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A Verdade Vos Fará Livre

Posted by Cottidianos on 20:08
Segunda-feira, 24 de fevereiro

Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade,
Que me invade eu peço paz.
Bandeira branca, amor
Não posso mais.
Pela saudade,
Que me invade eu peço paz

(Bandeira Branca - Max Nunes e Laércio Alves)


Enfim, é carnaval na Marques de Sapucaí, na agitada cidade do Rio de Janeiro. O trânsito que se vê naquela avenida é o trânsito de pessoas. Congestionamento? Só de carros alegóricos. A pressa? É apenas para atravessar a avenida no tempo regulamentar. A tensão e a correria são para encontrar o melhor lugar nas arquibancadas, ou para dar o último retoque na fantasia.

Nestes dias desaparecem o estresse cotidiano e a famosa avenida do samba dá lugar ao colorido e ao luxo das fantasias, a devoção das alas de cada escola de samba, o batuque ritmado da bateria, e a som contagiante do samba. 
A avenida do samba durante esses dias de carnaval também é espaço para críticas sociais, referentes à cultura, à diversidade, à luta contra a intolerância, e diversos outros temas que são discutidos através dos sambas enredos das escolas que desfilam naquele espaço.
No domingo 23, desfilaram as primeiras escolas do grupo especial do Rio de Janeiro. Pela Marques de Sapucaí, na agradável noite dominical, passaram as escolas: Estácio de Sá, Viradouro, Mangueira, Paraíso do Tuiuti, Grande Rio, União da Ilha, e Portela.
Esse blog destaca aqui o samba enredo da Mangueira. A verde e rosa trouxe Jesus Cristo para a avenida, e por isso a escola foi muito criticada. O discurso de Cristo fala de esperança, de salvação, de respeito pelo outro — muito mais que respeito, amor pelo semelhante. O tecido que costura o evangelho pregado por ele há mais de dois mil anos atrás é a crítica social. Tire-se a crítica social do evangelho e teremos um outro evangelho.
O samba da verde rosa, A Verdade Vos Fará Livre, representou isso: uma crítica social que representa bem o momento atual pelo qual passa o Brasil, com todo o seu lúgubre cortejo de violência, de preconceito, e discriminação. Quem criticou o samba, ou não o ouviu — e se ouviu não entendeu nem a letra nem a mensagem que ela contém nas entrelinhas — ou então se colocou em um dos pontos desta polarização política na qual o país está imerso. Polarização essa que em nada ajuda o país a crescer, muito pelo contrário, apenas traz mais retrocessos que avanços.

A letra do samba é de autoria de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.
Vamos ao samba.
A Verdade Vos Fará Livre

Senhor, tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
Senhor, tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade

Já de início, o samba começa com uma súplica, uma oração para que o Deus Todo Poderoso olhe para a maldade que impera em nosso mundo e tenha piedade de nós. Quem de nós já não se pegou, vez ou outra, dirigindo súplica igual ao Pai Eterno?

Mangueira
Samba, teu samba é uma reza
Pela força que ele tem
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também

Alguns sambas têm uma letra e um sentimento tão forte cuja força é de oração. E não poderia ser diferente, uma vez que os batuques dos atabaques, que mais tarde evoluíram para as batidas do samba, tiveram origem, na escuridão das senzalas, onde havia choro e muito sofrimento, e, com certezas, muitas preces por liberdade.
Então faz todo sentido dizer que o samba tem força de oração. Também aqui os autores já começam a dar voz ao próprio Jesus, e ele faz uma previsão que serve para o samba que está sendo cantando e interpretado pela escola. Diz a letra: vão te inventar mil pecados, e como pai que acalma um filho, ou uma filha, ou mesmo como um amigo a quem muito nos estima, e que quer nos transmitir força e confiança, complementa: mas eu estou do teu lado, e do lado do samba também.
A partir daí, os autores do samba colocam a narrativa em primeira pessoa, e o próprio Jesus dos dias atuais começa a dizer de si mesmo.

Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente

A Judeia dos tempos de tempos de Jesus, era uma província romana. Jesus, como filho de Deus poderia ter nascido em qualquer das grandes cidades da época, inclusive em Roma. Mas não, os acontecimentos e as previsões sagradas levaram Maria a dar à luz a ele na pequena cidade de Nazaré, na região da Galileia, ou seja o Rei dos Reis, nasceu na periferia das periferias. E quem mora nas periferias? Os pobres e oprimidos. Não se tem notícias de que, em alguma época da história da humanidade, os dominadores, ricos, e poderosos tenham morado na periferia. 
É muito provável que, devido ao clima quente e seco da região onde nasceu, a tonalidade de pele Jesus não seja essa dos quadros clássicos que o apresentam como loiro e de olhos azuis. Por causa disso, muitos estudiosos defendem a tese de que Jesus era negro.
Vemos também pelas leituras do evangelho que o homem de Nazaré sempre se colocou ao lado daqueles que sofriam injustiça e opressão. Se as mulheres de hoje em dia são discriminadas, imaginem então na sociedade machista na qual viveu o Cristo. E ele se colocou também em defesa da mulher.

No capítulo 8 do evangelho de João, os escribas e fariseus trouxeram até o Mestre uma mulher que fora apanhada em adultério. A lei da época mandava que, em casos assim, a mulher fosse apedrejada. Esse grupo, para testar, Jesus, colocou a mulher diante dele e perguntou o que devia ser feito.
Fariseus e saduceus sempre procuravam colocar o nazareno em alguma armadilha, e ele sempre se saia delas com muita sabedoria, como também se saiu dessa vez. Jesus disse, simplesmente: “aquele que não tiver pecados que atire a primeira pedra”. Os fariseus e saduceus foram embora contrariados, e a mulher deve ter ficado muito agradecida àquele que a salvara de um apedrejamento.
Se fosse hoje, certamente, o Mestre também defenderia as mulheres, os negros, os gays, e quem mais tivesse carregando a cruz do preconceito.
No verso em questão, os autores do samba, fazem uma correlação entre a cidade de Nazaré e o bairro carioca de Mangueira, e da própria escola de samba, Estação Primeira de Mangueira: Eu sou da Estação Primeira de Nazaré. A descrição a seguir também coloca Jesus entre grupos muito discriminados hoje em dia: os negros, os índios, e as mulheres.
Moleque pelintra no buraco quente. Moleque é sinônimo de menino, e pelintra, é sinônimo de pobre, maltrapilho. Então, se Jesus nascesse hoje, seria esse menino pobre, vivendo no Buraco Quente, que é uma parte do morro da Mangueira. Ou seja, de elite Jesus não teria nada. Ele seria um Jesus defensor da gente pobre, humilde, trabalhadora.

Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro, desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão

Peito aberto, punho cerrado, são expressões bastante usadas pelos movimentos de esquerda em suas lutas. Mas peito aberto e punho cerrado também são palavras usadas por aqueles que enfrentam dificuldades. E quantas pessoas hoje no Brasil não enfrentam dificuldades... Para começar são milhões de pessoas sofrendo com a falta de emprego. Carpinteiros, marceneiros, engenheiros, professores, e tantos outros profissionais sonham, todos os dias, em serem recolocados no mercados de trabalho, e assim, poderem continuar vivendo suas vidas com a dignidade que merecem. São Joãos, Josés, Marias, Fabricios, Marcos e tantos outros que olham pro céu e pedem: Senhor, olha por nós.
Como Maria sofreu ao pés da Cruz vendo o filho ser crucificado, ela, essa Maria das Dores Brasil também sofre vendo a falta de oportunidade para os filhos, e vendo eles sofrerem discriminação por serem negros, pobres, e por morarem na favela.
E Jesus é esse ser de luz que enxuga o suor de quem sobe e desce ladeira todos os dias. Se quer encontrar ele o procure no amor que não tem fronteiras. Há muitos por aí que dizem: meus irmãos são apenas os da minha igreja, da minha religião. Isso é o amor cristão? Um amor que se deixa limitar pelas fronteiras de um templo, ou de uma religião é amor verdadeiro?
Ao contrário, devemos procurar Jesus nas fileiras contra a opressão. Você jamais vai encontrar Jesus ao lado de quem oprime, mas sim, do lado daqueles que são oprimidos e daqueles que lutam contra a opressão.
Procura ele também ele no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão. Vocês já repararam com que que alegria, com que respeito, com que admiração e amor a porta-bandeira olha para a bandeira que traz junto consigo?

Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão

Onde mais Jesus deve ser procurado? Na arte. Cordéis o que são? São livros de versos escritos de forma bem simples e popular, porém, com muito conteúdo e riqueza de rimas. E o corcovado? Um dos morros cariocas que ostenta a imagem do Cristo Redentor, escultura e beleza em forma de arte, e que é um dos símbolos representativos não apenas do Rio, mas do Brasil.
A arte é alma de um povo, de um país. E como, ultimamente, a arte tem sido perseguida em nosso país… Como os artistas têm sido perseguidos em nosso país… Querem colocar a arte numa gaiola, mas arte é arte por si mesma, rebelde, pássaro livre. Ela diz a verdade, de forma diferente, inusitada. Arte foi feita para dizer, e não para calar. Por isso, também o Cristo pode ser encontrado na arte. Ele não era de ficar calado. Era de falar. Por isso foi morto numa cruz. Se fosse um homem que se sujeitasse aos desmandos de Roma e dos chefes dos sacerdotes, ou que concordasse com a opressão que seu povo sofria, teria sido elevado pela força do ouro, e não pela força da cruz.
O problema é que de uns tempos para cá surgiram uns profetas. Profetas da intolerância que não deixam as sementes da arte florescerem. Esses profetas não apenas sufocam a arte, mas também sufocam as liberdades e os direitos individuais. Se determinado grupo não pensa como eles pensam, então devem ser apedrejados, humilhados.

Mal sabem eles que a esperança brilha mais na escuridão.
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão

Favela, “pega a visão”. Pega a visão é uma gíria que quer dizer entende, observa, “se toca, mané”.  Não tem futuro sem partilha. É preciso pegar a visão de que uma das raízes do problema da violência no Brasil é a grande desigualdade que existe no país. Desigualdade essa que ocorre sob as bênçãos do Estado. Enquanto, não for resolvida essa questão o Brasil não avançará o que tem de avançar.
Em um âmbito pessoal a partilha também é importante. Partilhar o pão, partilhar o conhecimento, experiência de vida. Quando a gente partilha aquilo que tem, mesmo que seja pouco o que temos, o gesto de partilhar torna-se uma luz a iluminar a vida de alguém e a nossa também.
Talvez a frase que tenha mais incomodado neste samba, tenha sido este verso que complementando a primeira ideia diz: favela pega a visão, não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão. Em uma clara referência ao presidente, Jair Messias Bolsonaro, que não perde a oportunidade de citar  a frase bíblica: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, mas está sempre fazendo um gesto de arma com as mãos.
Alguém já imaginou Jesus, se vivesse hoje, fazendo gesto de armas com as mãos? Ou defendendo milicianos e torturadores?

Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E ressurgi pro cordão da liberdade

A força do samba como oração é tão forte que até do céu se ouve. E o Rio de Janeiro tem muito a erguer os olhos aos céus e desabafar, além dos problemas, que são problemas nacionais, os cariocas ainda enfrentam problemas de corrupção no governo, milhões foram desviados dos cofres públicos, problemas com o sistema de saúde, educação, além da violência crescente.
Não existe história de Jesus sem ressurreição. A Intolerância, maldade, e toda espécie de mal não podem nos fazer morrer, pois a vida, e a esperança que habita em nossos corações é mais forte do que aquilo que nos faz mal.
Cristo está aí para nos ensinar que até da cruz a gente pode fazer esplendor e ressurgir para o cordão da liberdade.  
Em entrevista ao site Brasil de Fato, a compositora, Manu da Cuica, uma das autoras do polêmico samba, diz: “O Brasil é um país em que muita gente se diz cristã e ao mesmo tempo é um país líder de desigualdade social, líder de assassinatos contra minorias, um país que comete muitas barbáries cada vez mais oficializadas. Talvez essa seja uma contribuição da Mangueira para essa reflexão. Tem alguma coisa aí que não bate com o que seriam os ensinamentos de Cristo. O Cristo vivo não estaria ao lado de quem aplaude ou finge não ver esses ataques”.
E assim, a Mangueira passou pela Marques da Sapucaí, linda, leve, e solta. Foi a terceira escola a desfilar. Disse da história de Jesus com sua paixão morte e ressurreição, mas o fez, transportando os fatos e personagens para os dias atuais, como vocês puderam perceber pela letra do samba analisado acima. Trouxe Jesus mulher, na figura da rainha de bateria, trouxe também Jesus Negro, e Jesus índio, morador de rua, e também o Jesus clássico que veio na Comissão de Frente. 


. Enfim, além de ter contemporaneizado a história de Cristo, a Mangueira mostrou Jesus como ele é: puro amor, como aquele que abraça a todos, sem distinção de cor, credo, raça, ou cor da pele.
Para hoje, tem mais desfile. Hoje, 24, passam pela Marques da Sapucaí as escolas: São Clemente, Vila Isabel, Salgueiro, Unidos da Tijuca, Mocidade, e Beija-Flor.


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Marielle Franco, Anderson Gomes, Adriano da Nobrega, e os véus do mistério

Posted by Cottidianos on 22:21

Domingo, 16 de fevereiro


Brasil!
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim

(Brasil – Cazuza)


Marielle Franco / Anderson Gomes




2018

Era noite de 14 de março na cidade do Rio de Janeiro. A vereadora do PSOL, Marielle Franco, Fernanda Chaves, assessora da vereadora, e o motorista, Anderson Gomes, entraram no carro para retornarem as suas casas. Marielle havia participado de um debate com jovens negras, na Casa das Pretas, no Bairro da Lapa.

A alguns metros, um outro veículo, um Cobalt, aguardava, silencioso a saída do grupo do local. Imediatamente após Marielle e, Anderson, e a assessora, deixarem o local o misterioso veículo passou a segui-los sem que o grupo ao menos notasse que estava sendo seguido.

Já havia se passado cerca de meia hora desde que o grupo havia deixado a Casa das Pretas, no bairro da Lapa. Nesse momento, o Colbalt que os seguia, emparelha com o carro da vereadora, baixa os vidros, e aponta uma metralhadora. 13 disparos foram efetuados. Marielle foi atingida por quatro tiros na cabeça, e Anderson Gomes, com três tiros nas costas. Nenhum dos tiros acertou a assessora da vereadora que também estava no carro.

Além de estimular o empoderamento das mulheres negras, e a causa daqueles a quem o sistema vomita para longe de suas engrenagens, Marielle também os defendia da ação das milícias, tão perigosas quanto as ameaças dos traficantes. E por isso era persona non grata entre eles. Talvez nem ela própria soubesse que incomodava tanto ao milicianos.

Posteriormente, as investigações mostraram que a arma usada para matar a vereadora era uma submetralhadora de uso restrito no Brasil. Em 2011, durante um recadastramento, notou-se que cinco dessas armas haviam simplesmente sumido do arsenal da Polícia Civil. Os investigadores também chegaram à conclusão de que as balas que atingiram a vereadora e o motorista eram de um lote que foi vendido à Polícia Federal, em 2006.

Em 12 de março de 2019, dois dias antes de o assassinato de Marielle e Anderson completar um ano, a Operação Lume, ação conjunta entre a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro, prendeu dois homens acusados de participação no assassinato da vereadora: Ronnie Lessa, e Elcio Vieira de Queiroz.

Segundo as investigações, Ronnie teria sido o autor dos disparos, e Elcio era quem dirigia o Cobalt usado para a prática do crime. Ronnie Lessa é o PM reformado que mora no mesmo condomínio onde moram o presidente Jair Bolsonaro e o filho dele, Carlos. Ronnie e Elcio foram denunciados por homicídio qualificado pelas mortes de Anderson e Marielle, e por tentativa de homicídio de Fernanda, assessora da vereadora.

O crime gerou enorme repercussão no Brasil e no mundo. Porém, a pergunta chave, aquela que fecharia o quebra-cabeças do caso Marielle/Anderson ainda não foi respondida. Quem ordenou a morte de Marielle Franco?


 Já são quase dois anos e, apesar de terem sidos presos os autores do crime, a polícia ainda não conseguiu montar o quebra-cabeças por completo. Os mandantes ou o mandante do crime ainda está por aí, livre, leve, e solto. Provavelmente, rindo da impunidade, e das investigações.



***


Adriano da Nobrega


2020

Era manhã de domingo, 9 de fevereiro.

O cenário.

Um sítio, situado na tranquila e pacata Palmeiras, distrito de Esplanada, no norte da Bahia. Naquela manhã de domingo a população do lugar se assustou quando viu passar pelas estradas e adentrar as veredas um batalhão de policiais do Bope, e do Batalhão de Operações Especiais da Bahia.

Chegaram ao sitio e fizeram o cerco. No pacato sitio estava escondido um homem perigoso: Adriano Magalhães da Nobrega, um ex-capitão da PM do Rio. O “capitão Adriano” estava foragido desde janeiro do ano passado. Ele era acusado de chefiar o Escritório do Crime, nome dado ao ramo da milícia suspeito de assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes. Adriano também é autor de diversos homicídios.

Quando os policias chegaram ao local, Adriano fez da casa sua trincheira e começou o tiroteio. Dois disparos da pistola Glock, calibre 9mm, teriam atingido o escudo usado por um dos policiais. A polícia teria então reagido matando Adriano. Ainda segundo a polícia, após ser baleado, o miliciano foi levado ainda com vida a um hospital da região.

Mas a história toda em volta da morte de Adriano é muito estranha. Parece muito mais uma execução do que uma morte por reação a tiroteio. Primeiro, pela quantidade da força policial destacada para prender o miliciano. Eram setenta no total para prender um único homem. E não eram as forças policiais comuns não. Quem foi destacado para prender Adriano foi o Bope e o Batalhão de Operações Especiais. Ou seja, grupos altamente treinados para agir em operações de grande periculosidade e complexidade.

Quando as forças policias baianas souberam que Adriano da Nobrega estava na Bahia, passaram a monitorá-lo. Duas semanas antes de ser morto, o ex-capitão esteve em uma mansão na Costa do Sauipe, no litoral da Bahia. A polícia foi até o local e lá encontrou apenas documentos falsos. Adriano teria fugido antes da chegada dos policiais. Aí fica a pergunta: Quem teria avisado a ele que a polícia estava no seu encalço? Por que, com tantos homens, no sítio onde estava escondido, a polícia não buscou vencê-lo pelo cansaço, como orientam os manuais da polícia para os casos de cerco policial. Afinal, do local onde ele estava, e com a quantidade de policiais envolvidos na operação, não havia a menor possibilidade de fuga.

Reportagem da Folha-Piauí revela que uma análise feita por um perito sob a condição de anonimato, contradiz a versão de confronto apresentada pela polícia. Em paragrafo recuado, abaixo, é apresentada trecho dessa reportagem:

Há uma grande poça de sangue na sala da casa, próxima à porta de acesso aos quartos, indicando onde Nóbrega foi assassinado. Também há sangue borrifado na parede branca, mas a uma altura pequena, de poucos centímetros. No chão, uma trilha de sangue, indicando que um corpo foi arrastado, e gotas de sangue em uma única direção, da esquerda para a direita, são sinais de que o ex-capitão estava deitado quando foi morto. Fotos do cadáver divulgadas pela revista Veja indicam que os disparos foram efetuados a curta distância; também revelam um ferimento na cabeça e marcas do lado esquerdo do peito, sinais que poderiam indicar um coronhada – os ferimentos não constam no relatório da perícia divulgado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Em nota, o Departamento de Polícia Técnica negou que os disparos tenham sido feitos a curta distância e que o ferimento na cabeça possa ter sido causado pela queda de Nóbrega após ter sido atingido.

Embora os dois projéteis que atingiram Nóbrega tenham transpassado o seu corpo, só um deles foi localizado e apreendido – os projéteis são importantes para definir a distância entre os policiais e a vítima e também as posições de cada um na cena. Por fim, como o ex-capitão “aparentava estar vivo”, o Bope optou por levá-lo para o hospital São Francisco, em Esplanada, onde, segundo os policiais, ele já chegou morto. Para o legista consultado pela piauí, porém, é certo que Nóbrega teve morte instantânea devido à quantidade de sangue no chão – no laudo do Instituto Médico Legal consta que ele morreu em decorrência de anemia aguda. Por isso o corpo deveria ter sido mantido intacto, para facilitar o trabalho da perícia”.

Outro fato intrigante é que o sítio onde Nobrega estava escondido pertence ao vereador do PSL baiano, Gilson Lima, o Gilsinho de Dedé. Ao saber da morte, o vereador negou que soubesse que o miliciano estava escondido em sua propriedade e negou conhece-lo.

Adriano sabia que iria ser morto. Que a polícia não estava ao seu encalço apenas para prendê-lo. Sabia que era uma peça importante no esclarecimento de muitas questões ainda envolta em nevoas, como é o caso do próprio assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, como também no caso das rachadinhas, na Assembleia Legislativa do Rio, envolvendo o senador Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor, Fabrício Queiroz.

É tanto certo que, de alguma forma, Adriano fora avisado da operação policial que se estava montando contra ele, que, horas antes de ser morto, fugiu da fazenda onde estava escondido, Parque Gilton Guimarães. A fazenda é uma área de vaquejada e pertence a Leandro Guimarães, um empresário influente na região. Seus pensamentos deviam estar em um turbilhão e seu coração acelerado quando entrou na picape branca, Hylux, e percorreu os 8 km até chegar ao sítio do vereador do PSL, Gilsinho de Dedé, irmão do deputado estadual baiano, Alex Lima (PSB). 

Mais uma vez surgem perguntas sem respostas, se o sítio estava abandonado e sem caseiro, como diz o dono da propriedade, quem organizou a pequena estrutura para que Adriano ficasse escondido ali?

Porque a polícia não isolou a área logo após o incidente? Do dia 09 ao 13 a propriedade ficou completamente a descoberto, lugar propício para que curiosos circulassem por lá, e por quem tivesse interesse em alterar a cena do crime.

Adriano da Nobrega estava entre os suspeitos de ligação com o crime que vitimou a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, mas a polícia o procurava pelo crime, pelo qual foi denunciado pelo Ministério Público Federal: grilagem de terras, que é o ato de comprar, vender, e alugar imóvel de forma irregular. O MP também o denunciou por cobranças de taxas irregulares dos moradores das favelas, por extorsão e receptação de mercadorias roubadas.

Era esse homem com ficha pra lá de suja, participante de um grupo responsável pelo mando ou execução de diversos homicídios que era amigo da família Bolsonaro, expulso da PM por envolvimento no jogo do bicho. Ele chegou a ser homenageado por mais de uma vez pelo então deputado, Flávio Bolsonaro.

O Jornal Nacional, exibido no dia 10 de fevereiro, mostrou um paralelo entre Adriano da Nobrega e a família Bolsonaro. A reportagem de Mônica Sanches começa mostrando um caso acontecido em maio de 2003,

Naquele ano, os policiais militares Adriano da Nobrega e Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro ligado ao esquema das rachadinhas, faziam parte do mesmo batalhão: o 18º Batalhão da Polícia Militar. Durante uma ronda policial eles mataram um técnico de refrigeração na Cidade de Deus. O auto foi registrado como ação de resistência. Quase 17 anos depois o inquérito ainda não foi concluído.

Ainda em outubro de 2003, o deputado Flávio Bolsonaro, diz a reportagem, fez a primeira homenagem a Adriano da Nobrega, que era tenente na ocasião. Entre as qualidades mencionadas na Moção de Louvor com a qual Flávio homenageou Adriano estão dedicação e brilhantismo no desenvolvimento das funções.

Três meses depois, em Janeiro de 2004, Adriano matou um guardador de carros, que, na véspera do assassinato, havia denunciado um grupo de milicianos. Um ano e meio depois, em junho de 2005, Flávio Bolsonaro resolveu homenagear novamente Adriano, concedendo-lhe a mais alta honraria concedida pela Assembleia Legislativa do Rio: a Medalha Tiradentes. A reportagem diz que Adriano não compareceu na Assembleia para receber a medalha, pois ainda estava preso.

Ainda em outubro daquele ano, um júri popular condenou o miliciano pelo crime. Passaram-se quatro dias da condenação e o então deputado federal, Jair Bolsonaro fez um discurso na Câmara em defesa de Adriano, e reforçou o elogio de que o ex-policial era um brilhante. O advogado de Adriano recorreu da sentença, e, em um novo julgamento, em 2007, foi absolvido.

Foi também em 2007, que Fabrício Queiroz, também expulso da polícia, começa a trabalhar no gabinete do deputado estadual Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio. Foi Queiroz quem indicou a ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça da Costa Nobrega, para trabalhar no gabinete do deputado, na função de assessora.

Em 2008, Adriano se envolve em um atentado contra o pecuarista Rogério Mesquita e é preso novamente. Rogério era inimigos de bicheiros. Em 2013, Adriano foi, finalmente, expulso da PM porque estava envolvido com o jogo do bicho.

Em 2016, mais uma parente de Adriano também foi trabalhar no gabinete de Flávio Bolsonaro. Dessa vez o deputado acolheu em seu quadro de funcionários, a mãe de Adriano.

Em dezembro de 2018, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu 22 procedimentos investigativos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), baseados em dados repassados ao órgão pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O objetivo desses procedimentos era investigar a movimentação financeira de assessores de deputados estaduais, cujas contas apresentavam uma movimentação muito mais alta do que os valores que eles recebiam.

Foram estas investigações que levaram as ligações suspeitas entre Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz no esquema de rachadinhas, que é quando o servidor é obrigado a devolver ao parlamentar parte do salário que recebe.

O Ministério Público também chegou à conclusão de que, além de Fabrício de Queiroz, o ex-parceiro dele dos tempos da PM, Adriano da Nobrega, também fazia parte do esquema criminoso que acontecia no gabinete do deputado Flávio Bolsonaro.

Ainda segundo a reportagem exibida no Jornal Nacional, dia 10 de fevereiro, a mãe e ex-mulher de Adriano receberam R$ 1.029.042, 48, em salários. Salário fácil de ganhar, diga-se de passagem, pois as duas não apareciam para trabalhar. Elas faziam parte do vergonhoso grupo dos chamados “funcionários fantasmas”.  Desse total recebido pelas duas “fantasmas”, RS 203 mil foram transferidos para as contas de Fabrício Queiroz, que eram quem operava o esquema das rachadinhas no gabinete do deputado. Outros RS 200 mil foram sacados em dinheiro vivo. Diz a reportagem que os promotores afirmam que essa quantia foi repassada pessoalmente ao esquema.

Depois da descoberta do esquema, Fabrício Queiroz demitiu a ex-mulher de Adriano, em 06 de dezembro de 2018, via WhattsApp, na tentativa de evitar a vinculação dela ao gabinete. Na verdade, uma tentativa de proteção a Flávio. Mais uma. Interceptação telefônica autorizada pela justiça mostra que Adriano orientou a ex-mulher a não prestar depoimento. A mãe do miliciano também foi exonerada naquele ano.

Como vimos, morreu Adriano da Nobrega, e como podemos deduzir, morreram com ele também muitas repostas importantes no esclarecimento tanto do esquema das rachadinhas, como no assassinato da vereadora Marielle Franco, e do motorista, Anderson Gomes.

Mais um motivo para se acreditar que a morte de Adriano tenha sido uma queima de arquivo, é o depoimento doa advogado do miliciano, Paulo Emílio Capa Preta. O advogado afirmou a reportagem que seu cliente tinha certeza de que iria ser morto pela polícia. “Falou que tava temendo pela vida dele, porque ele tinha certeza, segundo ele me disse, que essa operação para prendê-lo, não era para prendê-lo verdadeiramente, mas era para matá-lo. Ele falou em queima de arquivo. Ele falou: “eu temo por ser uma queima de arquivo”. Disse o advogado. As autoridades baianas negam essa versão.

Não esqueçamos que, pelo que se deduz dos fatos apresentados nesse artigo, Adriano tinha informantes dentro da própria polícia. Tanto é que foi avisado nas duas vezes que a polícia estava indo pra prendê-lo. Tanto na Costa do Sauipe, quanto na fazenda Parque Gilton Guimarães, de onde conseguiu fugir para o sítio onde foi morto. Ali cercado por setenta homens da polícia, não tinha mesmo como fugir. Então não é difícil também deduzir que os seus informantes o tenham colocado a par de uma possível “queima de arquivo”.

Na novela Vale Tudo, exibida pela Rede Globo, entre 16 de maio de 1988 a 6 de janeiro de 1989, no horário das 20h, o público passou boa parte da trama, com a pulga atrás da orelha, se perguntando quem teria matado Odete Roitman, personagem vivido pela atriz, Beatriz Segall, uma vez que na cena em que personagem é morta só apareciam a mão e arma do assassino. E o mistério só foi revelado no último capítulo quando se descobriu que quem havia matado Odete Roitman foi Leila, personagem vivida pela atriz Cássia Kis Magro.

Ao final, Leyla não apenas se livra da prisão, como foge do Brasil na companhia do marido corrupto, e do filho, debochando da justiça brasileira.

Já faz dois anos que, tal qual em Vale Tudo, permanece em segredo os mandantes do assassinato de Marielle Franco e do motorista, Anderson Gomes. No caso atual, sabemos que foram os assassinos, mas a questão crucial permanece: Quem encomendou a morte da vereadora e do motorista dela ainda permanece selada pelos véus do mistério.

E agora, será que teremos que fazer também a pergunta: Quem mandou matar Adriano da Nobrega?


Que venha logo esse último capítulo da novela real para que possamos conhecer os rostos e nomes dos mandantes.

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