0
A Verdade Vos Fará Livre
Posted by Cottidianos
on
20:08
Segunda-feira,
24 de fevereiro
“Bandeira branca, amor
Não
posso mais.
Pela
saudade,
Que
me invade eu peço paz.
Bandeira
branca, amor
Não
posso mais.
Pela
saudade,
Que
me invade eu peço paz”
(Bandeira Branca - Max Nunes e Laércio
Alves)
Enfim,
é carnaval na Marques de Sapucaí, na agitada cidade do Rio de Janeiro. O
trânsito que se vê naquela avenida é o trânsito de pessoas. Congestionamento?
Só de carros alegóricos. A pressa? É apenas para atravessar a avenida no tempo
regulamentar. A tensão e a correria são para encontrar o melhor lugar nas
arquibancadas, ou para dar o último retoque na fantasia.
Nestes
dias desaparecem o estresse cotidiano e a famosa avenida do samba dá lugar ao
colorido e ao luxo das fantasias, a devoção das alas de cada escola de samba, o
batuque ritmado da bateria, e a som contagiante do samba.
A
avenida do samba durante esses dias de carnaval também é espaço para críticas sociais,
referentes à cultura, à diversidade, à luta contra a intolerância, e diversos
outros temas que são discutidos através dos sambas enredos das escolas que
desfilam naquele espaço.
No
domingo 23, desfilaram as primeiras escolas do grupo especial do Rio de
Janeiro. Pela Marques de Sapucaí, na agradável noite dominical, passaram as
escolas: Estácio de Sá, Viradouro, Mangueira, Paraíso do Tuiuti, Grande Rio,
União da Ilha, e Portela.
Esse
blog destaca aqui o samba enredo da Mangueira. A verde e rosa trouxe Jesus
Cristo para a avenida, e por isso a escola foi muito criticada. O discurso de
Cristo fala de esperança, de salvação, de respeito pelo outro — muito mais que
respeito, amor pelo semelhante. O tecido que costura o evangelho pregado por
ele há mais de dois mil anos atrás é a crítica social. Tire-se a crítica social
do evangelho e teremos um outro evangelho.
O
samba da verde rosa, A Verdade Vos Fará
Livre, representou isso: uma crítica social que representa bem o momento
atual pelo qual passa o Brasil, com todo o seu lúgubre cortejo de violência, de
preconceito, e discriminação. Quem criticou o samba, ou não o ouviu — e se
ouviu não entendeu nem a letra nem a mensagem que ela contém nas entrelinhas —
ou então se colocou em um dos pontos desta polarização política na qual o país
está imerso. Polarização essa que em nada ajuda o país a crescer, muito pelo
contrário, apenas traz mais retrocessos que avanços.
A
letra do samba é de autoria de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.
Vamos
ao samba.
A Verdade Vos
Fará Livre
Senhor, tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
Senhor, tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
Já
de início, o samba começa com uma súplica, uma oração para que o Deus Todo
Poderoso olhe para a maldade que impera em nosso mundo e tenha piedade de nós.
Quem de nós já não se pegou, vez ou outra, dirigindo súplica igual ao Pai
Eterno?
Mangueira
Samba, teu samba é uma reza
Pela força que ele tem
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
Alguns
sambas têm uma letra e um sentimento tão forte cuja força é de oração. E não
poderia ser diferente, uma vez que os batuques dos atabaques, que mais tarde
evoluíram para as batidas do samba, tiveram origem, na escuridão das senzalas,
onde havia choro e muito sofrimento, e, com certezas, muitas preces por
liberdade.
Então
faz todo sentido dizer que o samba tem força de oração. Também aqui os autores
já começam a dar voz ao próprio Jesus, e ele faz uma previsão que serve para o
samba que está sendo cantando e interpretado pela escola. Diz a letra: vão
te inventar mil pecados, e como pai que acalma um filho, ou uma filha,
ou mesmo como um amigo a quem muito nos estima, e que quer nos transmitir força
e confiança, complementa: mas eu estou do teu lado, e do lado do samba
também.
A
partir daí, os autores do samba colocam a narrativa em primeira pessoa, e o
próprio Jesus dos dias atuais começa a dizer de si mesmo.
Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de
mulher
Moleque pelintra no Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
A
Judeia dos tempos de tempos de Jesus, era uma província romana. Jesus, como
filho de Deus poderia ter nascido em qualquer das grandes cidades da época,
inclusive em Roma. Mas não, os acontecimentos e as previsões sagradas levaram
Maria a dar à luz a ele na pequena cidade de Nazaré, na região da Galileia, ou
seja o Rei dos Reis, nasceu na periferia das periferias. E quem mora nas
periferias? Os pobres e oprimidos. Não se tem notícias de que, em alguma época
da história da humanidade, os dominadores, ricos, e poderosos tenham morado na
periferia.
É
muito provável que, devido ao clima quente e seco da região onde nasceu, a
tonalidade de pele Jesus não seja essa dos quadros clássicos que o apresentam
como loiro e de olhos azuis. Por causa disso, muitos estudiosos defendem a tese
de que Jesus era negro.
Vemos
também pelas leituras do evangelho que o homem de Nazaré sempre se colocou ao
lado daqueles que sofriam injustiça e opressão. Se as mulheres de hoje em dia
são discriminadas, imaginem então na sociedade machista na qual viveu o Cristo.
E ele se colocou também em defesa da mulher.
No
capítulo 8 do evangelho de João, os escribas e fariseus trouxeram até o Mestre
uma mulher que fora apanhada em adultério. A lei da época mandava que, em casos
assim, a mulher fosse apedrejada. Esse grupo, para testar, Jesus, colocou a mulher
diante dele e perguntou o que devia ser feito.
Fariseus
e saduceus sempre procuravam colocar o nazareno em alguma armadilha, e ele
sempre se saia delas com muita sabedoria, como também se saiu dessa vez. Jesus
disse, simplesmente: “aquele que não
tiver pecados que atire a primeira pedra”. Os fariseus e saduceus foram
embora contrariados, e a mulher deve ter ficado muito agradecida àquele que a
salvara de um apedrejamento.
Se
fosse hoje, certamente, o Mestre também defenderia as mulheres, os negros, os
gays, e quem mais tivesse carregando a cruz do preconceito.
No
verso em questão, os autores do samba, fazem uma correlação entre a cidade de
Nazaré e o bairro carioca de Mangueira, e da própria escola de samba, Estação
Primeira de Mangueira: Eu sou da Estação Primeira de Nazaré.
A descrição a seguir também coloca Jesus entre grupos muito discriminados hoje
em dia: os negros, os índios, e as mulheres.
Moleque pelintra no buraco quente. Moleque é sinônimo de menino, e pelintra, é sinônimo de pobre,
maltrapilho. Então, se Jesus nascesse hoje, seria esse menino pobre, vivendo no
Buraco Quente, que é uma parte do morro da Mangueira. Ou seja, de elite Jesus
não teria nada. Ele seria um Jesus defensor da gente pobre, humilde,
trabalhadora.
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro, desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe
ladeira
Me encontro no amor que não encontra
fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a
opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu
pavilhão
E no olhar da porta-bandeira pro seu
pavilhão
Peito
aberto, punho cerrado, são expressões bastante usadas pelos movimentos de
esquerda em suas lutas. Mas peito aberto e punho cerrado também são palavras
usadas por aqueles que enfrentam dificuldades. E quantas pessoas hoje no Brasil
não enfrentam dificuldades... Para começar são milhões de pessoas sofrendo com
a falta de emprego. Carpinteiros, marceneiros, engenheiros, professores, e
tantos outros profissionais sonham, todos os dias, em serem recolocados no
mercados de trabalho, e assim, poderem continuar vivendo suas vidas com a
dignidade que merecem. São Joãos, Josés, Marias, Fabricios, Marcos e tantos
outros que olham pro céu e pedem: Senhor, olha por nós.
Como
Maria sofreu ao pés da Cruz vendo o filho ser crucificado, ela, essa Maria das
Dores Brasil também sofre vendo a falta de oportunidade para os filhos, e vendo
eles sofrerem discriminação por serem negros, pobres, e por morarem na favela.
E
Jesus é esse ser de luz que enxuga o suor de quem sobe e desce ladeira todos os
dias. Se quer encontrar ele o procure no amor que não tem fronteiras. Há muitos
por aí que dizem: meus irmãos são apenas os da minha igreja, da minha religião.
Isso é o amor cristão? Um amor que se deixa limitar pelas fronteiras de um
templo, ou de uma religião é amor verdadeiro?
Ao
contrário, devemos procurar Jesus nas fileiras contra a opressão. Você jamais
vai encontrar Jesus ao lado de quem oprime, mas sim, do lado daqueles que são
oprimidos e daqueles que lutam contra a opressão.
Procura
ele também ele no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão. Vocês já repararam
com que que alegria, com que respeito, com que admiração e amor a porta-bandeira
olha para a bandeira que traz junto consigo?
Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu
recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
Onde
mais Jesus deve ser procurado? Na arte. Cordéis o que são? São livros de versos
escritos de forma bem simples e popular, porém, com muito conteúdo e riqueza de
rimas. E o corcovado? Um dos morros cariocas que ostenta a imagem do Cristo
Redentor, escultura e beleza em forma de arte, e que é um dos símbolos representativos
não apenas do Rio, mas do Brasil.
A
arte é alma de um povo, de um país. E como, ultimamente, a arte tem sido
perseguida em nosso país… Como os artistas têm sido perseguidos em nosso país… Querem
colocar a arte numa gaiola, mas arte é arte por si mesma, rebelde, pássaro
livre. Ela diz a verdade, de forma diferente, inusitada. Arte foi feita para
dizer, e não para calar. Por isso, também o Cristo pode ser encontrado na arte.
Ele não era de ficar calado. Era de falar. Por isso foi morto numa cruz. Se
fosse um homem que se sujeitasse aos desmandos de Roma e dos chefes dos
sacerdotes, ou que concordasse com a opressão que seu povo sofria, teria sido
elevado pela força do ouro, e não pela força da cruz.
O
problema é que de uns tempos para cá surgiram uns profetas. Profetas da
intolerância que não deixam as sementes da arte florescerem. Esses profetas não
apenas sufocam a arte, mas também sufocam as liberdades e os direitos
individuais. Se determinado grupo não pensa como eles pensam, então devem ser
apedrejados, humilhados.
Mal sabem eles que a esperança brilha
mais na escuridão.
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão
Favela,
“pega a visão”. Pega a visão é uma gíria que quer dizer entende, observa, “se
toca, mané”. Não tem futuro sem partilha.
É preciso pegar a visão de que uma das raízes do problema da violência no
Brasil é a grande desigualdade que existe no país. Desigualdade essa que ocorre
sob as bênçãos do Estado. Enquanto, não for resolvida essa questão o Brasil não
avançará o que tem de avançar.
Em
um âmbito pessoal a partilha também é importante. Partilhar o pão, partilhar o
conhecimento, experiência de vida. Quando a gente partilha aquilo que tem,
mesmo que seja pouco o que temos, o gesto de partilhar torna-se uma luz a
iluminar a vida de alguém e a nossa também.
Talvez
a frase que tenha mais incomodado neste samba, tenha sido este verso que
complementando a primeira ideia diz: favela pega a visão, não tem futuro sem partilha, nem
messias de arma na mão. Em uma clara referência ao presidente, Jair
Messias Bolsonaro, que não perde a oportunidade de citar a frase bíblica: “Conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará”, mas está sempre fazendo um gesto de arma com as mãos.
Alguém
já imaginou Jesus, se vivesse hoje, fazendo gesto de armas com as mãos? Ou
defendendo milicianos e torturadores?
Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E ressurgi pro cordão da liberdade
A
força do samba como oração é tão forte que até do céu se ouve. E o Rio de
Janeiro tem muito a erguer os olhos aos céus e desabafar, além dos problemas,
que são problemas nacionais, os cariocas ainda enfrentam problemas de corrupção
no governo, milhões foram desviados dos cofres públicos, problemas com o
sistema de saúde, educação, além da violência crescente.
Não
existe história de Jesus sem ressurreição. A Intolerância, maldade, e toda
espécie de mal não podem nos fazer morrer, pois a vida, e a esperança que
habita em nossos corações é mais forte do que aquilo que nos faz mal.
Cristo
está aí para nos ensinar que até da cruz a gente pode fazer esplendor e
ressurgir para o cordão da liberdade.
Em
entrevista ao site Brasil de Fato, a
compositora, Manu da Cuica, uma das autoras do polêmico samba, diz: “O Brasil é um país em que muita gente se diz
cristã e ao mesmo tempo é um país líder de desigualdade social, líder de
assassinatos contra minorias, um país que comete muitas barbáries cada vez mais
oficializadas. Talvez essa seja uma contribuição da Mangueira para essa
reflexão. Tem alguma coisa aí que não bate com o que seriam os ensinamentos de
Cristo. O Cristo vivo não estaria ao lado de quem aplaude ou finge não ver
esses ataques”.
E
assim, a Mangueira passou pela Marques da Sapucaí, linda, leve, e solta. Foi a
terceira escola a desfilar. Disse da história de Jesus com sua paixão morte e
ressurreição, mas o fez, transportando os fatos e personagens para os dias
atuais, como vocês puderam perceber pela letra do samba analisado acima. Trouxe
Jesus mulher, na figura da rainha de bateria, trouxe também Jesus Negro, e
Jesus índio, morador de rua,
e também o Jesus clássico que veio na Comissão de Frente.
. Enfim, além de ter contemporaneizado a história de
Cristo, a Mangueira mostrou Jesus como ele é: puro amor, como aquele que abraça
a todos, sem distinção de cor, credo, raça, ou cor da pele.
Para
hoje, tem mais desfile. Hoje, 24, passam pela Marques da Sapucaí as escolas:
São Clemente, Vila Isabel, Salgueiro, Unidos da Tijuca, Mocidade, e Beija-Flor.