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Capoeira e capoeiristas: Riquezas do Brasil
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Sábado, 31 de maio
Entrevista Jamil Raimundo (Mestre Museu)
“Nossa grande vitória é fazer o cidadão
de bem”
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Jornal
do Brasil
Domingo,
15 de julho de 2008
Capoeira se torna patrimônio cultural brasileiro
SALVADOR, BAHIA
- A capoeira se tornou o mais novo patrimônio cultural brasileiro. O registro
desta manifestação foi votado nesta terça-feira, em Salvador, Bahia, pelo
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), que é constituído por 22 representantes de
entidades e da sociedade civil, e delibera a respeito dos registros e
tombamentos do patrimônio nacional.
O instrumento
legal que assegura a preservação do patrimônio cultural imaterial do Brasil é o
registro, instituído pelo Iphan. Uma vez registrado o bem, é possível elaborar
projetos e políticas públicas que envolvam ações necessárias à preservação e
continuidade da manifestação.
Estiveram
presentes ao evento o ministro interino da Cultura, Juca Ferreira, o governador
da Bahia, Jacques Wagner, o presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, o
presidente da Fundação Palmares, Zulu Araújo, os embaixadores da Nigéria e do
Senegal, além de autoridades locais.
O presidente do
Iphan anunciou a inclusão do ofício dos mestres da capoeira no Livro dos
Saberes, e da roda de capoeira no Livro das Formas de Expressão. A divulgação e
implementação dessa atividade em mais de 150 países se deve aos mestres, que
tiveram sua habilidade de ensino reconhecida.
Segundo o
ministro interino Juca Ferreira, a votação foi um momento de reparação em
relação a esta prática afro-descendente.
- Nós estávamos
devendo isso aos mestres de capoeira, responsáveis por uma das manifestações
mais plurais e brilhantes de nossa cultura - afirma.
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Imagem: Facebook Mestre Museu |
Esta era a matéria publicada pelo Jornal do Brasil, e por muitos outros veículos de comunicação brasileiros, no do dia 15 de Julho de 2008. Era com grande alegria que capoeiristas da Bahia e de todo o Brasil festejavam a notícia. Afinal, era o reconhecimento de uma parte da identidade cultural brasileira que, durante grande parte do século XIX, e até as três primeiras décadas do século XX, foi considerada uma luta marginal, tendo seu nome e suas práticas associados ao mundo do crime.
A
história da capoeira é uma história de altos e baixos. Durante os anos do
Império os capoeiras tiveram seus momentos de glória e reconhecimento por terem
ajudado o Brasil na guerra do Paraguai. Porém, com o advento da República a
capoeira foi rotulada como prática criminosa e perseguida veementemente, tendo
sido incluída no Código Penal Republicano, que em seu capítulo XIII, tratava dos
“Vadios e Capoeiras”, e prévia penas aplicáveis a esses lutadores, nos artigos 402,
403 e 404 do referido Capítulo.
Enfim,
depois de muitas lutas a capoeira se transformou de vilã em heroína. Mesmo assim,
não recebeu o devido valor e ainda hoje não ocupa o lugar de honra que lhe é
seu por direito, no cenário das manifestações artísticas e culturais
brasileiras. Pelo menos, foi o que deduzi após entrevistar, Jamil Raimundo, — um
respeitado mestre de capoeira da cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais,
que iniciou-se na capoeira durante a década de 70.
Jamil
Raimundo — Mestre Museu na capoeira — possui uma vasta experiência nessa luta
genuinamente brasileira nascida nas senzalas do Brasil colonial. Conheci o
mestre Museu, por ocasião do aniversário do mestre Salário, em Campinas, no
inicio deste mês. Quando me aproximei para conversar com ele, o mesmo se
encontrava sentado ao pé de uma das árvores de uma praça no centro da cidade,
onde havia sido comemorado, ao som do Berimbau, o aniversário do mestre
Salário. Mestre Museu conversava com uma das discípulas da capoeira,
instruindo-a. Esperei que o mestre aconselhasse a moça. Mestre
Museu conversava com uma das discípulas da capoeira, instruindo-a. Esperei
que o mestre aconselhasse a moça. Terminada a conversa, ele se levantou. Fui
até ele e perguntei-lhe se me concederia uma entrevista, pedido que ele,
gentilmente, atendeu.
***
Imagem: Facebook mestre Museu |
José Flávio — Seu nome mestre?
Mestre Museu — Meu nome é
Jamil Raimundo.
José Flávio — Mestre Jamil?
Mestre Museu — Não, meu nome
é Jamil Raimundo. Meu apelido na capoeira é mestre Museu, de Belo Horizonte.
José Flávio — Fale sobre o senhor e sobre sua história na
capoeira…
Mestre Museu — Tenho 49
anos. Eu comecei com 10 anos. Já tenho 39 anos de capoeira. O ano que vem faço a festa de 50 anos de idade e 40 anos de capoeira. Sou capoeira da geração
de Belo Horizonte, da época de 75, que foi quando eu comecei a capoeira, e hoje
tenho um trabalho de capoeira em 12 países, em vários estados do Brasil, e
também em mais de 30 cidades do interior de Minas Gerais. A gente faz um
trabalho tentando levar um pouquinho da nossa capoeira que muitos brasileiros
ainda não conhecem, não sabem o que é a capoeira de verdade. A capoeira, ela é
genuinamente brasileira. Hoje a capoeira tomou conta dos cinco continentes. A
capoeira… Sou de uma família muito simples, muito humilde, muito pobre, e,
hoje, a capoeira já me levou por toda a Europa, para a América, para a Ásia.
Hoje, eu conheço tudo através da capoeira. Acho que, se eu tivesse uma outra
profissão, não estaria fazendo o que faço hoje. Tenho muitos alunos, tenho uma
sede própria em Belo Horizonte. Eu diria que a capoeira me proporcionou isso.
José Flávio — Como funciona esse trabalho em outros
países?
Mestre Museu — Nós temos
trabalhos em vários países, na África, na Polônia, na Bielorússía, por exemplo.
A gente tem um trabalho lá com os jovens que começaram capoeira….
José Flávio — O Sr. Mesmo coordena esse trabalho?
Mestre Museu — Sou eu que
coordeno o trabalho em todos esses países. Nós estamos indo para a Polônia,
agora em junho, eu o Mestre Salário, nós estamos indo para a Polônia indo dar
mais uma vivência lá. Em setembro eles estarão conosco aqui no Brasil. A gente
fica fazendo esse intercâmbio.
José Flávio — E o trabalho em Belo Horizonte?
Mestre Museu — A gente faz
um trabalho grande em Belo Horizonte. Trabalho com criança que vive em área de
risco, criança pobre. O nosso foco maior em Belo Horizonte é trabalhar com
criança humilde, crianças pobres, que vivem em situação de risco. Esse é o
nosso foco maior, é o nosso objetivo. Muitas vezes, as pessoas pegam uma
criança para fazer capoeira. O problema não é fazer um capoeirista, nosso
grande grande objetivo, nossa grande vitória é fazer o cidadão de bem. Esse é o
nosso maior foco fazer o cidadão de bem.
Imagem: Facebook Mestre Museu |
José Flávio — Que diferença o Sr. percebe quando esses meninos chegam na capoeira e depois que eles começam a praticar a luta?
Mestre Museu — Eu fiquei em
um projeto, dentro de uma favela, durante nove anos. Tinha mais de duzentas
crianças comigo. Dessas duzentas crianças, cinco ou seis foram para o mundo do
crime, o restante não. Todas estão trabalhando… Eu tenho acompanhado elas… O
projeto acabou, mas nesses nove anos valeu demais o trabalho que nós fizemos
nessa vila. É muito importante! Muito, muito gratificante!
José Flávio — O Sr. falou em seu discurso que se não tiver
cuidado a capoeira, vai ficar restrita aos mestres que já estão na prática.
Porque é que a capoeira corre o risco de perder sua força?
Mestre Museu — No meu ponto
de vista, o capoeirista, o povo brasileiro, na verdade, ele não é muito
agarrado na cultura brasileira. Hoje, você pode observar que os praticantes de capoeira, no
Brasil e no mundo, são todos de classe média ou pobres. Rico não prática mais
capoeira. É uma raridade. Rico não pratica capoeira, eu creio também, por
muitas coisas que aconteceram na capoeira. E hoje, a gente vê que as academias
de capoeira vão se abrindo e você não tem inscrições de adultos. O que você
mais vê são inscrições de crianças. Então o maior foco na capoeira, hoje, são
as crianças. As crianças, hoje, estão tomando conta da capoeira. Eu sei que,
através dessas crianças, nós vamos ter um futuro melhor. Se depender dos
adultos, a capoeira vai parar.
José Flávio — Mas a presença das crianças é um fator
positivo, pois as crianças irão renovar essa tradição…
Altamente
positivo. Porém, a gente passa por momentos muito difíceis com capoeira.
Aqueles mestres de capoeira, que viviam de capoeira, já não conseguem viver
mais dessa arte. Uns foram embora para a Europa. Hoje, a gente tem um número
grande de adolescentes ministrando aula de capoeira. Isso não é bom para a
capoeira. Esses adolescentes não têm conhecimento, não tem fundamentos. Isso
denigre um pouco a imagem de nossa capoeira. Um garoto de dezoito, dezenove
anos, ele não tem aquela filosofia, aquele carisma que tem o mestre de capoeira.
Então isso faz com que os mestres desistam e vão para outros países, porque os
outros países valorizam a nossa arte. Infelizmente, nesse país, a gente não
encontra os valores que deveriam ser dados a arte da capoeira.
José Flávio — O capoeirista ainda é discriminado nos dias
de hoje?
Mestre Museu — Demais,
demais, demais. Só para lhe dar um exemplo, vejo eventos com bandas que
incentivam o mundo do álcool, o mundo das drogas, e essas bandas são
patrocinadas por grandes empresas e, quando nós abrimos nosso coração para
receber todas aquelas crianças da periferia — que não precisam de muita coisa,
às vezes precisam de uma camiseta, precisam de um lanche, nós estamos levando
essas crianças para a sociabilidade, nós não encontramos esses grandes
patrocínios, que levam para as praças, grandes movimentos de hap, grandes
movimentos de heavy-metal, que incentivam o álcool, que incentivam as drogas,
que fala de droga, que falam do uso de entorpecentes. Nós da capoeira fazemos
diferente, nós não damos incentivo ao álcool, não incentivamos a droga, pelo contrário,
nosso trabalho é socializar, trazer essas crianças para um mundo melhor, trazer
essas crianças para um momento melhor., principalmente com família, com vida, e
muito respeito ao próximo. É
isso o que a gente ensina a essas crianças.
José Flávio — Mestre, gostaria de agradecer pela
entrevista. Esse é um espaço aberto a sua disposição, se quiser acrescentar
mais alguma coisa, fique à vontade…
Mestre Museu — Eu quero só
te agradecer por essa entrevista e que as pessoas que forem ler o seu blog, que
elas comecem a refletir, principalmente, os empresários, pessoas que gostam de
ajudar movimentos culturais, para que eles possam ver o que a capoeira tem feito
nesse país. As pessoas ainda não viram o que a capoeira tem feito nesse país. O
que a capoeira tem feito em nosso país e o que a capoeira tem feito nos países
da Europa, nos países da América Central, eu repito, as pessoas ainda não sabem
o que a capoeira tem feito nesses países, principalmente nesses países. Esses
capoeiristas que estão aí dentro das vilas, nesses aglomerados, falando de
social para filho de traficante. Não é qualquer professor que entra dentro de
uma favela perigosa e fala de vida social para filho de traficante perigoso,
do PCC, do Comando Vermelho. Não é qualquer professor que faz isso. É raro um
professor de capoeira, não vou nem falar de um professor de capoeira, vou falar
de um educador, mas o capoeirista, ele tem coragem. Lá em Belo Horizonte, eu
falo para filho de traficante e o pai está lá porta, com a pistola na cintura,
vendo o treino de capoeira, e nós estamos falando de socialização para o filho
dele, e ele gosta. Isso é o que o capoeirista faz. As pessoas têm ainda uma
mentalidade de uma capoeira do passado, de malandragem. Não, hoje a capoeira
não é mais assim. Hoje a capoeira é um momento especial. Hoje viver capoeira é
um momento especial, um momento de alegria, de confraternização, de
socialização, de educação, e de fazer o verdadeiro cidadão de bem para a
sociedade.