultor jurídico da Controladoria Geral da União, e atuava junto
ao secretário-executivo da pasta.
Ele
foi elogiado por juristas como sendo um nome técnico. Porém, Mendonça logo se
mostrou muito alinhado ao governo Bolsonaro, e com isso ganhou a confiança do
presidente. Em diversos momentos, ele assumiu atitudes autoritárias.
Em
diversos momentos, Mendonça acionou a Polícia Federal, baseando-se na Lei de
Segurança Nacional, com a finalidade de perseguir opositores do governo de Jair
Bolsonaro. Foram alvos da sanha autoritária de André Mendonça, o pré-candidato
à presidência da República, Ciro Gomes (PDT), Guilherme Boulos (PSOL), Hélio
Schwartsman, colunista da Folha de São Paulo, e Ricardo Aroreira, cartunista. A
maioria dos inquéritos pedidos por André Mendonça contra essas pessoas, as
acusava de cometer injúrias contra o presidente pelo fato de em algum momento
elas terem feito críticas ao mandatário da nação. Por determinação da Justiça,
todos esses inquéritos foram arquivados.
Ainda
no comando da AGU, Mendonça se alinhou a pautas do presidente também no STF. Ele
foi contra a criminalização da homofobia. Também foi contra a que fossem
permitidos a Estados e munícipios a decisão sobre o fechamento de templos
religiosos durante a pandemia de Covid-19.
Houve
aquela confusão em que Moro saiu do Ministério da Justiça acusando Bolsonaro de
interferir na PF. Em abril de 2020, Mendonça foi indicado para a vaga na pasta
da Justiça e Segurança Pública.
No
ministério da Justiça, Mendonça continuou sua “missão” de perseguir opositores do
presidente. Em fins de julho daquele ano, o site do UOL revelou que o
ministério da Justiça, comandado por Mendonça havia elaborado, secretamente, um
dossiê contra servidores federais considerados “antifacista”.
Ao
menos, 579 servidores federais e estaduais de segurança, e ainda três professores,
tiveram seus nomes incluídos no dossiê elaborado pela Secretaria de Operações
Integradas (SEOPI).
Ao
ser questionado sobre o caso, o ministério da Justiça disse não se tratar de
uma investigação contra os servidores, mas sim, prevenir a prática de ilícitos
e preservar a segurança das pessoas.
Na
sabatina do Senado, na quarta-feira, 01 de dezembro, era outro André Mendonça
falando aos senadores. Durante as oito horas que durou a sabatina, os senadores
questionaram Mendonça sobre os temas do casamento entre pessoas do mesmo sexo,
estado laico, democracia, independência do governo Bolsonaro, dentre outros.
Veja
algumas frases de André Mendonça, elaboradas pelo Portal G1.
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Democracia
"Reafirmo
meu irrestrito compromisso com o Estado Democrático de Direito, conforme
expresso desde o preâmbulo da nossa Constituição. Dentro desta perspectiva,
inclui-se o compromisso de respeitar as instituições democráticas, em especial
a independência e harmonia entre os poderes da República. Esse preceito
constitucional está inserido dentro do sistema de freios e contrapesos,
próprios ao Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, entendo que o Poder
Judiciário deve ser pacificador dos conflitos sociais e garantidor da legítima
atuação do demais poderes, sem ativismos ou interferência indevidas nele. Penso
que a automoderação do Judiciário é o corolário lógico do próprio princípio
democrático."
Democracia
conquistada sem 'sangue derramado'
"Eu
disse na fala inicial: a democracia é uma conquista da humanidade. Para nós,
não – mas, em muitos países, ela foi conquistada com sangue derramado e com
vidas perdidas. Não há espaço para retrocesso. E o Supremo Tribunal Federal é o
guardião desses direitos humanos e desses direitos fundamentais."
Pedido
de desculpas
"Primeiro,
meu pedido de desculpas, por uma fala que pode ter sido mal interpretada e que
não condiz com aquilo que eu penso. Vidas se perderam na luta para a construção
da nossa democracia. Além do meu pedido de desculpas, o meu registro do mais
profundo respeito e lamento pela perda dessas vidas."
"Faço
um registro pelo respeito à memória dessas vidas e dessas pessoas. E faço
também um registro de solidariedade, de respeito às famílias dessas vítimas.
Muitos no nosso país lutaram pela democracia e vidas se perderam para a
construção da nossa democracia. E essas vidas merecem ser lembradas e merecem o
nosso respeito."
"Essa
fala foi feita no momento em que fazia referência a revoluções liberais, que
tanto a nossa independência como a nossa República não tiveram como
precedência ou causa uma guerra, uma guerra civil como houve nos Estados Unidos
ou houve uma luta na França. O que não significa que a construção da nossa
democracia não tenha custado vidas. Custaram-se muitas vidas."
Estado
laico
"Me
comprometo com o Estado laico. Considerando discussões havidas em função da
minha condição religiosa, faço importante ressaltar minha defesa do estado
laico. A igreja presbiteriana da qual pertenço, uma das diversas igrejas
evangélicas de nosso país, nasceu no contexto da reforma protestante tendo como
uma de suas marcas justamente a defesa da separação entre igreja e do
Estado."
'Na
vida, a Bíblia; no Supremo, a Constituição'
"Ainda
que eu seja genuinamente evangélico, entendo não haver espaço para manifestação
pública religiosa durante as sessões do Supremo Tribunal. Neste contexto,
também conseguindo que a Constituição é e deve ser o fundamento para qualquer
decisão por parte de um ministro do Supremo, como tenho dito quanto a mim
mesmo: na vida, a Bíblia; no Supremo, a Constituição."
Casamento
gay
"Eu
defenderei o direito constitucional do casamento civil das pessoas do mesmo
sexo. [...] "O casamento civil, eu tenho a minha concepção de fé específica.
Agora, como magistrado da Suprema Corte, eu tenho que me pautar pela
Constituição. [...] Eu defenderei o direito constitucional do casamento civil
das pessoas do mesmo sexo."
Violência
contra população LGBTQIA+
"Em
relação à situação da violência LGBT: Não se admite qualquer tipo de
discriminação. É inconcebível qualquer ato de violência física, moral, verbal
em relação a essa comunidade. Assim, o meu comprometimento é também diante de
situações como essa aplicar a legislação pertinente, inclusive na questão da
própria decisão do STF, que equiparou a ação dirigida a essa comunidade como
racismo. Logicamente, também com a ressalva trazida no STF em relação a
liberdade religiosa, mas ainda assim fazendo-se com o devido respeito a todas
as pessoas."
Decretos
sobre armas de Bolsonaro
"Há
espaço para posse e porte de armas. A questão que deve ser discutida é quais os
limites. [...] Não posso me manifestar sobre o tratamento que foi dado pelos
decretos, mas a segurança pública deve ser um objetivo a ser alcançado por
todos nós. O principal debate deve ser no Legislativo, mas há um espaço para a
regulação."
Política
ambiental
"Há
muitas pessoas que não estão desmatando por que querem, mas para ganhar o pão
de cada dia."
Convite
de Bolsonaro para vaga no STF
"O
convite ali feito [por Bolsonaro] considerava o meu currículo e a qualidade do
meu trabalho. Aceitei ali a missão e como AGU tive a oportunidade de atuar em
diversos julgamentos no STF."
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André Mendonça, certamente, preenche os requisitos para a vaga no SFT. A pergunta que se coloca é qual dos Andrés Mendonças ocupará a vaga no STF, o autoritário que atuou na AGU e no ministério da Justiça, ou democrata polido que se sentou no banco do senado para ser sabatinado? Isso, logo, logo a gente descobre.
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