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Reflexões sobre árvores, lagartas e borboletas
Posted by Cottidianos
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00:18
Terça-feira,
04 de novembro
“Era uma vez
Um sábio chinês
Que um dia sonhou
Que era uma borboleta
Voando nos campos
Pousando nas flores
Vivendo assim
Um lindo sonho...”
(O Conto do Sábio Chinês – Raul Seixas)
No
início de minha postagem de domingo (02) disse a vocês que iria ao cemitério,
por ocasião do Dia de Finados, fazer minhas orações, e fui. O campo-santo
estava repleto de pessoas acendendo velas, colocando flores nas lapides e
fazendo orações. Pensei em escrever algum texto sobre o tema, porém, pensei:
“Como vou abordar um tema tão forte e ainda um tabu na cultura ocidental”.
Pensei em deixar e ideia de lado, porém, ela se impôs.
Cheguei
em casa e sentei em frente ao computador. Não tinha a menor ideia de como
começar o texto. Foi então que essa voz interior que chamamos de intuição,
disse: “Escreve um texto, no estilo de A
República, de Platão”. Esta obra de
Platão é dividida em dez livros, em forma de diálogo. Nela, Platão, discute
ideias sobre o Estado ideal e também sobre o homem ideal. É um ótimo livro. Não
foi por acaso que se tornou um clássico. Para discutir os diversos temas,
Platão criou a figura de Sócrates e alguns interlocutores que dão vida aos
diálogos. Um desses interlocutores chama-se Glauco.
Achei
que minha voz interior tinha me pedido uma tarefa não muito fácil de realizar.
Hesitei. Porém, timidamente, meus dedos foram procurando o teclado e o texto
foi sendo escrito. Nele, também trouxe as figuras de Sócrates e Glauco para
falar dessa dualidade vida x morte.
***
Glauco — Caro Sócrates, desculpe tomar
seu precioso tempo. Tu que estás a meditar à sombra dessa agradável árvore,
produtora de sombra e convidativa à reflexão
e ao descanso.
Sócrates — Querido
discípulo, sabes que és sempre bem vindo, sempre! Achega te um pouco mais,
senta-te próximo a mim, já que me tiraste da companhia dos meus agradáveis e,
ao mesmo tempo, incômodos pensamentos.
Glauco — Desculpe a minha
falta de discrição, mas por quais mundos andavam teus pensamentos?
Sócrates — Não há nada
que desculpar, pois não refletia acerca de nada que você não pudesse saber.
Pensava, justamente, na amplitude do conceito de árvore encerrado em si mesmo,
ou se preferes um conceito semiótico, o significado do termo. Não a coisa a que
demos o nome de árvore. Arvore enquanto árvore é apenas isso. Por exemplo,
quando teus ouvidos percebem a palavra árvore, logo pensas num vegetal lenhoso,
cujas bases, chamadas raízes estão abaixo do solo e servem de suporte a um
tronco que se eleva soberano e ostenta no alto, galhos, folhas e, dependendo da
espécie, também frutos. Aplica-se esse conceito, não a uma árvore em
particular, mas a todas as árvores da face da terra. Tua mente ao ouvir a
palavra árvore é capaz de distingui-la de arbusto, cuja ramagem
se localiza rente ao próximo ao solo. Sabemos que as raízes são o canal de
alimentação da árvore com a terra e todas essas coisas.
Glauco — Caro mestre, eu não consigo
olhar para uma árvore e ver mais que isso: Um amontoado de galhos e folhas e
se, tem frutos, aproveito para saborear alguns, e isso me basta.
Sócrates — Do modo como
limitas ao máximo esse legitimo representante do reino vegetal, também limitas
por demais o teu pensamento. Disse
Sócrates sorrindo.
Glauco — Bem se vê que meu olhar sobre
o mundo é tão profundo quanto as águas de um córrego. Devo ser mesmo deveras
ignorante. Um grande ignorante, diga-se de passagem. Retrucou Glauco, também a sorrir. Explica-me então que reflexões se
podem inferir acerca desta árvore tão bondosa que nos brinda, ao mesmo tempo,
com sua sombra e com seus frutos.
Sócrates — Pois, bem
caro Glauco, enquanto devoras esse delicioso fruto, darei a ti frutos do meu
conhecimento. O homem ao atribuir significado as coisas, atribuiu-lhes também
valores, que podem ser simbólicos ou ideológicos. A propósito, tu sabes que os
símbolos, desde sempre, em todas as sociedades e diferentes mitologias, estão
repletos de profundos significados e conceitos?
Glauco — Sim. Já me ensinaste que os
símbolos nos ajudam a viver e a compreender o incompreensível.
Sócrates — Fico feliz,
pois vejo que aprendeste bem a lição. Mas voltando ao assunto do qual tratamos.
Dentro desse conceito simbólico e ideológico, a árvore representa o bem maior:
A vida. Ou também, se quiseres, uma evolução constante. Basta olhares para esta
sob cuja sombra estamos abrigados e ver que seu viçoso e forte caule mantém uma
direção para cima e para o alto. Como se estivesse querendo sempre se elevar em
direção ao céu, ao mais alto dos céus. Uma árvore pode tombar, mas para isso é
preciso que atue sobre ela outra força, seja natural, seja humana. Pela sua
própria natureza uma árvore não tomba por si mesma, pois não é essa a sua
essência. Pode até ser que tombe por si mesma, se suas raízes estiverem por
demais podres. Glauco, também as árvores chegam a velhice e isso também
é da sua própria natureza.
Glauco — Fico a pensar se é possível
aplicar a uma árvore os conceitos de vida e morte...
Sócrates — Claro, que
há. Na árvore também se pode observar o ciclo da evolução. É como se elas
atingissem três níveis cósmicos. Abaixo de nós e sustentando o tronco estão as
raízes. Elas se escondem nas profundezas e são o primeiro estágios. Não existe
árvore sem raízes. Há o tronco que representa o mundo visível e os galhos que
representam o desejo de atingir o mundo espiritual. Complementando o que vos
dizia anteriormente, tudo na vida é cíclico. Quando uma árvore tomba na
floresta, seus elementos tornam-se adubo que, por sua vez, irão possibilitar
que novas árvores cresçam fortes e vigorosas. Ou seja, a árvore não morreu, ela
apenas assumiu outra forma de vida.
Glauco — E a expressão “árvore do
conhecimento”, onde foi originada?
Sócrates — Que também
pode ser chamada de “árvore do bem e do mal”. Muito pertinente a sua pergunta.
Pois quando a serpente, no paraíso, ofereceu a maçã a Eva, ela também estava em
cima da macieira. Na verdade a maçã oferecida pela serpente a Eva, representa o
fruto do conhecimento que pode levar ao bem e ao mal, como se fosse uma faca de
dois gumes. As árvores também estão relacionadas à fertilidade de um povo, de
um clã ou de família.
Nesse momento, uma bela e colorida
borboleta passa sobrevoando, próximo aos dois falantes, e pousa sobre um dos
galhos da árvore.
Glauco — Sócrates, veja que bela
borboleta pousou naquele galho.
Sócrates — Você vê uma
borboleta e eu vejo uma metamorfose.
Glauco — Por Zeus, Sócrates, não
consigo acertar uma? Esse é o meu mestre: Sempre vendo a essência onde vejo
apenas coisas. Em que sentido a borboleta é uma metamorfose?
Sócrates — Ora, pois, a
palavra metamorfose (metamórṗhosis), em nosso vocábulo grego não quer dizer
transformação?
Glauco — É verdade, a borboleta não
nasceu borboleta.
Sócrates — Claro que
não. Houve uma mudança radical na forma e na estrutura antes que ela viesse a
ser o que estamos vendo: Uma bela e colorida borboleta. Enquanto lagarta
habitava outro corpo, outra vida, com hábitos diversos. Após uma breve pausa, Sócrates continua. Na verdade, tudo na vida,
funciona de forma cíclica. O sol se levanta no nascente e desce no poente todos
os dias, renovando, constantemente, o milagre da vida. As próprias árvores,
como eu já vos disse, quando caem na floresta, elas morrem um instante, para
depois voltarem a viver na forma de alimento para outras árvores.
Glauco — E como se dá esse processo
cíclico com as borboletas?
Sócrates — Tudo começa
com a dança da vida, ou seja, o acasalamento entre uma borboleta macho e uma
borboleta fêmea. Ocorrido o processo de fecundação, a borboleta fêmea deposita
seus ovos na folha de alguma árvore. Lá fica o pequeno ovo na folha da árvore
em período que pode durar alguns dias apenas, ou até um mês.
Glauco — É verdade que há no corpo do
próprio inseto, um mecanismo que faz com que o embrião só venha a se
desenvolver quando as condições climáticas e o desenvolvimento da própria
árvore, na qual ele foi depositado, sejam favoráveis?
Sócrates — Isso mesmo. A
natureza é de uma sabedoria tão grande que pensa em todos os detalhes.
Adquiridas as condições necessárias para o desenvolvimento do embrião, é hora
de passar a outra fase. Nessa nova fase o embrião vira larva, a lagarta que nós
conhecemos. Feia e desajeitada a lagarta aproveita esse estágio — que pode
durar cerca de um ano — para comer folhas tal qual uma louca. O objetivo dessa
comilança é acumular energias para o próximo estágio. Durante o seu
crescimento, a lagarta muda de pele algumas vezes. Certo dia, a lagarta esvazia
o estômago, fixa-se, e nesse processo sofre a última muda de pele, surgindo
então a pupa ou crisálida. Dentro do casulo, em total quietude, a lagarta vai modificando
seu corpo, seus tecidos. Um belo dia, o casulo se rompe e a lagarta abre suas
asas em voo que mais se assemelha a dança da liberdade.
Glauco — Sócrates, é possível traçar um
paralelo entre a lagarta, a borboleta, a vida e a morte?
Sócrates — Sim, caro
Glauco, é perfeitamente possível. Se considerarmos que a lagarta se se
assemelha a nosso corpo material e a borboleta assemelha-se ao nosso ser
espiritual, é possível, sim. Tanto a borboleta quanto o ser espiritual sofreram
metamorfoses.
Imagine
a pobre lagarta se arrastando por entres os arbustos de uma floresta escura e
fria, cumprindo a dura tarefa de buscar alimento. Nessa caminhada muitos
perigos a espreitam a ameaçam. Nessa luta diária ela pode se deparar com alguns
inimigos também famintos como os sapos, os besouros, e até mesmo os pássaros.
Na condição de lagarta, sua visão de mundo beira a mediocridade, mas não se
pode exigir muito mais dela. É a sua condição momentânea. Com uma visão
limitada do mundo, não lhe é possível observar a floresta e todos os seres que
a habitam em toda a sua intensidade. Pobre lagarta, a única visão que tem é a
de seu próprio e limitado espaço, tendo que se contentar com suas pobres ideias
que, em sua inocência, ela acha que encerram a verdade.
Em
seguida vem a grande transformação, um casulo se rompe e lagarta renasce em
novo corpo, com novas e possibilidades infinitamente maiores. De repente, a
lagarta que levava um bocado de tempo para percorrer alguns metros, pode voar
por espaços infinitos e com grande velocidade, em relação ao seu estágio
anterior. Agora transformada em borboleta, pode pairar por sobre a floresta e
absorvê-la em toda a sua essência. Isso não é maravilhoso?
Glauco — Sem dúvida que é. Nosso corpo
é semelhante ao das lagartas, é isso que você que quer dizer?
Sócrates — Quero dizer
que o nosso corpo carnal é semelhante a uma casca. Corremos todos os
dias pelas florestas da vida, em busca de alimento e todas as coisas que nos
são necessárias para estar na floresta. Nossa visão é limitada e daí vem a
causa de tantos conflitos, incompreensão, preconceitos, guerras e todas essas
insanidades próprias do homem. Andamos com medo de assaltos, violências, como
as lagartas andam com medo de sapos, besouros e pássaros.
Temos
medo de entrar no casulo. Temos medo da metamorfose pela qual passaremos no
casulo. Para os materialistas esse medo é dez vezes maior, uma vez que, para
eles, acabando-se a matéria, acaba-se todo o restante. Os materialistas veem a
morte com o fim supremo. Quando, na verdade, isso a que chamamos de morte é
apenas um novo recomeço, muito mais cheio de possibilidades do que a vida no
mundo visível.
Operada
a transformação, a metamorfose, rompemos a casca do corpo material e alçamos
voos nunca antes imaginados quando estávamos em nosso estágio anterior. Nossa
visão se torna mais aguçada. Todos os nossos sentidos se tornam mais profundos.
Podemos enxergar a floresta por cima e por baixo, em toda a sua intensidade.
Nossa vida futura, no mundo invisível será, em muito, diferente da vida
experimentada pela feia e desajeitada lagarta que se fazia presa fácil em meio
à floresta.
Glauco — Sócrates, falas de uma
situação limite, de ultrapassar fronteiras. Mas não podemos entrar no casulo
antes disso, digo, sofremos uma metamorfose em nossas vidas, sem termos que,
necessariamente, morrer?
Sócrates — Se
considerarmos assim, digo-lhe que morremos todos os dias, uma vez que somos
seres em constante transformação. O mundo exige isso de nós. O ambiente em que
vivemos exige isso de nós. O outro com o qual convivemos exige isso de nós.
Algumas
vezes, esse entrar no casulo da consciência é absolutamente necessário. Nele
podemos refletir intensamente sobre nossas atitudes, nossos pensamentos, nosso
modo de agir. Nesse período de quietude, sentimos que e preciso deixar de ser
menos egoísta e sermos mais pacientes e compreensivos para com os outros. É um
tempo de mudança interior que muito bem nos faz.
Mestre e discípulo silenciaram um pouco.
Pensando nas questões sobre as quais haviam refletido... E a linguagem do
silêncio também é muito rica de significados. A quietude era tanta que se podia
ouvir o som de uma folha que se despendia dos galhos mais altos da enorme
árvore, caindo no chão e dando início a mais um ciclo de vida.
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