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Socorro, Batman. Há um Coringa em Brasília!
Posted by Cottidianos
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00:09
Sexta-feira,
30 de outubro
Era
divertido — e ainda o é — sentar-se em frente à TV, e assistir a um filme do
Batman. Ficamos fascinados com a incessante luta entre o bem e o mal. Entretanto
mesmo quando o super-herói encontra-se enredado nas maiores enrascadas, ficamos
aliviados, pois sabemos que, no final, o bem sempre triunfa e o herói sempre se
sagra vencedor dos mais terríveis duelos. Talvez até fiquemos amedrontados com
a maldade de vilões como o Coringa, Pinguim, Charada, Mulher Gato, Espantalho,
dentre outros. Mas o nosso medo vai embora quando o filme ou desenho chega ao
fim, e desligamos a TV, ou continuamos a ver outro programa de TV ou filme.
Na
vida real as coisas são bem mais complicadas. Em primeiro lugar porque a crua
realidade, manipulada pelo poder e pelo poder do dinheiro, não nos garante que
o bem sempre será o vencedor. Ao contrário da ficção, no mundo real, há grandes
possibilidades de o bem sair derrotado. Também nada garante que os super-heróis
saiam vitoriosos das batalhas. E por acaso há super-heróis no mundo real? E,
pergunta ainda mais intrigante e inquietante: Por acaso haverá super-heróis no atual
mundo político brasileiro?
Se,
ao ver os filmes do Batman, deleitávamo-nos com o entretenimento, hoje ao abrir
os jornais, ou sentarmo-nos ao sofá e ver os telejornais, temos a impressão de
que estamos todos assistindo a uma grande farsa. Há o político que é pego com
os bolsos cheios de milhões de reais, mas ele mesmo não sabe como tanto
dinheiro foi parar em suas contas. A outro, as autoridades do Brasil e do
exterior, atribuem a ele, com provas documentais, contas no exterior, e ele,
jura que essas contas não lhe pertencem. Há também os da bancada evangélica que
oram e choram e cantam e louvam, mas, por solidariedade, fazem questão de
sentar-se a mesa e compartilhar o pão com aqueles que roubam, mentem e enganam.
Há também os que cometem crimes fiscais e tentam nos convencer a nós todos, de
que não há crime nenhum em cometer crimes, e de que o crime é algo natural, faz
parte de nosso agir cotidiano. E essa lógica ilógica é tão poderosa que é capaz
de virar ao avesso aos perversos.
Dentre
os grandes fingidores e protagonistas dessa farsa encenada diariamente diante
de nossos olhos e sob os céus de nossa pátria, destaca-se uma figura emblemática:
Eduardo Cunha, presidente da Câmara. O homem em questão abriga-se sob o manto
da piedade para, sem piedade, manipular, mentir e enganar. Ele é aquele que,
mesmo acusado de crimes de corrupção, desfila altaneiro pelos corredores de
Brasília, tendo atrás de si uma legião de políticos que comungam dos mesmos ideais,
e que, tanto com ele, estão enredados, em tramas perversas e nada condizentes
com o ideal que os levou ao mundo da política.
Depois
de Eduardo Cunha colocar as mais diversas barreiras, finalmente, chegou hoje ao
Conselho de Ética da Câmara, o pedido de cassação do mandato dele. Cunha tem
feito de tudo, e continuará fazendo, para adiar o máximo possível esse momento.
Certamente, virão pressões nos bastidores contra aqueles que conduzirão o
processo. Virão conchavos. Acordos. Supondo que o Conselho de Ética chegue a
conclusão de que há fatos contundentes que justifiquem o processo, ainda assim
haverá um longo caminho e a questão só venha a ser resolvida mesmo em meados do
ano que vem. Até lá muita coisa terá acontecido, e Cunha terá ganhado tempo. E
assim, a farsa continua, prolonga-se no infinito. Até quando? Quem sabe a
resposta não esteja em Gotham City, porque, de Brasília, não vejo surgir
nenhuma.
Abaixo,
compartilho com vocês um artigo muito interessante, publicado no jornal El País
Brasil. O artigo, intitulado, Eduardo Cunha,o nosso vilão do Batman, é de autoria da escritora, repórter e
documentarista, Eliane Brum.
***
Eduardo
Cunha, o nosso vilão do Batman
Como a perversão se expressa na política
e submete os brasileiros à farsa levada ao status de realidade
A
sensação é cada vez mais estranha ao se abrir os jornais, ligar a TV no
noticiário ou acessar os sites de notícias da internet. Dia após dia, Eduardo
Cunha (PMDB-RJ) diz isso, afirma aquilo, declara aquele outro, alerta e ameaça.
E nega as contas na Suíça. Tem lá sua assinatura, seu passaporte diplomático,
seu endereço. Mas ele nega. O fato de negar o que a pilha de provas já
demonstrou inegável é um direito de qualquer um. A maioria vai para a cadeia
negando ter cometido o crime que a colocou lá. O problema são os outros verbos.
Como é que tal personagem se tornou – e continua sendo – tão central na vida do
país, a ponto de seguir manipulando e chantageando com as grandes questões do
momento, com as votações importantes? Como Eduardo Cunha ainda diz, afirma,
declara, alerta e ameaça nas manchetes dos jornais? Como o que é farsa pode ser
apresentado como fato? O cotidiano do Brasil e dos brasileiros tornou-se uma
experiência perversa. A de viver dia após dia uma abominação como se fosse
normalidade. Essa vivência vai provocando uma sensação crescente de
deslocamento e vertigem. Não se sabe o quanto isso custará para o país,
objetivamente, e o quanto custará na expressão política da subjetividade. Mas
custará. Porque já custa demasiado.
Até
o mais obtuso sabe que Eduardo Cunha continua no palco porque ainda tem
utilidade para os projetos de poder de um lado e de outro. Entre esses dois
lados que se digladiam não há oposição. Esta é outra farsa e também é por isso
que se pode levar a sério um farsante como Cunha. A pauta conservadora para o
país já foi estabelecida, o que se disputa é o poder de executá-la. Mas, se
Cunha é apenas a expressão de uma operação política muito mais ampla, profunda
e que nem começou com ele nem acabará com ele, na qual o papel do PMDB é
central, ele não pode ter a importância de sua individualidade negada. Se o
Brasil já teve muitos Cunhas, em vários aspectos, também não teve nenhum Cunha,
em outros. Como todo vilão, o personagem é fascinante e totalmente singular.
Eduardo
Cunha parece ser um perverso. Aquele que denega: vê mas finge que não viu, é
mas finge que não é. Ele não seguiria ditando os dias de Brasília não fosse o
homem perfeito para o papel. Para que a maioria possa fingir que disputa os rumos
do país, quando disputa apenas o seu próprio, é preciso o fingidor maior, o
mestre de cerimônias deste espetáculo. A sensação esquisita ao abrir o jornal
ou a internet ou ligar a TV no noticiário se dá porque essa farsa pede uma
adesão. A nossa adesão. É aí que (também) está a perversão.
É
evidente que Cunha não espera que alguém acredite, entre outras coisas, que ele
não tem contas na Suíça, como segue afirmando sem piscar. Ele sabe que (quase)
ninguém acredita nisso. Mas isso não impede que Cunha espere que possamos agir
como crentes. Essa também é parte do estranhamento ao entrar em contato com o
noticiário: somos convocados a uma adesão pela crença, o que, de novo, perverte
a experiência da política.
É como
se, em algum nível íntimo, ele se divertisse muito com a possibilidade de
transformar a realidade numa negação coletiva. Para o perverso, o outro não
conta como outro. O outro – nós – é apenas o suporte para a sua satisfação.
Denunciado por corrupção e lavagem de dinheiro, ele fala em nome de Jesus,
registra uma frota de carros de luxo numa empresa com o nome Jesus.com,
discursa para os eleitores evangélicos que Deus o colocou na presidência da
Câmara. Cunha é o perverso que goza em nome de Jesus.
Neste
sentido, Cunha se assemelha a um vilão do Batman: todos muito singulares, mas
com o traço da perversão em comum. Só que Batman e seus vilões extraordinários
são ficção. Ao produzir o deslocamento na esfera pública, Eduardo Cunha faz da
farsa a realidade. Este é talvez o seu maior poder – o poder que lhe permite
ainda ter poder. Abaixo da farsa maior, desenrolam-se todas as outras, como a
do PSDB fingindo pedir seu afastamento, quando o apoia nos bastidores, na
expectativa de que ele leve adiante o impeachment de Dilma Rousseff, ou a do
Planalto também negociando com ele, mas pelo motivo contrário, para que ele não
leve adiante o impedimento da presidente. Ou todos aqueles parlamentares que
temem o dia em que Cunha abrir a boca para contar algumas histórias pouco
edificantes que os envolvem. Para estes, é preciso manter figuras como Cunha
com algo a perder. Do contrário, o país ganha, mas muitos dos atores do
Congresso perdem.
Se
tudo fosse encenado como uma sátira política, no teatro e não no Congresso, seria
um ótimo espetáculo. A perversão é que a farsa se apresenta como realidade, e
torna-se realidade. Eduardo Cunha nos corrompe a todos porque, da forma como a
encenação evolui, somos parte dela. A encenação engolfa a plateia e já não
sabemos onde fica a saída do teatro, porque já não há teatro. Já é a vida.
Talvez por isso, para muitos, tem sido dias de vertigem.
Simplificando.
É como se, todo dia, aquele que está colocado no lugar de autoridade afirmasse:
o céu é vermelho com bolinhas verdes. E a imprensa reproduzisse: fulano afirma
que o céu é vermelho com bolinhas verdes. Aí há outras autoridades dizendo que
não, está provado que o céu é azul e não tem bolinhas. Mas, no dia seguinte,
está lá a repetição: o céu é vermelho com bolinhas verdes. E as pessoas estão
lá, debaixo do céu azul, mas assistindo ou lendo as notícias não como uma
comédia ou uma sátira ou uma farsa, mas como se sério fosse. E sério é. Porque
a autoridade continua sendo autoridade, apesar de afirmar que o céu é vermelho
com bolinhas verdes. E as demais autoridades do campo da política, mesmo as que
se apresentam em polos opostos, negociam com o cara do céu vermelho com as
bolinhas verdes, como se esta fosse a normalidade institucional. É impossível
não ir se sentindo esquisito e duvidando da própria sanidade num mundo como
este.
Aí
a coisa vai piorando. A cada semana vai piorando. Na passada, por exemplo.
Políticos fizeram uma homenagem a Eduardo Cunha inaugurando seu retrato oficial
na galeria de ex-líderes da bancada do PMDB na Câmara. O episódio é uma versão
invertida de O retrato de Dorian Gray. Na obra clássica de Oscar Wilde, o
retrato é escondido dos olhos do público porque vai absorvendo as marcas do
tempo e dos crimes cometidos pelo personagem na vida real. Na crônica política
do país, porém, o sentido é outro. O retrato exposto cristaliza a perversão: a
de um homem ser homenageado, com palmas e discursos laudatórios, no momento em
que está denunciado por corrupção e que as provas de contas na Suíça,
possivelmente abastecidas por dinheiro público, se acumulam. A perversão é a da
lei que não valeria para o retratado, ganhando o seu monumento na parede. Se o
retrato de Dorian Gray precisa ser oculto porque denuncia o retratado, o de
Eduardo Cunha ganha o espaço público porque o retratado, para os seus pares,
está além da denúncia. É verdade que houve protestos, mas a homenagem foi
realizada. E o homenageado segue como o terceiro na linha sucessória da
presidência do país. O retrato do corrupto, ao ser exposto como virtude,
corrompe a todos.
Mas
o retrato de Eduardo Cunha não é o episódio mais revelador da semana. É na
aprovação do projeto de lei proposto por ele pela Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania da Câmara que a anatomia da perversão se revela em sua
completa amplitude. Cunha quer regular o corpo das mulheres e tenta – e está
conseguindo – dificultar as possibilidades de aborto previstas por lei. Em
especial, uma delas: a interrupção da gravidez resultante de estupro. Ao fazer
um projeto punindo os agentes de saúde que garantirem os meios para uma mulher
abortar, o que ele tenta fazer é burlar a Constituição. Quando o projeto
determina que as mulheres precisam comprovar o estupro com exame de corpo de
delito é a palavra da mulher que ele esvazia. Porque é exatamente isso que um
perverso faz: ele esvazia o outro, neste caso as mulheres, porque o outro só
existe para servir aos seus interesses. O outro não é uma pessoa, não é um
sujeito de direitos, não é alguém com uma história. É apenas um meio, um corpo,
um objeto submetido ao gozo do perverso.
Vale
a pena prestar atenção a este trecho do projeto de autoria de Cunha, com apoio
da bancada da Bíblia: “Trata-se, ainda, de garantir a máxima efetividade às
normas constitucionais, que preceituam a inviolabilidade do direito à vida.
Urge, portanto, uma reforma legislativa que previna a irrupção de um sério
problema de saúde pública”. Ora, o “sério problema de saúde pública” existe
há muito. O aborto é a quinta causa de morte materna no país. Quem mais morre
são as mulheres pobres, a maioria delas jovens e negras, que não podem pagar
por uma clínica segura, como as mais ricas, nem podem contar com o Sistema
Único de Saúde (SUS). Ao tentar dificultar os poucos casos cuja interrupção da
gravidez é permitida, em especial o aborto em caso de estupro, e criminalizar
os profissionais de saúde que dão assistência às mulheres nesta situação, o que
Cunha tenta fazer é exatamente o contrário do que diz: o que ele tenta fazer é
atropelar a Constituição, dificultando a aplicação da lei, e não aumentando a
sua efetividade. A lei, para o perverso, não vale para ele. Ao contrário: a lei
é dele e vale sobre o outro.
Para
um perverso, a relação com a lei é a do desmentido. Cunha sabe que existe a
lei, mas a denega. Tudo o que rege e regula as relações humanas e entre
cidadãos não o regula, já que o outro não conta como pessoa. O perverso invoca
a lei, mas apenas como um fingidor. O perverso que legisla, como Cunha, faz da
lei uma farsa. E goza dessa impostura. O perverso jamais goza com o outro, ele
goza do outro. Mas por que Cunha transforma justamente o corpo e a vida das
mulheres em objetos de sua perversão? Porque esta é a sua obra-prima, sua
masterpiece: o moralista sem moral é o farsante que atingiu a perfeição.
Em
nome da moralidade religiosa, ele promove a morte das mulheres anunciando que
defende a vida. Em nome de Jesus, o perverso pode ter contas na Suíça
abastecidas com o dinheiro público que falta nos hospitais e pregar a
imoralidade de uma mulher interromper uma gravidez resultante de um estupro.
Para o perverso só há um sagrado: o seu gozo. Por isso, Eduardo Cunha pode
discursar para eleitores evangélicos sobre sua ascensão à presidência da
Câmara: “Deus me colocou lá! Eu sempre digo, Silas (Malafaia), se Deus me
colocou lá, ele saberá sempre honrar o trabalho que ele fez!”. Assim, no
discurso do perverso, não é Cunha quem honra Deus, mas Deus é quem honra Cunha.
Nem o próprio Jesus ousou dizer algo assim para o povo em seus sermões
bíblicos.
O
mais desafiador será acompanhar até onde isso pode ir. Não há como sustentar
tal surrealismo por tanto tempo mais, mas saber até onde conseguem levar será
crucial para compreender o país. Porque já foi muito mais longe do que as
previsões mais pessimistas. Para o destino do perverso ainda se pode contar com
a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal.
Em algum momento, cumprido o rito do Estado de direito, é possível que se
conclua que o lugar de Eduardo Cunha não é na presidência da Câmara, mas na
cadeia. Para o fim do Estado de perversão não há desfecho no horizonte.
Os
perversos em posições de poder não são exclusividade do Brasil. Na semana que
passou, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, chegou ao extremo de
diminuir a responsabilidade de Adolf Hitler no extermínio de seis milhões de
judeus, para tentar colocar o mundo contra os palestinos. Segundo o israelense,
o Holocausto teria sido ideia de um religioso palestino – e não do líder
nazista. A afirmação foi rechaçada, com todas as letras, por vários políticos
influentes de Israel, entre eles o presidente, Reuven Rivlin, e o líder da
oposição, Isaac Herzog: não se manipularia com a História. O primeiro-ministro
israelense ouviu então da chanceler alemã, Angela Merkel: “A responsabilidade
pelo Holocausto é da Alemanha”. E, antes, do seu porta-voz: “Nós, alemães,
conhecemos muito bem a origem do racismo criminoso do nacional-socialismo que
conduziu ao Holocausto. Ensina-se nas escolas e não podemos permitir que se
esqueça a responsabilidade única da Alemanha nesse crime contra a humanidade”.
Os
perversos estão por toda parte – e sempre estarão. A vertigem que sentimos
diante do noticiário é que no Brasil parece não existir nenhum político de
grande estatura disposto a denunciar a farsa sem tergiversar. E, assim, cumprir
o dever público de assumir sua responsabilidade histórica com o país.