0

Apogeu, dramas e glórias: histórias dos teatros de Campinas - II Parte

Posted by Cottidianos on 00:43
Quinta-feira, 31 de outubro

Teatro Municipal de Campinas

Tenho uma profunda admiração pelo prefeito Rafael de Andrade Duarte. Reconheço que foi uma atitude corajosa, por parte dele, autorizar minha demolição, Teatro São Carlos. Como já disse anteriormente, era o Teatro São Carlos, foco das atenções, o símbolo cultural da cidade. Rafael de Andrade era um homem à frente de seu tempo, amante de teatro e mente cheia de boas ideias.

A pedra fundamental do edifício foi lançada em 7 de setembro de 1921, as obras porém somente foram iniciadas em fevereiro de 1924. O projeto escolhido foi o dos arquitetos Chiappori & Lanza e, para a construção, foi escolhido o projeto do engenheiro Mariano Montessanti. A construção teve início, de fato, em fevereiro de 1924 e prosseguiu sem interrupções até o ano de 1926, quando foi rescindido o contrato com Montessanti. Em 1926, Orozimbo Maia assumia o governo da cidade. Maia, que já havia governado Campinas entre 1908 e 1910, entrava agora num segundo mandato (1926 a 1930); e teve ainda um terceiro mandato (1931/1932).  Foi sorte, pois o prefeito era, igualmente aficionado pelas artes. Orozimbo Maia, encontrou confiança no arquiteto Cristiano das Neves para organizar detalhes arquitetônicos e fazer o orçamento geral da obra a fim de que esta fosse, finalmente, concluída.
Teatro Municipal de Campinas / Fotos cedidas pelo MIS (Museu da Imagem e do Som de Campinas)

Após oito anos, renascia em grande estilo sob o nome de Teatro Municipal de Campinas – em 1959 mudaram meu nome para Teatro Municipal Carlos Gomes. Estava mais amplo, mais elegante, mais charmoso. Exibia, com orgulho, meus cinco pavimentos: O primeiro era destinado ao porão; no segundo, ficava a plateia e as frisas; no terceiro ficavam os camarotes e o “foyer”; no quarto, os balcões; e, no quinto, as galerias. Artistas, a quem tive a honra de receber, podiam sentir-se absolutamente confortáveis em oito camarins, sendo 4 camarins simples e 4 duplos. Os coristas também não tinham do que reclamar, pois à eles foram destinados dois amplos vestiários. Nas caixas duplas de meu palco podiam ser montados dois cenários, um em cima do outro, tornando-se desse modo, um cenário com amplas dimensões.

Quanto à lotação da casa, podia receber tranquilamente 1.483 convidados. O pó de ouro que revestia minhas paredes era um luxo à parte. As belas escadarias da entrada eram feitas com mármore de Carrara, - (Carrara - comuna italiana, localizada na região da Toscana). Com o mármore daquela região foram esculpidas diversas obras do período renascentista, inclusive, a famosa David, de Michelangelo. – Belos vitrais artisticamente decorados, me davam certo ar de imponência. Sentia-me a altura dos melhores teatros do mundo.
Foi assim, que com vestes de rei, no dia 10 de setembro de 1930, em noite de gala, abria as portas para receber autoridades civis e militares e também a elite da sociedade campineira, para a festa de inauguração. Diferentes peças líricas, de diversos autores  foram apresentadas em cinco dias, tendo sido reservado para o “grã finale” a opera Il Guarani, do maior gênio musical das Américas, o campineiro Antonio Carlos Gomes. A ópera, na ocasião, foi encenada pelos cantores Carmem Gomes e Reis Silva. Assim, em homenagem ao grande maestro, recebi orgulhoso, o nome de Teatro Municipal Carlos Gomes. Em amplo saguão frontal, vários artistas plásticos tinham espaço para expor obras de pintura, desenhos, esculturas, e, num lance de escadas, chegava-se a um amplo salão superior que abrigava magnifica biblioteca - onde estudantes se reuniam para pesquisas e palestras. Tudo isso sob a coordenação precisa do ilustre médico, artista plástico, teatrólogo, cenologo, Dr. Carlos Maia, filho de Orozimbo Maia.

Minha fama logo correu mundo e não demorou para que começasse a receber grandes companhias e artistas de renome internacional. Esses artistas, invariavelmente, saiam da cidade impressionados com o nível cultural do povo desse lugar.

Lembro-me, perfeitamente, de um fato que ilustra o que acabo de dizer. Em 1952, Bibi Ferreira, uma das melhores atrizes brasileiras da época, veio à Campinas para apresentar a comédia O Noviço, da obra de Martins Pena. O diretor da peça andava de um lado a outro, preocupado. Pensava em como iria arranjar técnicos especializados e materiais para a montagem da peça. Imaginava ele que perderia uns dez dias, viajando à São Paulo, buscar o que faltava para a montagem do espetáculo. Alguém lhe disse então, que tudo o que precisava poderia ser encontrado aqui mesmo na cidade, inclusive o pessoal especializado. E assim foi feito, em três dias já estava tudo pronto para a estreia da peça. o Teatro era palco democrático para outros eventos importantes da cidade, como solenidades diversas, palestras, formaturas, apresentações musicais, peças teatrais, espetáculos de canto e dança da chamada "Prata da Casa".




Com o passar dos anos eu, que era o cartão de visitas da cidade; um edifício com linhas arquitetônicas clássicas, que possuía uma estrutura imponente e grandiosa, fui sendo, aos poucos, relegado ao abandono. Clamava por reformas importantes e fundamentais. Era como se ninguém me ouvisse, ou pelo menos, fingisse que não. Houve algumas iniciativas nesse sentido, mas querem saber a verdade... Eram reparos tão grotescos, retaliações mal feitas, que nem sequer mereciam o nome de reforma.

Cheguei ao meu 30º aniversário sofrendo a ação impiedosa do tempo.  Escadas quebradas, cortinas rasgadas. A cúpula de onde pendia o belo e valiosíssimo lustre, achava-se rachada em diversos lugares, em dias chuvosos a água penetrava por entre essas rachaduras  e caia nas poltronas e tapetes. O piso dos corredores estava gasto e deixava à mostra remendos grosseiros, feitos com material diferente do original, causando uma péssima impressão. O descaso era visível em todas as partes: no palco, nos cenários, nos ornatos de gesso pintados a ouro, que decoravam as frisas. Em 04 de janeiro de 1961, o jornal Correio Popular, trazia em sua manchete: Serão iniciadas hoje as reformas no Teatro Municipal.

Eu, que vinha funcionando há trinta anos, sob intensas atividades, deleitando artistas e espectadores, sem que houvesse recebido quaisquer melhorias significativas, precisava de intensas reformas. Entretanto, acabei sofrendo apenas uma reforma parcial. A empresa Sociedade Tekno Ltda, contratada pelo prefeito Miguel Vicente Cury, fez uma cobertura metálica para o palco e outra para a plateia. Após essas intervenções reabri as portas.

Volto meu olhar ao ano de 1951, nesse ano, uma tragédia agitou o meio cultural na cidade: o Cine Rink Campineiro desabou durante uma matinê de domingo, dia em que a casa recebia maior público. Várias pessoas morreram nesse acidente. O prédio estava, aparentemente, seguro, entretanto, apresentava sérios problemas na estrutura.  Esse fato, de certa forma, iria repercutir, de forma negativa, em um crime cometido contra a cultura, em 1965.

As reformas superficiais realizadas em 1961, não surtiram o efeito desejado e os problemas não tardaram em retornar. Em novembro de 1964, foram constatados problemas no madeiramento e outros defeitos sérios, que foram sendo acentuados com o decorrer do tempo, como por exemplo, o desligamento dos nós no madeiramento do telhado, que poderia ocasionar o desmoronamento da cobertura. As cenas da tragédia do Cine Rink vieram imediatamente à lembrança de todos. No meu caso, os defeitos estavam sendo percebidos, e seriam facilmente solucionáveis. Ainda durante o mês de novembro fui interditado.

Duas equipes de engenheiros passaram a circular constantemente pelo local elaborando laudos, fazendo vistorias: uma equipe era formada pelo pessoal da prefeitura e a outra por técnicos alheios aos quadros da municipalidade. O terreno também foi inspecionado por uma empresa especializada em solos e fundações.


Foto cedida pelo Museu da Imagem e do Som de Campinas


Os especialistas concluíram que o defeito no telhado era apenas parte de um problema maior: o progressivo afundamento do prédio devido a ausência de estaqueamento no momento da construção. Fiquei preocupado com as coisas que comecei a perceber: reuniões a portas fechadas, coisas ditas às escondidas... Vivíamos tempos em que a engenharia era bastante desenvolvida. “Com as novas técnicas de engenharia, dificilmente, hoje em dia, um prédio em situação irregular de estrutura ou coisa semelhante é irrecuperável”, afirmou na época, o engenheiro Luiz Emilio Soares de Gouveia Horta, chefe da seção de Estrutura e responsável interino pela chefia da Divisão de Engenharia Civil do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo.

Quando um engenheiro sugeriu que a água que brotava do solo, poderia ser facilmente canalizada para uma saída bem próxima dali, comecei a ficar preocupado em relação ao futuro. Por ter apresentado uma solução ao problema, foi afastado da equipe, fiquei a pensar, se por trás daquelas reuniões a portas fechadas na prefeitura, não havia interesses escusos sendo discutidos...




Infelizmente, o prefeito Rui Novaes, apoiou-se em laudos técnicos para justificar a demolição. Implorei por socorro. Gritei alto que já servira e ainda serviria ainda mais a cultura, se adotassem para mim um plano de recuperação.  Não adiantou nada. A questão estava decidida e eu estava condenado a ser demolido. Ao saber da triste notícia, o vereador Romeu Santini, presidente da Câmara Municipal na ocasião, convocou uma reunião de emergência com os demais vereadores da casa, pessoas interessadas na causa e com o engenheiro Ciro Bierrembach de Castro, subdiretor de Obras e Viação da Prefeitura. Após longas conversas e discussões, chegou-se à conclusão de que aquela casa legislativa não tinha forças suficientes para derrubar um decreto do prefeito municipal.

Rui Novaes era um político muito popular e querido pela população. Já havia governado Campinas uma vez, fez um bom trabalho, conseguiu se eleger deputado federal somente com os votos de Campinas. Candidatou-se à prefeitura novamente, sendo eleito com facilidade. Depois dos fatídicos episódios referentes á demolição, o julgamento da população consternada foi implacável: nunca mais conseguiu se eleger para nenhum cargo público. Perdeu o respeito, o prestígio e a popularidade que os campineiros tinham para com ele.


Imagem: http://pro-memoria-de-campinas-sp.blogspot.com.br/2007/07/descaso-com-histria-teatro-municipal.html



Em uma madrugada fria e chuvosa de setembro, 40 homens deram início a demolição. Dessa vez, as lágrimas que escorriam pelo meu rosto não eram de alegria, mas sim, de tristeza e melancolia. Não conseguia vislumbrar, no futuro, um substituto à altura. Meu angustiado espírito voltava os olhos ao passado glorioso... Sob as luzes da minha ribalta passaram os melhores artistas, as melhores companhias nacionais e internacionais e sempre acolhi a todos com carinho.

Lembrei-me de um espetáculo maravilhoso, que fez minha alma transbordar de emoção. Foi em maio de 1959. O Coral Pio XI, sob a regência do maestro Oswaldo Antonio Urban, fazia uma homenagem ao maestro Leon Kaniefsky. Escolheram para a apresentação, a música “Coro da Alvorada”. A peça é uma introdução a opera Lo Schiavo, da autoria de Carlos Gomes, e representa a consciência que os índios foram adquirindo a respeito da liberdade. A música conduz ao sentido de libertação, uma não submissão ao estrangeiro. Iberê, o líder dos indígenas os convoca a agirem contra qualquer tipo de dominação. Alvorada significa o nascer da esperança de liberdade para os índios. Pois bem... O Coral se posicionou no quinto andar, nas galerias. Quem estava na plateia não via as galerias. Lá de cima, o Coral esperou a orquestra iniciar a música em homenagem a Knaniefsky. As luzes do teatro estavam apagadas e, aos poucos, foram se acendendo, uma a uma. O belíssimo lustre de cristal, de 5 metros de altura, que pendia do teto também foi irradiando seu esplendor lentamente. Clarinetes imitava o som dos pássaros. A deslumbrante lembrava o ambiente do raiar do dia. Nesse mágico ambiente, começou a cantar Coro da Alvorada. Uma cena inesquecível. Avançei meu olhar ao futuro e vi o vereador Romeu Santini, 48 anos após falando ao blog Cottidianos: “O teatro representa a cultura de uma cidade. Ali havia uma obra arquitetônica que representou uma época da cidade de Campinas. Desde aquela ocasião, Campinas nunca mais teve um teatro à altura do Teatro Municipal. Era um o Teatro, como hoje é o de São Paulo... Com Camarotes... Um teatro bonito, construído nos moldes dos grandes teatros nacionais e internacionais.

Ainda antes de ver cair minha última parede, meu espírito ainda teve tempo de ir a Recife. Lá também havia um irmão meu, um teatro muito bonito, chamado de Teatro Santa Izabel. Essa casa de espetáculos pernambucana encontrava graves problemas em sua estrutura, problemas bem maiores que os apresentado na minha. Havia nele, paredes fora de prumo, rachaduras e fissuras nas paredes, dentre outros. Constatada a situação e em recebendo os laudos desfavoráveis, o que fez o prefeito de lá? Armou em exercito de demolidores armados com picaretas? Estacionou caminhões para retirar os entulhos? Não. De modo algum! Chamou os técnicos do Instituto Tecnológico de Pernambuco e lhes disse: “Salvem o teatro. Salvem um de nossos mais valiosos patrimônios históricos e culturais. E assim foi feito. O Teatro Santa Izabel foi restruturado. Por que não procedeu de igual forma o prefeito Rui Novaes, em Campinas? Porque condenar a morte aquele que tantas glorias havia dado a Terra da Arte? Por que assassinar um símbolo da cultura e da arte?  

0 Comments

Postar um comentário

Copyright © 2009 Cottidianos All rights reserved. Theme by Laptop Geek. | Bloggerized by FalconHive. Distribuído por Templates