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Os intocáveis

Posted by Cottidianos on 14:00
Domingo, 04 de agosto


Em qualquer religião oriental ou ocidental há sempre uma figura central: Deus. Jesus Cristo, Oxalá, Buda, a Força Superior, o Criador do Universo, ou qualquer que seja a denominação que lhe deem as mais diversas religiões, os princípios e normas ditados pelos deuses são sempre inquestionáveis. Deus é uma verdade inquestionável. Ele não pode ser julgado, e consequentemente, condenado. Ele está tão acima de todos nós pobres mortais que não pode nem mesmo ser investigado, uma vez que ele encerra em si toda a verdade, honestidade e princípios éticos.

Em resumo, Deus é Deus e ponto final. Suas verdades e princípios são indiscutíveis.
E aí vem a pergunta: algum grupo ou segmento social pode reclamar para si o mesmo tratamento que se destina ao Altíssimo? E, se assim o fizesse, colocando-se acima de qualquer lei ou investigação estaria cometendo heresia?

Nem precisa ir muito longe. Olhemos para nossa própria casa para vermos claros exemplos de pessoas que se colocam acima do bem e do mal, e levam junto consigo nessa escalada para o Olimpo, parentes e familiares.

Em maio de 2018, um grupo de auditores fiscais foi montado pela Polícia Federal com o objetivo de investigar cerca de 800 agentes públicos do Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário suspeitos de ter cometido fraude. O objetivo desse grupo de auditores era verificar o aumento patrimonial dessas pessoas e a relação desse aumento com crimes de lavagem de dinheiro, corrupção, e ocultação de bens. Caso a Receita encontrasse indícios de crimes que fugissem do campo tributário encaminharia tais crimes ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal.

Passado o pente fino, a Receita Federal chegou em fevereiro deste ano a uma lista com 134 nomes de agentes públicos ou que fossem relacionados a eles por indícios de irregularidades tributárias. Entre essas pessoas estavam inclusas a advogada Roberta Maria Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, Isabel Galloti, ministra do STJ, Superior Tribunal de Justiça, e também o ministro do STF, Gilmar Mendes, e a mulher dele, Guiomar Feitosa.

Se dentre esses nomes investigados pela Receita Federal não estivessem os de Roberta Maria Rangel, Isabel Galloti, Gilmar Mendes e Guiomar Feitosa, talvez a investigação tivesse seguido seu curso sem maiores problemas, como tem acontecido com tantas outras investigações daquele órgão fiscal. Mas, as coisas não foram tão tranquilas como os auditores da Receita esperavam. Ou talvez eles esperassem chumbo grosso, mas não tão forte.

Esse meticuloso trabalho foi desenvolvido pela Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias (EEP Fraude). A existência do grupo foi revelada pelo jornal O Estado de São Paulo, em maio de 2018.

Em fevereiro deste ano, a Receita Federal abriu um procedimento para identificar supostos “focos de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio, ou tráfico de influência”, que pudessem ter sido praticados por Gilmar Mendes e Guiomar Feitosa.

No documento, os auditores também explicavam como se dá o tráfico de influência. Diziam eles, “o tráfico de influência normalmente se dá pelo julgamento de ações advocatícias de escritórios ligados ao contribuinte ou seus parentes, onde o próprio magistrado ou um de seus pares facilita o julgamento”.

Como era de se esperar, o ministro do STF ficou igual fera enjaulada: bravo, muito bravo com tamanha audácia dos auditores. Gilmar até chegou a usar termos bem pesados contra os auditores que o investigavam, tais como, “milícias”, e “bando”, além de os acusar de jogar ao vento especulações vazias relacionadas a existência de “achaques”, e de haver naquele órgão fiscal a existência de um mercado de dossiês.

Os auditores ficaram perplexos com tais declarações e reagiram: “Esse espetáculo deprimente contrasta com o papel e as responsabilidades de quem está investido do nobre encargo de zelar pelo respeito à Constituição Federal”, afirmou em nota o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), acrescentando em defesa dos seus profissionais: “Ao contrário do que insinuou Gilmar Mendes – sem apresentar, aliás, a mais ínfima prova – não se trata de um “bando” ou “milícia institucional” destinada a perseguir e “achacar” alvos selecionados por suas predileções ideológicas ou por seu posicionamento crítico à Lava Jato”.

Claro e óbvio em uma cultura que privilegia a corrupção: o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, na quinta-feira passada (01), suspendeu todos os procedimentos investigatórios relacionados aos 133 contribuintes suspeitos de práticas de irregularidades fiscais instaurado pela Receita Federal.

Não contente com apenas essa decisão, ele ainda determinou o afastamento temporário dos auditores da Receita Federal, Wilson Nelson da Silva, e Luciano Francisco Castro.

Diz o ministro em um dos parágrafos de sua decisão: “Dessa maneira, são claros os indícios de desvio de finalidade na apuração da Receita Federal, que, sem critérios objetivos de seleção, pretendeu, de forma oblíqua e ilegal investigar diversos agentes públicos, inclusive autoridades do Poder Judiciário, incluídos Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem que houvesse, repita-se, qualquer indicio de irregularidade por parte desses contribuintes”. Para bom entendedor meia palavra basta: Não mexam com os intocáveis.

 No final da sua decisão o ministro ainda inverte os papeis, subvertendo a lógica de quem quer ver a corrupção banida, ou pelo menos inibida, no país. “Por fim, DETERMINO as oitivas dos auditores Luciano Francisco Castro, Wilson Nelson da Silva, Marco Aurélio da Silva Canal, Eduardo Pucci Hercos, Eduardo Augusto Roelke e Genilson Antonio Zotelle, que serão realizadas pelo magistrado instrutor do presente inquérito”, finalizou assim sua decisão, o ministro Alexandre de Moraes.

A decisão de Moraes foi tomada na esteira do inquérito instaurado pelo STF que investiga fake news e ofensas dirigidas a ministros da Corte, e não apenas a eles, mas também a seus familiares, como se os familiares dos ministros fossem também uma extensão do Supremo.

 O prazo para as investigações terminou em 18 de julho, em pleno recesso do supremo, e o mesmo Moraes determinou a prorrogação do inquérito para mais 180 dias. Tais investigações foram instauradas pelo próprio presidente do Supremo, Dias Toffoli, em março deste ano. Na ocasião, Toffoli, designou o ministro Alexandre de Moraes para cuidar do caso.

A investigação foi muito criticada pela Ordem dos Advogados do Brasil, pela Procuradoria Geral da República, pela cúpula militar, pelo Congresso Nacional, e por diversos setores da sociedade civil, principalmente após a censura à reportagem publicada pela revista Crusoé, e pelo site O Antagonista. Além da busca e apreensão em casa de pessoas que criticavam o STF.

A procuradora geral da República, Raquel Dodge, enviou ao STF, um parecer no qual pede o deferimento de uma ação movida pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). A ANPR é contra o processo aberto para investigar as fake news contra ministros do STF.

No parecer divulgado neste sábado (03), Dodge diz que o inquérito cria um verdadeiro tribunal de exceção, e que usurpa competências do Ministério Público e que fere a Constituição.

Se o Ministério Público é privado de realizar essa avaliação, ela será feita diretamente pelo magistrado, que, então, atuará como investigador. Tal dinâmica ofende, a um só tempo, o princípio da separação de poderes e o sistema acusatório vigente no país”. Diz Dodge. “Além de investigador e julgador, o Ministro Relator do Inquérito 4781 é vítima dos fatos investigados – que seriam ofensivos à “honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. Acrescenta a procuradora.

E Dodge tem razão, pois um órgão no qual seus membros estão envolvidos em uma investigação e se torna, ele mesmo, investigador e julgador, que imparcialidade e neutralidade podem haver nessa questão?

Outra decisão controversa e que vai na contramão dos países que procuram encontrar meios de combater a lavagem de dinheiro também foi de Dias Toffoli, presidente do STF.

Em meados de julho, Toffoli, ainda em pleno recesso do Supremo, a pedido da defesa do senador Flavio Bolsonaro, decidiu suspender as investigações em todo o país que usem dados detalhados de órgão de controle, a exemplo do Coaf, Receita Federal e Banco Central, sem autorização judicial.

A decisão beneficiou grandemente o senador ao paralisar a apuração contra ele realizada pelo Ministério Público do Rio. Ela também atinge diretamente procedimentos criminais de todas as instâncias país afora que tenham se baseado em dados e informações obtidas a partir desses órgãos de controle. A decisão afeta investigações contra crimes de lavagem de dinheiro e até mesmo de tráfico de drogas, e integrantes de milícias.

As investigações que envolvem o filho do presidente tiveram início a partir do compartilhamento de informações do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), e se originaram da observação de movimentação financeira atípica no valor de R$ 1,2 milhões na conta do ex-assessor dele, Fabrício de Queiroz — que é outro que após o escândalo sumiu dos holofotes — entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017.

A decisão em favor de Bolsonaro provocou certa desordem e confusão, e muita polêmica. A começar, primeiro tenha-se em mente que durante esse período de recesso do STF, apenas casos de urgência e extrema necessidade são julgados. É como um pronto-socorro: atende casos de urgência. Afora isso, não há necessidade de se conceder liminar para casos não urgentes. O que não era o caso das investigações envolvendo o senador Flávio Bolsonaro.

O que chama atenção nessa questão é que os Bolsonaro se elegeram com um discurso anticorrupção, e o pedido de Flávio Bolsonaro, e a decisão de Toffoli vão na contramão desse discurso, ao atar às mãos dos órgãos de controle e de barrar investigações importantes no combate à corrupção em todo o país. Onde está a lógica de tudo isso? O leitor ou leitora consegue detectar?

O problema em nosso país é que corrupção é coisa endêmica, sistêmica, ela se alastrou tanto que já deitou suas raízes nos vários níveis de poder. Existem muitos intocáveis, até mesmo aqueles que se elegeram levantando bandeiras de moralidade e luta contra a corrupção estão imersos nesse sistema perverso.

A lei foi feita para todos e ninguém está acima dela, nem aqueles que a elaboram, nem os que a executam, e muitos aqueles que as interpretam e julgam.


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