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Agulha trabalhadora e linha ordinária
Posted by Cottidianos
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01:07
Sábado,
21 de maio
O
que é mais importante, tratar da raiz ou dos ramos da árvore?
Isso
depende das circunstâncias. Tudo na vida é vida é relativo, nada é absoluto. Afinal,
como diz o gênio, Fernando Pessoa, nos versos de Navegar é preciso: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Se
a árvore está frondosa, bem adubada, e o solo lhe é propício, é natural que
você cuide dos galhos, dos ramos, aparando-os, e dando-lhes melhor e mais
bonita forma. Se não, se a árvore está em solo que não lhe é propicio, se suas
folhas e seus ramos estão murchos e amarelados, então, nesse caso específico,
não faria o menor sentido você cuidar da estética e esquecer-se do principal: a
raiz que sustenta tronco, folhas, flores e frutos.
Coloquemos
o Brasil nessa segunda opção, e vou direi por que escrevo, mais uma vez, e
continuarei batendo nessa tecla, do combate à corrupção, e nosso papel,
enquanto cidadãos e cidadãs brasileiros na construção e nos rumos desta nação.
Acho
que devemos estar inteirados das medidas que o novo governo, ainda que
interino, tem tomado para, pelo menos suavizar, a grave crise que o país
atravessa. É preciso reforma partidária, reforma da previdência, é preciso
reformas econômicas, e muitas outras reformas se fazem necessária em nosso
país. Mas, todas essas medidas são apenas consequências. Penso que devemos ir à
raiz do problema que é tal da nociva corrupção que rouba, em um aspecto prático,
o dinheiro dos nossos cofres públicos, e simbolicamente, rouba nossos sonhos e
nossas esperanças de um futuro melhor.
Quando
nos conscientizarmos de que a corrupção é nosso maior atraso, aquela ferrugem
que faz enferrujar os vagões de nossa locomotiva, então essa conscientização
nos fará mudar o rumo de nossa sociedade, alterar o seu funcionamento e sua
estrutura.
Seguindo este raciocínio, pensemos: Quem
está corrompido: Os políticos que ocupam as nossas casas legislativas, ou a
parcela da sociedade que os elege é
quem está corrompida?
Provoquei
vocês, eu sei, mas, ao provocá-los, eu também me provoco.
Nossas
casas legislativas, não falo apenas de Brasília, mas de todo o território nacional,
estão repletas de bandidos, ladrões, corruptos, e quem sabe, até, assassinos. Exagero
ao dizer isso? Será que exgaro mesmo? Penso que não, basta olhar a nossa
representação nacional posta na Câmara e no Senado. O que mais tem nessas duas
casas legislativas são políticos denunciados, investigados, ou réus, em algum
caso de corrupção, poucos são os que fogem a essa regra.
Vocês
já pararam para pensar em quão grave isso é? Que grave crise ética atravesa nosso
país?
Esses
políticos que lá estão — e sendo repetitivo, pois já disse isso aqui nesse
blog, se não com as mesmas palavras, mas com o mesmo significado — não caíram
lá de paraquedas. Nem muito menos são penetras numa festa para a qual não foram
convidados. Ao contrário, eles receberam, como diz o ditado popular “de mão
beijada”, um mandato popular, legitimado através da arma mais poderosa que a
democracia pode ter, qual seja, o voto.
Você
colocaria uma arma na mão de seu inimigo? Quais os motivos que o levariam a
fazer essa tolice? Ignorância?! Masoquismo?!
Pois
é isso mesmo o que acontece quando você entrega os destinos do país na mãos de
um político corrupto. O eleitor brasileiro, não sei por ignorãncia, não sei se
por masoquismo, por inércia, ou apatia, tem servido de agulha para muita linha
ordinária.
Ainda
se fosse em tempos idos, nos quais não havia tão grande meios de acesso á
informação, eu compreenderia, mas hoje há gama de recursos através dos quais
uma pessoa pode se manter informado, basta querer. Então, antes de jogar
merecidas pedras em nossos políticos, façamos estas reflexões, e veremos que
grande parte da culpa pelo país está do jeito que está, recai sobre cada um de
nós, eleitores e eleitoras brasileiras, alguns com mais culpa, alguns com
menos, mas não fujamos as nossas responsabilidades como cidadão e cidadã
brasileiros.
Já que falei de agulha servindo a muita linha
ordinária, deixo com vocês um conto machadiano, chamado, Um Apólogo, para que vocês aprofundem as reflexões sobre o que
acabo de escrever. E espero que
você pense muito bem antes de servir de agulha para linha ordinária.
Um Apólogo
Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um
novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda
cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê?
Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei
sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é
alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual
tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos
e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que
os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que
coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo
o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço
e mando...
— Também os batedores vão adiante do
imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que
você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira
chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma
baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a
costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na
agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano
adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como
os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no
que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos
dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando.
Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que
ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio
na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no
pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte.
Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou
esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa
vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da
bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando,
abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao
baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é
que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha
da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas
um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em
abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na
caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me
espetam, fico.
Contei esta história a um professor de
melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a
muita linha ordinária!
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