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Uma crônica sobre poesia
Posted by Cottidianos
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00:29
Sexta-feira,
07 de novembro
“Um menino
caminha e caminhando chega no muro
E ali logo em
frente a esperar pela gente o futuro está
E o futuro é uma
astronave que tentamos pilotar
Não tem tempo
nem piedade nem tem hora de chegar
Sem pedir
licença muda nossa vida
Depois convida a
rir ou chorar”.
(Aquarela - Vinicius de Moraes , Toquinho, Maurizio
Fabrizio, Guido Morra)
Quem
é o poeta? Nas palavras de Fernando Pessoa “O
poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a
dor que deveras sente”. Além desse bem fingir, o poeta também pode ser
enquadrado na categoria dos metafísicos, pois ele tem um outro olhar sobre a
vida. Os versos e rimas de uma poesia podem conter o tudo e o nada, o início e
o fim. Bem como, podem revelar o mundo ou escondê-lo. Nisso, o poeta se
assemelha ao alquimista, uma vez que ele tem a capacidade de transmutar uma
coisa em outra. O poeta pode, por exemplo, transformar pedra em flor, mel em
papel, amor em dor. Ele faz da arte da palavra escrita a sua pedra filosofal.
Usei nessa introdução uma palavra que me incomoda: enquadrar. Ora, o poeta não
se enquadra em categoria nenhuma. É um espírito livre e deixa a imaginação
pairar sobre vales e montanhas, rios e córregos, lagos e oceanos, absorvendo a essência
das matas e dos campos. Seu aprendizado se faz com a vida. Busca a forma como o
marceneiro talha a madeira. Busca a essência como a abelha busca o mel. Sua
simplicidade assemelha-se à simplicidade dos pescadores de aldeias longínquas que
saem mar afora em busca do sol, lançando as redes nas profundezas do reino de Netuno buscando as pérolas da inspiração.
Porém,
quem pode melhor definir um poeta, senão ele mesmo. No texto abaixo, o grande
poeta, compositor, jornalista, diplomata e dramaturgo, brasileiro, Vinícius de
Moraes, nos dá uma boa definição do que seja esse que construtor e arquiteto de
palavras. Certamente, o mundo é mais belo com as construções de Fernando
Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Shakespeare, Camões e do
próprio Vinicius de Moraes, dentre tantos outros.
Caros leitores,
permitam-me fugir do factual, e apresentar-lhes a crônica de
Vinicius de Moraes, Sobre Poesia, publicado no ano de 1962, no livro de
crônicas e poemas, Para viver um grande amor.
No mais eu lhes
digo: Sejam poetas e poetisas!
Não levo jeito
para construir castelo de palavras, diz você!
Ao que respondo
eu: Foi-lhes dado o dom de amar... Então, transforme sua vida em uma bela
poesia. Faça da sua existência uma canção de amor.
***
Sobre
poesia
Não
têm sido poucas as tentativas de definir o que é poesia. Desde Platão e
Aristóteles até os semânticos e concretistas modernos, insistem filósofos,
críticos e mesmo os próprios poetas em dar uma definição da arte de se exprimir
em versos, velha como a humanidade. Eu mesmo, em artigos e críticas que já vão
longe, não me pude furtar à vaidade de fazer os meus mots de finesse em causa
própria - coisa que hoje me parece senão irresponsável, pelo menos bastante
literária.
Um
operário parte de um monte de tijolos sem significação especial senão serem
tijolos para - sob a orientação de um construtor que por sua vez segue os
cálculos de um engenheiro obediente ao projeto de um arquiteto – levantar uma
casa. Um monte de tijolos é um monte de tijolos. Não existe nele beleza específica.
Mas uma casa pode ser bela, se o projeto de um bom arquiteto tiver a
estruturá-lo os cálculos de um bom engenheiro e a vigilância de um bom construtor
no sentido do bom acabamento, por um bom operário, do trabalho em execução.
Troquem-se
tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de
arquiteto, engenheiro, construtor e operário, e aí tendes o que é poesia. A
comparação pode parecer orgulhosa, do ponto de vista do poeta, mas, muito pelo
contrário, ela me parece colocar a poesia em sua real posição diante das outras
artes: a de verdadeira humildade. O material do poeta é a vida, e só a vida,
com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra. Sua
função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações,
sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é
passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo
da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não
será nunca um bom poeta, mas um mero lucubrador de versos.
O
material do poeta é a vida, dissemos. Por isso me parece que a poesia é a mais
humilde das artes. E, como tal, a mais heróica, pois essa circunstância determina
que o poeta constitua a lenha preferida para a lareira do alheio, embora o que
se mostre de saída às visitas seja o quadro em cima dela, ou a escultura no
saguão, ou o último long-playing em alta- fidelidade, ou a própria casa se ela
for obra de um arquiteto de nome. E eu vos direi o porquê dessa atitude, de vez
que não há nisso nenhum mistério, nem qualquer demérito para a poesia. É que a
vida é para todos um fato cotidiano. Ela o é pela dinâmica mesma de suas contradições,
pelo equilíbrio mesmo de seus pólos contrários. O homem não poderia viver sob o
sentimento permanente dessas contradições e desses contrários, que procura
constantemente esquecer para poder mover a máquina do mundo, da qual é o único
criador e obreiro, e para não perder a sua razão de ser dentro de uma natureza
em que constitui ao mesmo tempo a nota mais bela e mais desarmônica. Ou melhor:
para não perder a razão tout court.
Mas
para o poeta a vida é eterna. Ele vive no vórtice dessas contradições, no eixo
desses contrários. Não viva ele assim, e transformar-se á certamente, dentro de
um mundo em carne viva, num jardinista, num floricultor de espécimes que, por
mais belos sejam, pertencem antes a estufas que ao homem que vive nas ruas e
nas casas. Isto é: pelo menos para mim. E não é outra a razão pela qual a
poesia tem dado à história, dentro do quadro das artes, o maior, de longe o
maior número de santos e de mártires. Pois, individualmente, o poeta é, ai
dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente
revoltado. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos
domésticos, a filha pobre na família das artes, e um elemento de perturbação da
ordem dentro da sociedade tal como está constituída.
Diz-se
que o poeta é um criador, ou melhor, um estruturador de línguas e, sendo assim,
de civilizações. Homero, Virgílio, Dante, Chaucer, Shakespeare, Camões, os
poetas anônimos do Cantar de Mío Cid vivem à base dessas afirmações. Pode ser.
Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente
por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma
escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como
um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro
cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani - que se fosse vivo
seria multimilionário como Picasso - podia, na época em que morria de fome,
trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram
antes e depois dele. Mas eu acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o
seu filé em troca de um soneto ou uma balada. Por isso me parece que a maior
beleza dessa arte modesta e heróica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao
verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida. Seu
único patrão é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a
natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e tranqüilidade.
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