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Eu sei, mas não devia
Posted by Cottidianos
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22:39
Segunda-feira, 05 de setembro
Ouvi
falar desse texto pela primeira vez, durante a sessão solene de Desagravo das
advogadas Susy e Vitória, no dia 03 de setembro. Susy citou-o em seu discurso,
perante advogados, juízes, e demais convidados. Achei-o muito interessante e
resolvi trazê-lo para o blog.
O
texto é da escritora Marina Colasanti, e nos instiga a sair da rotina. O
problema é que estamos tão acostumados com ela, a rotina, que nem percebemos
que, alimentando-a, deixamos a vida perder o colorido, e acabamos não vendo um
mundo de beleza e novidade que se descortina diante de nós todos os dias.
Marina Colasanti nasceu em 23 de setembro de 1937, em
Asmara, na Etiópia. Após a infância na África, mudou-se para a Itália, onde
viveu por 11 anos. Em 1948, chegou ao Brasil com família, e foi morar no Rio de
Janeiro. Publicou vários livros de crônicas, contos, histórias infantis e
poemas.
***
Eu sei, mas não devia
Marina
Colasanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se
acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo
se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o
sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado
porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o
jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche
porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a
guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os
mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos
números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no
telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de
volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o
de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar
menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as
coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A
abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de
ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao
choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À
contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir
passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não
colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um
ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na
primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente
molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se
consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que
fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono
atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para
esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para
poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se
perde de si mesma.
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