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Cruzando oceanos
Posted by Cottidianos
on
00:23
Terça-feira,
16 de dezembro
“Amigo é coisa para se guardar
No
lado esquerdo do peito,
mesmo
que o tempo e a distância digam não,
mesmo
esquecendo a canção.
O
que importa é ouvir a voz que vem do coração”.
(Canção da América – Milton Nascimento)
Marlene Silva |
Que
fazer para disfarçar a saudade de uma amiga que vai embora para outro país?
Fumar?
Não,
não acho uma boa ideia. Nunca fumei e não seria agora hora de começar. Vivo
muito bem sem a fumaça dos cigarros. Não me vejo com um deles entre os dedos,
engolindo fumaça ofensiva à saúde dos meus pulmões.
Beber?
Pode
ser. Bebo socialmente, alguns goles de cerveja. Gosto daquele líquido
absurdamente gelado e de sabor peculiar. Mas, no momento, não posso. Estou tomando
alguns antibióticos e o médico chato me disse: “Nada de álcool, por enquanto.
Ele pode tirar o efeito do medicamento, ou reduzir a sua eficácia”. Para meu
próprio bem, resolvi obedecê-lo.
Ignorar
a realidade?
É
uma boa ideia? Fingir que não está acontecendo nada, que a viagem próxima não
está nos afetando em nenhum sentido. Pensando bem, não é uma boa ideia.
Definitivamente, não é. Posso enganar minha razão, meu lado racional, mas meu
coração, meus sentimentos, esses são difíceis de serem logrados.
Ler
um livro?
Eis
uma boa ideia. Um pouco de poesia vai bem, afinal, se amizade não rima com
poesia, harmoniza-se muito bem com ela, como notas da mesma canção: A canção da
vida. Percorro os olhos pela estante... Vinicius de Moraes... Drummond de
Andrade... Pablo Neruda. Meus dedos tocam o livro de Neruda. Meu coração o
folheia. Meus olhos leem o poema escolhido pelo sentimento:
Sê
Se
não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê
um arbusto no vale mas sê
O
melhor arbusto à margem do regato.
Sê
um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se
não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E
dá alegria a algum caminho.
Se
não puderes ser uma estrada,
Sê
apenas uma senda,
Se
não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não
é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas
sê o melhor no que quer que sejas.
Deixo
os meus olhos vagarem no horizonte que se descortina à minha frente. Deixo meus
pensamentos navegarem no mar de emoções que me domina. Quantas desculpas nós
arranjamos para não ser. “Não vou brilhar porque não consigo ser o sol”, diz
um. “Não vou perfumar porque não consigo ser uma rosa”. Quantas outras
desculpas como essas, nós arranjamos para não ser? E com elas mergulhamos em
nossas ignorâncias, incoerências e mesquinhezas...
Assim
também é com a amizade ficamos pensando no tamanho da amizade e esquecemos de
que, nessa matéria, o que vale mesmo é a qualidade. Ficamos receosos de esboçar
pequenos gestos, justamente, por serem eles pequenos, e nos esquecemos de que
na obviedade dos pequenos gestos e ações reside a grandeza e a essência da
vida.
Ainda
divagando nas palavras de Neruda, volto meus pensamentos para um conto árabe
sobre a amizade, que li na Internet, e
ao qual dei minha própria adaptação:
Dois
amigos cruzavam o deserto em plena harmonia. Porém, se, às vezes, estando
sozinhos, nos desentendemos consigo próprio, imagine se estamos em na companhia
de outro ser humano, mesmo que seja nosso amigo e caminhe lado a lado conosco. Durante
o decorrer da viagem, por algum motivo, não se sabe qual, os dois amigos
discutiram, tendo um deles esbofeteado o outro. Aquele que havia sido ofendido,
sem nada dizer, escreveu na areia:
HOJE,
MEU MELHOR AMIGO ME BATEU NO ROSTO.
Resolvida
a contenda, os dois seguiram viagem. Chegaram a um oásis e, como estavam com
bastante calor e também muito exaustos, resolveram tomar um banho. O homem que
anteriormente, havia sido esbofeteado pelo amigo, como não soubesse nadar,
começou a se afogar. O outro, com mais experiência e intimidade com a água, foi
em seu socorro, conseguindo salvá-lo. Passado o susto, e já recuperado aquele
que, há pouco, se afogava, sacou da mochila um estilete, e escreveu em uma
pedra:
HOJE,
MEU MELHOR AMIGO SALVOU-ME A VIDA.
O
amigo ficou curioso com a atitude do outro e indagou-lhe:
—
Depois que lhe bati, você escreveu meu nome na areia e agora que lhe salvei,
você escreveu meu nome numa pedra. Por que a diferença de atitudes nas duas
situações?
Sorrindo,
com tranquilidade, aquele que havia acabado de escrever na pedra, respondeu,
ensinando ao outro uma grande lição:
—
Quando um grande amigo nos ofende, devemos escrever o nome dele na areia para
que os ventos do esquecimento e do perdão se encarreguem de apagá-lo. Ao
contrário, quando um amigo nos faz algo grandioso, magnânimo, devemos gravar o
nome dele na pedra da memória de nosso coração; onde nenhum vento será capaz de
apagá-lo.
Ah,
esqueci de vos dizer quem é Marlene e para onde ela está indo, desculpem me por
isso. É que estava tão enlevado em meus pensamentos e reflexões que me esqueci
de revelar este importante detalhe.
Leandro Silva |
Marlene
é brasileira, porém, viveu por mais de trinta anos entre Itália e Portugal. Tem
dois filhos chamados Leandro e Gustavo. Leandro mora na Itália e Gustavo mora no Rio Grande do Sul. Ela voltou ao Brasil há cerca de dois anos e nos conhecemos por
intermédio de amigos em comum. Em seu primeiro ano aqui no Brasil, apenas nos
víamos nos círculos em comum, mas não tínhamos nenhuma proximidade.
Há
cerca de um ano, porém, nos tornamos mais próximos. Então ela passou a ser para
mim uma irmã, amiga, algumas vezes mais parecia uma mãe, com tanto cuidado e
desvelo para com a pessoa deste que vos escreve. Descobrimos afinidades...
Confesso que o gostar de doces foi uma dela. Penso que em outra encarnação
devemos ter sido formigas. Entendam isso em tom de brincadeira para quebrar um
pouco a seriedade do texto. Afinal, entre amigos deve-se ter essa liberdade de
quebrar o formalismo.
Conversamos
muito sobre a caminhada, muitas vezes difícil, que encontramos no plano
material. Plano esse que nos submete a muitas provas e decepções. Temos que
resolver cada qual a sua equação, com maior ou menor grau de dificuldade, mas
sempre em meio a muitas provações.
Também
conversamos muito sobre as belezas do plano espiritual, destino certo de cada
ser vivente que cruza os mares da vida. Um dia todos nós faremos a travessia e
temos que estar preparados para isso. Em meio à todas as provações terrenas,
crescemos, evoluímos, às vezes, mesmo sem o perceber. Se a via terrestre é
muito mais uma via de provação, o mundo espiritual o é de evolução.
Uma
boa comunicação, assim como a música, não é feitas apenas de palavras, mas sim,
de silêncios e sons. Sendo assim, sentados à varanda de seu apartamento, no
bairro do Cambuí, ficamos muitas vezes em silêncio, observando o brilho das
estrelas distantes e a grandeza do infinito universo: Uma dádiva do criador,
concedida a todos os seus filhos, tanto aos bons quanto aos maus. Enquanto observávamos
esses presentes do criador, podíamos ver também a maravilhosa intromissão do
homem nesse céu infinito, através do constante trafego de aviões que se
dirigiam ao Aeroporto Internacional de Viracopos, aqui mesmo, na cidade de
Campinas. Quisera Deus que todas as invenções do homem tivessem apenas a finalidade de
facilitar a vida das pessoas, construindo pontes entre elas...
Carlota Joaquina |
Também
não posso deixar de citar aqui o amor de Marlene pelos animais, especialmente
os da raça canina. Quando chegou da Itália acerca de dois anos, ela trouxe
consigo, a sua querida Carlota Joaquina. Carlota, raça acostumada com o frio da
Europa, enfrentou muitos problemas de saúde com o calor do Brasil. por fim veio
a deixar o corpo canino que habitava, em parte também, por causa da idade, que
chega indistintamente para homens e animais, aproximando-os de seu destino
inevitável. Quão triste foi a morte de Carlota para Marlene! Certo dia,
passeando pela feira de artesanato, estando ela em uma barraca de artigos
indígenas, conversando com um índio e uma índia, responsáveis pelo negócio,
aproximou-se dela, o pessoal de uma ONG que recolhia animais de rua, e lhe
ofereceram como presente uma cachorrinha, a qual ela prontamente aceitou e lhe
deu o nome de Maria Clara.
Nesta
terça-feira (16), Marlene volta para a Itália, levando junto consigo para
aquelas terras, Maria Clara. De minha parte, apesar da muitas saudades que
sentirei, desejo as duas que encontrem, em terras italianas, ou portuguesas,
solo propício para a felicidade, no qual floresçam as flores da paz,
prosperidade e alegria.
Penso
que algumas pessoas não se encontram, mas que, de algum modo, elas se
reencontram, retomando laços que já existiam muito antes de elas terem se
conhecido e que continuarão existindo, apesar da distância que as separam.
Arrivederci,
Marlene!
Arrivederci,
Maria Clara!
Buon
viaggio!
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