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No balanço do samba rural paulista
Posted by Cottidianos
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04:16
Sexta-feira, 13 de
dezembro
Entrevista Roberto Boni
"Muita coisa já ficou no passado. É necessário haver um trabalho de resgate"
Dá uma olhada no tempo
quando sai de casa, na tarde de sábado, dia 30 de novembro.
Sabia que ia cair o maior temporal, mesmo
assim, não levei comigo o guarda-chuva. Resultado, no meio do caminho, caiu um
forte temporal e eu tive que parar em uma lojinha e comprar um guarda chuva. Ia à uma feira, em uma antiga estação de trem.
Como assim? Feira numa estação de trem?!! Calma, já explico. É que o mês de
novembro é dedicado as comemorações acerca do tema da Consciência Negra. O
CIS-Guanabara (Centro Cultural de Integração e Inclusão Social), uma
instituição vinculada e mantida pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos
Comunitários, da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), também promoveu
as suas comemorações dedicadas a esse tema. No dia 30, como já vos disse, fui a
uma feira cultural que por lá acontecia. Tinha muita coisa boa e muita gente ótima.
Diversos artistas apresentavam suas músicas, danças, exposições, comidas e
roupas, enfim, temas relacionados a universo afro. Ah, voltando ao
CIS-Guanabara: esse centro artístico e cultural é um espaço público tombado
pelo patrimônio histórico e cultural da cidade de Campinas. Antigamente, o
local era uma estação de trem e, até bem pouco tempo, quem dominava a área era
um imenso matagal. Enfim, a UNICAMP recuperou o espaço e, hoje, quem domina o
local é arte e a cultura. Melhor assim, não acham? Havia, na feira, umas baianas vendendo cheirosos
e apetitosos acarajés. Confesso que não resisti... Tive que provar um... Que delícia!
A feira também era um
momento especial, pois, naquele dia, o CIS-Guanabara inaugurava, em uma das
salas do prédio, um espaço destinado à pesquisa de assuntos relacionados ao
tema da cultura negra. De repente, eu que havia ido a Feira Cultural, ver dança
e música, me vi em meio a uma roda de debates, junto com alunos e professores
do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp - criado em 2012 para aprofundar o
estudo e o debate que envolve a luta contra o racismo. Pode-se dizer que era um
momento histórico. Pretendo dedicar outros textos a respeito do CIS-Guanabara e a respeito do trabalho desses jovens alunos
da Unicamp, em outras postagens.
Durante a realização da
feira, fiz uma entrevista com Roberto Boni, do Grupo Saracura. O Grupo Saracura
é um grupo que se destina a recuperar o samba que se fazia, antigamente, pelo
interior de São Paulo. É um tipo de samba ao qual a mídia, infelizmente, não dá
destaque, mas que nem por isso, deixa de ser belo e envolvente. O samba rural
paulista é daquelas músicas que tem cheiro de terra molhada pela chuva fina e
insistente. Assim diz o grande escritor, Mário de Andrade, a respeito desse
estilo de música: “Reúne-se um
grupo de indivíduos, na enorme maioria negros e seus descendentes, pra dançarem
o samba. Freqüentemente esse ajuntamento mantém uma noção de coletividade,
quero dizer, forma realmente um grupo, um rancho, um cordão, uma associação
enfim, cuja entidade é definida pela escolha ou imposição dum chefe, o
dono-do-samba. Este chefe é quem toma determinações gerais e manda em todos.
Manda sem muita força, obedecido sem muita obrigação. Creio que a sua
autoridade é mais ou menos equiparável à dos tuxáuas ameríndios, que só se
mantém legítima nas guerras e grandes ocasiões em que periclitarem de qualquer
forma, é certo. Mas, à feição da autoridade mais ou menos relaxada dos tuxáuas,
nenhuma vez pude sentir a autoridade real destes donos-dos-sambas. O grupo,
formado de indivíduos de ambos os sexos, tem seus instrumentos. Instrumentos
sistematicamente de percussão, em que o bumbo domina visivelmente. A sua
colocação sempre central na fila dos instrumentistas bem como por ser da
decisão dele o início de cada dança (além do seu valor financeiro) lhe indicam
francamente a primazia entre os instrumentos. Primazia que se estende ao seu
tocador”.
Após a apresentação do grupo Saracura, fui conversar com Roberto Boni e
apresento, agora, a entrevista para vocês.
José
Flávio – Roberto, fale
um pouco de seu grupo, o Grupo Saracura.
Roberto
Boni
– O grupo Saracura é um grupo que nasceu
a partir de um grupo do qual eu já fazia parte há mais de vinte anos. Fundado
junto com Raquel Trindade, o grupo existe ainda hoje, mas atualmente desenvolve
um trabalho mais específico falando de samba paulista. Então a gente começou a
pesquisar... No Urucum, a gente já conhecia o samba rural paulista, então
comecei a pesquisar a questão do samba do interior de São Paulo, de Piracicaba,
de Pirapora, até mesmo de São Paulo, ali no Bexiga, na Barra Funda, a gente
percebeu que a influência do interior é muito forte, até nos encontros
religiosos na cidade de Pipapora do Bom Jesus, onde o pessoal fazia as
romarias, iam pagar promessas. Então tinha sempre os batuques lá também. A
gente começou a levantar as composições de compositores como Geraldo Filme, do
Toniquinho Batuqueiro, Zeca da Casaverde, Henricão e vários outros
compositores. E a gente compõe também. A gente se preocupa em falar de um samba
que não é lembrado pela mídia. Poucas pessoas, quando fala de samba, lembra de
São Paulo, geralmente, falam do Rio de Janeiro, da Bahia. Samba tem no Brasil
inteiro, cada um de uma forma, cada um com seu sotaque. E esse é o samba que
veio da roça, um samba mais caipira, um samba mais do interior, um samba que é de
um lugar que não tem a leveza da praia, ao contrário, tem muito trabalho. Então
as músicas estão sempre ligadas ao trabalho, à religiosidade. É um samba mais
lamentoso, tem uma cadência diferenciada, mas é o samba do Brasil e representa
também a nossa região. A gente tá querendo divulgar mais esse trabalho para
mostrar o que a gente sabe fazer, a nossa identidade, mostrar o negro do
interior de Campinas, e mostrar esse lado do samba que não tem acesso à mídia.
A gente não está preocupado em correr atrás da mídia. A gente quer mostrar para
as pessoas, e quanto mais pessoas a gente puder mostrar... Esse samba é nosso e tem que ser valorizado,
prestigiado e resgatado, né (não é)?
José
Flávio - Qual a
diferença entre o samba paulista e o samba carioca?
Roberto
Boni
- O samba paulista... Ele não nasceu nas escolas de samba. Ele até foi para os
cordões, quando surgiram os cordões, o entrudos portugueses, mas o samba não
tava tão ligado a praia, ao carnaval, enfim, era um samba... Era tipo uma
música de trabalho. Enquanto trabalhava, enquanto estava colhendo laranja,
colhendo cana-de-açúcar, enquanto estava fazendo alguma coisa na cozinha, ficava
cantando, lembrando de África. Então, por isso que eu falo, é um samba mais
lamentoso. Se fosse nos Estados Unidos, seria um Blues. É um samba mais
cadenciado. Então é essa a diferença. Mas também as escolas de samba, antes de sofrer
a influência da mídia, das rádios e da TV, o samba... As escolas de samba de
São Paulo tinham uns desfiles bonitos, como tem ainda hoje, cada vez mais, essa
beleza plástica, porém ele perdeu um pouco da sua... Do seu andamento mesmo, da
sua cadência, do seu tempero, né (não é)? Hoje, é um samba mais corrido, um
samba mais de competição. Tem que cumprir o tempo porque o jurado tá
observando, então tem tudo isso. No Rio de Janeiro também é assim, mas o samba
de São Paulo tinha menos esse compromisso com o espetáculo, o compromisso era
mais com o sentimento. Acho que a diferença entre o samba paulista e o samba
carioca tá (está) aí: um é da roça e
outro é da praia, do litoral. Então essa questão meteorológica, climática,
influência, né (não é)?
José
Flávio - O samba
paulista atual tende a se aproximar mais do samba do Rio?
Roberto
Boni- A tendência é globalização, a
tendência é todo mundo fazer igual. Não vou dizer igual ao samba carioca que
também suas qualidades, tem seus grandes compositores. A gente não pode
esquecer de um Candeia, de um Carlos Cachaça, de um Mano Décio da Viola, de vários compositores
que não me vem a memória agora. Mas eu digo que a mídia faz um tipo de produto
e quer que os sambistas façam tudo igual
ao que eles querem, igual ao que o mercado dita. Hoje, eu diria, que até o
samba do Rio de Janeiro está descaracterizado, assim como também o samba da
Bahia já perdeu muita coisa da raiz e sofreu a influência de outras culturas de
fora do país, ou influência de outros instrumentos. É a questão da demanda do
mercado. Então muita coisa já ficou no passado. É necessário haver um trabalho
de resgate, que se converse com os mais velhos, que se pesquise mais a
tradição, para poder, até dar uma melhor qualidade tecnológica... Com a
qualidade tecnológica que nós temos hoje, seria muito bom aplicar essa
tecnologia ao currículo o samba do passado, mas preservando a memória,
preservando sua qualidade especial, que é o sentimento do povo regional.
José
Flávio - O grupo é aqui de Campinas mesmo?
Roberto
Boni
- Nós somos de Campinas, tentamos mostrar cada vez mais nosso trabalho. A gente
tem um trabalho desenvolvido com harmonia, com cavaquinho, com violão, mas como
os integrantes também tocam na noite, a gente faz essa levada do samba mais de
batuque, que é natural, pois antigamente o samba não tinha a harmonia das
cordas, que também é influência do europeu.
José
Flávio - Eu
agradeço a entrevista...
Roberto
Boni - Eu é que agradeço a
oportunidade de mostrar o nosso trabalho. Divulgue isso que a gente tá falando para
muita gente, porque isso é nossa alegria, é saber que isso vai para muitos
ouvidos e que essa entrevista influencie as pessoas a prestar atenção ao que é
nosso, que é riqueza cultural de nossa terra. Como Plínio Marcos falou: “Um
povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas,
jamais será um povo livre.
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