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João de Deus: A face do mal
Posted by Cottidianos
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Sexta-feira,
05 de abril
Foi
no ano de 1973. A jovem de 17 anos estava recostada no banco do carona. Perdia
os olhos na paisagem verdejante que ladeava a estrada que ligava Abadiânia a
Alexânia. As duas cidades localizavam-se no estado de Goias, e separadas uma da
outra por cerca de 30 quilometros. A jovem pequena e franzina, mais parecia uma
criança. Um misto de curiosidade e apreensão lhe dominavam os pensamentos. Pensou
na tia que havia deixado na casa de caridade, em Abadiania.
Sua
tia viva bastante adoençada e alguém havia falado do médium João de Deus que
tinha o dom de cura. Resolveram então procurá-lo. Depois de atender a tia da jovem,
o médium disse a esta que sua acompanhante também precisava de um tratamento
específico, e que a levaria para este tratamento fora da casa, trazendo-a de
volta em seguida.
O
homem ao volante da caminhonete no qual viajavam era, era um pouco mais velho
que ela, tinha 30 anos. Seu nome era João Teixeira de Faria, mas todos o
conheciam por João de Deus. Guiava o veículo em alta velocidade. Seu semblante
era tenso. Tinha pressa de chegar ao lugar que tinha em mente, muita pressa.
Depois de fazer o que lhe passsava pela mente, era necessário voltar e
continuar o atendimento espiritual que fazia em uma casa de caridade em
Abadiania. Vários pacientes haviam agendado consultas e curas para aquele dia e
estavam a sua espera.
Em
dado momento, cansada de olhar a paisagem, a jovem se vira para o motorista e
pergunta:
—
Aonde estamos indo?
—
Fica queita, fica quieta. Vou só fazer uma limpeza espiritual em você.
—
Ainda falta muito?
—
Não. Estamos quase chegando.
Enfim,
a caminhonete estacionou em um lugar ermo. Uma área rural distante da cidade.
Desceram do carro, e o médium levou a jovem para debaixo da ponte. O silêncio
reinava absoluto no local, sendo quebrado apenas pela brisa do vento que
soprava constante, e pelo canto das aves que pousavam na galhada das árvores.
Ali
o médium foi dominado pelo desejo que nutria pela jovem. Seus olhos eram cheios
de lascívia. Partiu para cima dela e começou a tirar-lhe a roupa: primeiro o
vestido verde que ela usava, depois a calcinha, e em seguida, tirou a própria
roupa. Ela percebeu seu membro excitado, e logo soube que não haveria limpeza
espiritual alguma, que aquilo havia sido apenas uma desculpa para atraí-la para
aquele lugar.
Bastante assustada, gritou por socorro, porém,
naquelas paragens desertas, não havia viva alma que lhe acudisse os gritos.
—
Me deixa, por favor! Eu nunca tive relações sexuais com homem algum. Estou
noiva. Vou casar em breve: daqui a dois meses. Não faz isso comigo não.
Implorou ela em prantos.
Nada
disso sensiblizou os ouvidos de João de Deus. Ele parecia mais um animal que um
homem. E, brutalmente, a possuiu ali mesmo, enquanto lágrimas amargas escorriam
pelo rosto da jovem. Após o ato sexual a jovem foi acometida de uma forte
hemorriagia. O sanguem jorrava aos borbotões.
—
Diabos! E agora, como vou resolver essa situação. Se a jovem de volta desse
jeito, a polícia vai me prender. É o fim da minha carreira. Disse o médium com
os olhos cheios de pavor.
Tomou
então uma decisão radical. A única, que no seu entender, resolveria de vez o
problema: assassiná-la. Imediatamente, abaixou-se e pegou um revolver de dentro
da bolsa que trouxera junto consigo.
Antes,
porém, bateu na cabeça da jovem com uma pedra. O sangue, além das partes
íntimas, começou a escorrer também da cabeça pelo resto do corpo. Em seguida, o
homem disparou três tiros na jovem que caiu inerte.
João
de Deus certificou-se de que não havia niguém pelas redondezas. Não havia mesmo.
O caminho estava livre. Ele então arrastou o corpo da jovem e o jogou no rio,
onde também lavou-se para livrar-se das marcas de sangue que haviam respingado
em seu corpo. Qualquer vestígio de crime fora apagado. O homem respirou
aliviado. Olhou mais uma vez em volta para ver se não havia deixado nenhuma
pista. Tudo estava em ordem para o que se espera da beira de um rio. Apressado
subiu o barranco, e seguiu, normalmente, em direção a Abadiania, onde seus
pacientes esperavam.
Ao
chegar, a tia da jovem perguntou-lhe:
—
Onde está minha sobrinha que não retornou com o senhor?
Calmamente,
ele respondeu:
—
Ela ficou absolutamente desesperada com o casamento. E fugiu para não ter que
asssumir essa responsabilidade.
Dizem
que os anjos estão por toda a parte. Um deles, em forma de pescador, estava
passando pelo lugar onde o corpo da jovem fora atirado. Foi ele que percebeu
que ela ainda respirava. Puxou-a então para fora do rio. Ainda com dificuldade
ela conseguiu dizer:
—
O monstro me matou. Você é o espirito que veio me resgatar?
O
pescador respondeu:
—
Fique tranquila, menina. Você não morreu, e eu sou apenas um pescador. E, agora
mesmo, vou subir até a estrada e buscar ajuda. Vou chamar um carro para lhe
levar para o hospital.
Um
sorriso de alívio brotou dos lábios da jovem enquanto via o pescador se
afastar, subir rapidamente o barranco, e desaparecer por entre a vegetação.
A
jovem passou um longo tempo no hospital. O casamento não aconteceu.
Profundamente traumatizada, ela silenciou sobre os fatos acontecidos naquele
dia. Não deu explicações nem pra família, nem muito menos para a polícia.
Mudou-se para um estado da região Nordeste.
O
crime, acontecido em 1973, já prescreveu, assim como muitos outros crimes
praticados por João de Deus, mas o Ministério Público pode usar o caso descrito
acima para traçar o perfil criminológico do medium que, por sua vez, deverá ser
usado no julgamento dos crimes de abusos sexuais.
***
O
relato acima foi baseado no depoimento de uma testemunha ao Fántástico, exibido
no último dia 24 de março. A fonte não quis se identificar. Quarenta anos se
passaram. Somente após a prisão do médium, em dezembro do ano passado, é que
ela criou coragem para procurar a polícia e relatar essa triste história.
A
avalanche de denúncias contra João Teixiera de Farias começou durante o
programa Conversa com Bial, da Globo, apresentado por Pedro Bial, e exibido na
sexta-feira, 07 de dezembro do ano passado.
O
programa trouxe depoimentos de mulheres que foram a Casa Dom Inácio de Loyola,
em Adadiania, Goías, em busca de tratamento espiritual, mas que disseram se
sentir abusadas sexualmente pelo médium. E por que eles silenciaram durante
tanto tempo? Pelo medo de sofrerem algum tipo de “retaliação espiritual”, que
eram expressas através de ameaças feitas pelo mediúm às vítimas.
Uma
dessas mulheres, que não quis se identificar, disse a Pedro Bial que João de
Deus a ameaçou dizendo que se ela falasse alguma coisa, a doença da qual ela
havia sido curada, voltaria. Já a coreografa holandesa, Zahira Lienike Mous
disse que ela tinha medo de que eles (o pessoal da casa Dom Inácio de Loyola),
mandassem espíritos para infernizar a vida dela.
No
total, foram ouvidos pelo programa relatos de 10 pessoas, mas por causa do
tempo de TV foram levados ao ar, apenas 04 depoimentos, o de Zahira e de mais
três brasileiras. A holandesa foi a única mulher que aceitou mostrar o rosto.
Após
o programa uma avalanche de denuncias desabou sobre o medium. Mulheres que
também haviam passado pela mesma situação, como em uma reação em cadeia,
criaram coragem e procuraram o Ministério Público. O MP registrou mais de 300
denúncias de abuso contra o mediúm. Em 16 de dezembro de 2018 a polícia o prendeu.
Logo
após a prisão de João de Deus, o produtor do Fantástico, James Albert começou
uma investigação jornalística. Um trabalho de formiguinha nos arquivos da
polícia e da justiça que durou três meses e cuja finalidade de encontrar denúncias
inéditas contra o médium que o ligassem a algum tipo de crime, e encontrou o
que procurava.
Uma
delas foi o relato que abre esse artigo e que foi baseado no que James encontrou
em suas buscas. Mas esse foi apenas uma faceta da história, tem mais, muito
mais, como vocês verão a seguir.
Em
27 de janeiro de 1980, o assassinato do taxista Devanir Fonseca não ficou
esclarecido, mas nessa história aparece a sombra de João de Deus como suspeito.
Ele, o taxista, transportava dois passageiros quando foi morto a tiros. Os assassinos
abandonaram o corpo no chão e fugiram com o táxi.
Uma
das testemunhas ouvidas pela polícia afirmou que o mandante do crime teria sido
João de Deus. Quais os motivos que o médium teria para querer ver o taxista
morto? O homem teria se envolvido com a mulher de João e com ela teria tido um
caso. Ouvida pela polícia a mulher afirmou não haver traído o marido, e este se
auto afirmou inocente. Dois anos depois do crime, em 1982, ele foi absolvido
por falta de provas.
A
Casa Dom Inácio de Loyola, para onde acorriam gente de todas as partes do
mundo, foi inaugurada em 1976, e com ela a fama de João de Deus começou a
aumentar ainda mais, principalmente, durante os anos 80.
Ainda
durante essa década, em 1985, veio outra enrascada em que Joao de Deus se meteu:
tráfico de material radioativo. Existia na região uma mina clandestina de autunita,
um mineral encontrado em Campos Belos, no Norte de Goiás, e do qual se extraí o
uranio que pode ser utilizado na produção de energia nuclear e bombas atômicas.
Segunda a reportagem do Fantástico, o médium chegou a estocar 300 quilos de
autunita perto da casa de caridade onde exercia suas atividades espirituais.
Extremamente
ambicioso, ele queria ganhar dinheiro, muito dinheiro com a exploração do minério.
Pegou os 300 quilos que havia escondido em uma chácara, em Abadiânia e outros
700 que estava em outra cidade. o médium então juntou estas duas partes,
perfazendo uma tonelada de minério, colocou o material em uma caminhonete, e
rumou para o aeroporto. Foi preso pela polícia antes de chegar lá, juntamente
com mais 4 pessoas. Ele confessou o crime e respondeu o processo em liberdade.
À
polícia, ele afirmou que não sabia que tipo de minério era aquele e também
apresentou uma declaração fornecida por um dos acusados constando que ele
apenas faria o transporte do material até o aeroporto. Tudo muito conveniente e
bem arranjado. Apenas em 2000 é que saiu o veredito da justiça, extinguindo a punibilidade
e absolvendo os réus. Mais uma vez o médium saiu impune. As investigações
feitas pelo Fantástico mostrou ainda que o médium havia se envolvido também com
tráfico de drogas, mas essas denúncias não foram investigadas pela polícia.
O
trabalho de tirar a poeira de debaixo do tapete feita pelo produtor do
Fantástico levou a outro fato assustador. Desta vez o ano foi 1986 e envolveu,
novamente, assassinato. Era 27 de junho daquele ano. Os brasileiros estavam empolgados
pois naquele dia o Brasil entrava em campo para disputar mais uma partida pela
Copa do Mundo. Jogaram Brasil e Gana com vitória do Brasil por 3 x 0, nas oitavas
de final do campeonato.
Na
Alemanha, Hannelore Boldi, havia ouvido falar de João de Deus e de seus dons
espirituais e trouxera o filho, usuário de drogas, para tratamento. Ela havia
chegado dias antes a cidade de Abadiânia. Não se sabe o que houve, mas ela começou
a espalhar pela cidade que o médium era um charlatão. Ela queria denunciá-lo publicamente,
e revelar que a Casa Dom Inácio e o médium que a comandava eram uma farsa.
Após
o jogo entre Brasil e Gana, naquela noite, a alemã foi misteriosamente
assassinada com um tiro à queima-roupa no peito. Mas nos registros da polícia
para este caso, entretanto, estava escrito que a alemã havia tido morte
natural. E essa notícia foi a que se espalhou pela cidade. Mas os moradores sabiam
que isso não era verdade. Ela havia mexido com João de Deus, e quem mexia com
ele, não acabava bem, como a alemã também não acabou.
Os
exames feitos pelo IML desmentiram a versão de morte natural dada pela polícia.
O estranho é que não houve uma linha de investigação sobre o fato de a alemã estar
determinada a desmascarar o médium João de Deus. Em 2016 o caso foi arquivado. Ninguém
foi preso.
Estupro
de vulnerável, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, ameaça
a testemunhas, abusos sexuais, assassinatos. Essa é face maquiavélica de João
de Deus que nem o Brasil, nem o mundo conheciam. Apenas conheciam o homem que
tinha o dom de fazer a ponte entre o mundo espiritual e o mundo material. Ele,
certamente, ajudou muita gente. Tinha o dom. Mas o que era para ser uma
história gloriosa, a casa que era para ser exemplo de caridade, era apenas uma
faixada para esconder uma história de abusos e crimes.
João
de Deus esqueceu-se de lembrar da lição mais importante. O bem que se faz aos
outros retorna para quem o faz em dobro. Idem para o mal. E quanto mal o médium
espalhou, e quantas pessoas não teria ele prejudicado. Mais de 300 denuncias de
abusos sexuais,ea agora essas acusações de assassinato, e quantas outras
maldades não ficaram debaixo de tapete, perdidas no tempo sem que ninguém
conseguisse tirá-las de lá.
O
médium João de Deus — o nome agora até nos parece uma heresia — é mais um
personagem que jogou uma bela biografia na lata do lixo. É mais um exemplo de
que a justiça tarda mais não falha. A lei divina também punirá, no tempo
devido, àqueles que propiciaram que um criminoso como João de Deus, praticasse
tantas barbaridades por tanto tempo, e saísse de todas elas impunes. Ele era
poderoso, tinha dinheiro, e dinheiro compra consciências fracas de delegados,
juízes, policiais, políticos, e de quem mais atravesse no caminho dos poderosos
e possa auxiliá-los de alguma forma. A justiça dos homens pode até não chegar
para todos, mas a justiça divina, certamente, chegará.
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