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Mestre Moa do Katendê: Uma luz que se irradia da Bahia para o mundo – Parte II
Posted by Cottidianos
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00:23
Terça-feira,
02 de dezembro
Entrevista
Mestre Moa do Katendê
“A
capoeira me ensinou tudo isso e um pouco mais”
Já
tendo apresentado o entrevistado em minha postagem anterior, passemos direto à
entrevista.
***
José Flávio — Mestre, o que significa a capoeira para o
senhor?
Mestre Moa do Katendê — Capoeira é
tudo que move para mim. É uma cultura rica, uma cultura dos ancestrais que eu
procuro, sempre que posso, cultuar, zelar, transmitir conhecimentos. Na
verdade, o conhecimento foi dado pelo meu mestre, daí eu sigo pelo mundo,
sempre que posso, divulgando.
José Flávio — Deve ser uma honra ser mestre de capoeira na
terra de grandes mestres?
Mestre Moa do Katendê — Sim. Sem
dúvida. Conviver com eles então...
José Flávio — O Sr. conheceu o Mestre Pastinha?
Mestre Moa do Katendê — Conheci o
Mestre Pastinha e tive a oportunidade de estar por duas vezes na academia dele,
justamente quando o mestre já tinha um grupo formado. Ele nos levou duas vezes,
dois domingos, para a gente se apresentar na academia do mestre Pastinha. Para
que ele mostrasse o trabalho dele. A outra oportunidade foi em 66 quando o Mestre
Pastinha estava viajando para a África. Era a despedida dele e eu fui assistir
essa apresentação que foi muito bonita. O Mestre Pastinha era uma figura
simples, mas tinha uma inteligência fora do comum. Foi um homem que lutou pela
preservação da capoeira angola, pelos seus princípios, seu ritual e abriu
espaço para que uma gama de capoeiristas bebesse dessa fonte. Foi uma pessoa
que possibilitou essa condição de as pessoas conhecerem a capoeira.
José Flávio — E o Mestre Bimba? O Sr. também o conheceu?
Mestre Moa do Katendê — O Mestre
Bimba só de passagem. Pelo fato de que, naquela época, existiam dificuldades. A
gente era menino, e menino obedecia muito aos pais. A gente não poderia ir a
qualquer lugar sem autorização deles. O Mestre Bimba já era um pouco mais
afastado da gente. Era outro bairro. Então conheci ele só de vista, mas não de
ter contato, como tive com o Mestre
Pastinha. Foi diferente com ele, porque era mais próximo da gente, e pela
ligação que o meu mestre tinha com ele. Então era mais fácil para a gente. Hoje
em dia tem uma facilidade muito grande pela comunicação que há... A capoeira,
hoje, ela se aproximou bastante... Os mestres se aproximaram bastante dos
alunos. Naquela época era muito difícil a gente poder ficar junto com o mestre.
Então era algo de dificuldade muito grande.
José Flávio — Que dificuldades eram estas?
Mestre Moa do Katendê — A dificuldade
era por uma questão de educação mesmo. A formação da gente era uma formação
muito tacanha. Então, estar com o mestre era muito difícil. Era tudo muito
rígido. Hoje eu vejo a facilidade que um aluno tem de fazer uma foto com o
mestre. Naquele tempo a maioria das pessoas não tinha máquina (fotográfica), e quem possuía uma eram
pessoas de um poder aquisitivo maior. Então a gente não tinha máquina e, mesmo
que a gente tivesse, teria que suar muito, se sacrificar muito para conseguir
uma foto junto com o mestre. Mas hoje existe uma facilidade muito grande, a
capoeira ela vai para o mundo. Hoje, ela tá em praticamente todos os países do
mundo, tanto na Europa quanto na América
Latina, América do Sul, América Central, no Oriente Médio... Na África, pouco,
por incrível que pareça. A gente só tem conhecimento de Angola, Moçambique.
Pode ser que tenha em outros países africanos, mas eu não tenho certeza, mas
Moçambique e Angola, sim. Poderia estar em toda a África, já que ela veio de lá. Mas se perdeu
muito o que saiu de lá, se perdeu muito, veio para o Brasil e aqui se constrói.
A capoeira é construída, na verdade, aqui.
José Flávio — Em termos de experiência de vida, o que a
capoeira acrescentou na vida do senhor?
Mestre Moa do Katendê — A experiência
profissional, ela abriu minha cabeça para o entendimento de liberdade, de
irmandade, de companheirismo, de respeito ao próximo, de respeito ao mundo,
respeito à natureza, principalmente, respeito à Roda, respeito aos colegas... A
capoeira me ensinou tudo isso e um pouco mais, por exemplo, a facilidade de
escrever. Hoje eu sou um compositor, escrevo além da capoeira. Escrevo ritmos
de samba, do afoxé. Escrevo para os blocos da Bahia. Então, eu agradeço muito à
capoeira, pelo fato de estar na Roda, de estar jogando, de estar trocando
conhecimento. Isso me impulsionou a escrever algumas coisas. Além disso, a
parte do artesanato também me abriu muito esse leque hoje, de fazer berimbau,
de fazer caxixi, de fazer outros instrumentos, além da capoeira também. Então,
essa experiência profissional é uma realização, e também de passar esse
conhecimento, porque em vários momentos, eu sou convidado para dar cursos de
artesanato, de dança, de percussão, de berimbau, de ritmo de berimbau.
José Flávio — O Sr. também é convidado para falar de
capoeira?
Mestre Moa do Katendê — Aqui eu
também falei de capoeira com os meninos e mostrei alguns ritmos, além da
capoeira, como o samba de roda, que é muito presente. Quando acaba uma Roda de
Capoeira, sempre tem um samba de roda. Eu pude mostrar para eles como se dá a
introdução do pandeiro, do atabaque, da palma da mão, do canto e foi muito
legal. Falei de puxada de rede, que é outra manifestação cultural que existe e,
além disso, da própria capoeira. Passei para eles a forma de tocar baixo, para
a gente adquirir educação musical, ouvir todos os instrumentos, ouvir a voz e
responder. Então a capoeira, ela é completa, ela interage. A gente, no momento
em que está tocando, a gente percebe que, automaticamente, as pessoas
respondem, porque a música entra no sangue, entra mesmo no espírito e as
pessoas conseguem participar junto com que tá cantando.
José Flávio — Quando o Sr. estava cantando, ali na roda,
uma das músicas, eu senti como que um resgate do passado. A música na capoeira
ela tem esse objetivo de resgatar a história de um povo, de uma nação, a nação
brasileira...
Mestre Moa do Katendê — Ela tem esse
objetivo, sim. Ela vai lá no fundo para a gente trazer para o presente à
importância que foi e que é a história dos mestres. Eles que deram toda uma
vida para que a capoeira estivesse como está hoje. Então a gente, sempre que
pode, vai buscar música lá no fundo e trazer para a nova geração que vai
continuar a capoeira, possa tomar conhecimento dela.
José Flávio — Falando de valores, como mestre, que
conhecimentos o Sr. procura transmitir para os seus alunos?
Mestre Moa do Katendê — Os valores
são respeito, respeito ao próximo. Entrar na vida do menino, no sentido de
saber como anda a vida dele na casa dele, com os pais, na escola. A gente
procura fazer esse trabalho de base, que é para que a capoeira, ela seja um
elemento de equilíbrio para a criança. Ela consegue equilibrar a coisa do
reflexo, ela possibilita... Na verdade, é um exercício mental. Jogar capoeira,
na verdade, é um diálogo que requer observação. Então a gente vive querendo que
o aluno observe sempre, tenha calma. Isso, a criança vai levar para a sua
vivência no mundo, levar isso para a sua construção de ser humano, de cidadão,
como lidar com o mundo aqui fora, além da Roda, porque é complicado o mundo das
drogas que está aí, para ele ter um equilíbrio emocional, não se envolver, e
sempre se lembrar da capoeira, dessa coisa maravilhosa que é estar na Roda.
Então, isso é transmitido, não só por mim, mas por todos os mestres que tem
responsabilidade com ela, com a capoeira, então, o menino só tem a ganhar com
isso. A gente cresceu com isso, então, a gente passa isso para elas, para essas
as crianças.
José Flávio — Qual a importância dessas manifestações
culturais como a capoeira, samba de roda, afoxé e outras manifestações ligadas
à cultura negra, como elemento de autoafirmação desse povo?
Mestre Moa do Katendê — Ajuda muito
porque o que a gente está fazendo, na verdade, é um exercício de cidadania. O
momento em que a gente está cantando, o momento em que a gente está tocando,
que a gente está jogando, a gente tá praticando a capoeira, a gente tem a nossa
grande arma que é essa comunicação. Seria nossa mídia alternativa. É o nosso
canal de verdade. Porque a gente pode rememorar os grandes mestres, buscar a
verdade do povo negro, e quebrar barreiras. No momento em que a gente está
aqui, a gente está dando as mãos, está fazendo uma grande aliança para quebrar
essas barreiras que ainda existem de preconceito. Assim a gente se autoafirma
como negro, como povo brasileiro e, acima de tudo, como um elemento que
contribui, não só para a cultura desse país, mas também para a economia desse
país. Quando a gente vê a política sendo praticada por políticos mal
preparados, a gente vê tanto desfalque, tanta falcatrua, a gente percebe que
isso é muito prejudicial para o nosso país, para as nossas crianças. Então a
gente procura impulsionar no aluno a gana dele, a vontade dele de buscar mais,
além da capoeira, estudar, se formar. Aqui a gente percebe que há essa
possibilidade mesmo de... Essa construção, não é só a capoeira, de jogar
capoeira, é avançar mais ainda, é a gente poder, amanhã ou depois formar um aluno,
ver um aluno formado em advocacia, ver um aluno formado em medicina e ele poder
agradecer a capoeira, que foi o impulsionador de tudo isso para ele. Porque a
capoeira vai dentro, e vai mostrando as possibilidades de galgar posições melhores
na vida. Então esse é o maior ganho que a capoeira tem, traz e possibilita para
qualquer um. É só querer mergulhar nela, na história que ela tem, na origem
dela e a pessoa, mais na frente, vai descobrir que pode partir para frente no
sentido de se formar e trazer para a comunidade a experiência adquirida. Porque
é importante ele se formar e voltar para a origem e poder falar dessa
experiência e incentivar, estimular a quem tá chegando agora, a não só jogar
capoeira, mas, pensar no futuro.
José Flávio — O Sr. tem muito amor pela capoeira,
inclusive o Sr. estava falando agora há pouco para o pessoal da Roda, que fez
uma cirurgia faz cerca de um mês, mas se destinou a sair de Salvador aqui para
Campinas para participar desse evento...
Mestre Moa do Katendê — Na verdade, a
gente tem forças. Todo ser humano tem suas forças superiores. A gente respeita
muito, a gente que participar dessa tradição de matriz africana, a gente
respeita muito, mergulha muito nisso, a gente entende que nós não somos nada.
Nós temos os nossos guias que vão iluminando a gente e vão nos colocando no
caminho e vão dizendo, “Você pode”! Então, se eu estou aqui, na verdade é
porque eles me deram essa condição de estar aqui. Primeiro Deus e as forças que
ele rege, que ele está regendo, e, as
amizades do Topete, as amizades com os capoeiristas, com os colegas, tanto da
minha idade, quanto os novos, os que estão começando agora. Isso é que faz com
que eu esteja aqui. Não estou muito preocupado com a coisa material da
cirurgia, porque ela já foi resolvida e, tenho certeza de que, os olhos e,
vamos dizer assim, toda uma corrente positiva, ela tá sendo trabalhada para que
eu esteja aqui e eu me recupere o mais rápido possível. Então, estou muito
feliz de estar aqui, em Campinas. Já é a segunda vez que eu venho aqui, mas,
neste evento, é a primeira vez. Peço para que o Topete, ele avance mais ainda,
que ele consiga bons êxitos com o trabalho dele, que é para Campinas ter nele,
e no grupo dele, uma referência cultural, porque, não só Campinas, o povo de
Campinas, a comunidade, mas o povo brasileiro possa vir aqui e ter aqui na
academia dele, na escola dele, um centro de referência, onde as pessoas possam
pesquisar, possam ter, a partir dele, informações, não só da Capoeira de
Campinas, mas da capoeira do mundo inteiro. Então, eu desejo que ele tenha
sucesso sempre, que ele continue empenhado nos trabalhos que é árduo, é
difícil, mas é prazeroso. Eu tenho certeza de que quando ele sair daqui, vai
para casa fortalecido com tudo o que ele está presenciando, que ele está vendo,
que ele está participando e vendo também as pessoas felizes. Porque a gente faz
as pessoas felizes e gente também se sente feliz com isso. Então, na verdade, a
gente mantém essa troca viva, que é uma troca que já existia lá atrás, que
sempre existiu com o povo africano e, com a diáspora negra aqui no Brasil, essa
reconstrução, a gente sabe muito bem, o quanto foi difícil a gente hoje poder
cantar, livremente, apesar de alguns preconceitos, mas poder cantar, isso lá
atrás, há 100, 200 anos atrás, era impossível de se fazer. Então, isso é um
presente que, na verdade, os ancestrais dão para a gente. Um grande presente
que a cultura afro-brasileira, a capoeira nos proporciona.
***
As
atividades de Mestre Moa aqui no estado de São Paulo, ainda não terminaram. Ele
ainda participa de uma programação na cidade de São Paulo, nos dias 4, 5, 6 e 7
de dezembro. No evento serão oferecidos oficinas de capoeira, confecção de
xequerê, dança-afro, samba de roda e percussão. Tem também show do Badauê e
muito mais. Maiores informações pelo site: www.angoleirosimsinho.org.br
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