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Clara Nunes: Uma guerreira no reino da MPB ( I Parte)
Posted by Cottidianos
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20:26
Quinta-feira,
19 de dezembro
Rio de Janeiro.
“Quando
eu canto é para aliviar meu pranto
E
o pranto de quem já tanto sofreu
Quando
eu canto
Estou
sentindo a luz de um santo
Estou
ajoelhando aos pés de Deus
Canto
para anunciar o dia, canto para amenizar a noite
Canto
pra denunciar o açoite, canto também contra a tirania
Canto
porque numa melodia, acendo no coração do povo
A
esperança de um mundo novo e a luta para se viver em paz”!
(Minha Missão - Letra: João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro
Interpretação: Clara Nunes)
Imagem http://www.ebc.com.br/cultura/galeria/imagem/2013/04/clara-nunes-0 |
Rio de Janeiro.
Sábado, 05 de março de 1983.
Na
sala de cirurgia nº 03, da Clinica São
Vicente, localizada na Zona Sul, e uma das mais conceituadas da cidade, a
cirurgia para a retirada de varizes da ilustre paciente transcorria
normalmente. O cantor e deputado Aguinaldo Timóteo havia se submetido a uma
pequena cirurgia, uma semana antes, e esse era assunto da conversa entre a
equipe médica, que, aliás, era de alto nível. Na parede da sala o relógio
marcava 12h15. Duas horas e dez minutos haviam se passado, quando o cirurgião,
o Dr. Antonio Vieira de Mello, assustado, chama atenção para um fato estranho:
“O sangue da paciente está com uma coloração diferente!” Imediatamente, pede ao
anestesista, Dr. Américo Salvador Autran Filho: “Tire a pressão arterial, com
urgência!”. Lívido, o anestesista constata um fato estarrecedor: “A pressão
arterial está em queda. Veia femural sem pulsação. O coração da paciente está
parado”. Seguem-se minutos de intensa agitação na sala. “Traz o desfribilador,
rápido!” “Isso dá mais um choque no tórax da paciente” “O coração está
reagindo!” A equipe enfim, respira aliviada. O cirurgião resolve então testar
os sinais vitais daquela que estava deitada na mesa de cirurgia. Nada. Tentou
mais uma vez sem sucesso. Os sinais vitais não funcionavam. A paciente havia
entrado em coma. Era Clara Nunes, uma das mais belas vozes da música popular
brasileira. Enquanto seu corpo era levado ao CTI da clínica, seu espírito
viajava pelo tempo.
***
Era
1982. Sentada na varanda de sua bela e arborizada casa no Jardim Botânico,
bairro de classe alta e média-alta, da Zona Sul carioca, lia com satisfação,
uma matéria sobre o próprio trabalho:
Culto Africano
Clara foge da rotina com uma boa ideia
Há
dois anos a cantora mineira Clara Nunes adota uma inteligente linha de
trabalho. Mesmo navegando com maior frequência pelo samba carioca, que a
consagrou como uma das grandes vendedoras de discos do país no meio dos anos
70, ela sempre consegue fugir a rotina: dona de uma voz cristalina e versátil
empenha-se em fazer uma espécie de mapeamento da música brasileira, visitando
gêneros diversos e evitando o fantasma da repetição. Em seu novo LP, NAÇÃO, Clara Nunes não abandonou essa
trilha mas decidiu promover uma homenagem às raízes negras da música
brasileira. Gravou lado a lado um ijexá, ritmo dos blocos afoxé do carnaval da
Bahia em Ijexá, o samba exaltação Serrinha, e um samba de roda, em Vapor de São Francisco, que ganhou um
singular arranjo sincopado. Escolheu letras que registram e festejam a
negritude brasileira e moldou na voz uma entonação de reverência para pedir a
benção de Mãe África.
...
A
Proposta de Nação é corajosa. Trata-se da arma escolhida por Clara Nunes para
fazer frente à pior crise de comercialização vivida pelo samba desde que saiu
do folclore para as paradas de sucessos, em meados dos anos 70, ...
OKKY
DE SOUZA
VEJA,
13 DE OUTUBRO, 1982
***
Imagem: http://caixadajackie.blogspot.com.br/2013/04/clara-nunes-e-sereia.html |
Fechou
a revista. Não conseguiu disfarçar certo ar de felicidade. Era uma cantora
consagrada pela crítica e pelo público. Uma das maiores vendedoras de discos da
Odeon. Ajudara a derrubar um mito: o de que mulher não vendia disco. Antes dela
só as vozes masculinas tinham vez no mercado fonográfico. Cantoras?! Ganhavam flores,
coroas, aplausos. E só. Porém, o caminho até a fama não havia sido fácil.
Tivera que batalhar, e muito, por cada espaço conquistado. Atravessara momentos
difíceis, porém a fé em Deus havia ajudado a superá-los. Nascera em uma família
católica que depois se converteu ao kardecismo. Com o decorrer do tempo
aprendeu a conviver com os diferentes modos de elevar o espírito. Quando chegou
ao Rio, uma amiga a levou a um centro de Umbanda e ela logo se apaixonou por
essa religião. Transitava com tranquilidade pelo catolicismo, pelo kardecismo,
pela umbanda e pelo candomblé. Os amigos falavam: “Clarinha, você é o
ecumenismo em pessoa”. Realmente, não dispensava uma boa oração. Herança de
família. “Como Deus pode ser propriedade de um grupo religioso se ele é totalidade,
universo?”. Questionava.
Chegara
ao Rio de Janeiro em 1965. Vinha cumprir um contrato com a gravadora Odeon.
Havia vencido a etapa mineira do concurso A
Voz de Ouro ABC. A grande final havia sido em São Paulo. Na ocasião, cantou
“Só Adeus”, de Jair Amorim e Evaldo
Gouveia. Conseguiu a terceira colocação. O resultado do concurso, comemorado
com festa digna de uma vencedora, abria-lhe uma porta importante; como prêmio
ganhava o direito de gravar um compacto pela Odeon com contrato assinado. Foi
com grande alegria que, em 21 de Julho de 1965, entrava em estúdio para gravar
o seu primeiro compacto simples, com as músicas Amor quando é amor e Ai de
quem.
Imagem: http://clarasabia.blogspot.com.br/ |
Em
1966, cheia de felicidade e confiança, gravou o primeiro Álbum A voz adorável de Clara Nunes. O
trabalho resultou num disco cheio de boleros açucarados. Cantando aquelas
músicas sentia-se um verdadeiro Altemar Dutra de saias. O álbum passou
praticamente despercebido. Ficou um pouco triste com o resultado do disco.
Lembrou a si mesma que uma mineira guerreira não deixava a peteca cair. Era
preciso levantar a cabeça. Flertou com a Jovem Guarda, sem muito sucesso.
Enveredou pela trilha dos festivais. Obteve algum êxito com a tentativa. Era um
modo de não sair de cena por completo. O segundo álbum, Você passa eu acho graça, alcançou certa projeção, porém, nada do
que se pudesse dizer: “Nossa, que sucesso!” Em 1969, outro fracasso. O Álbum A beleza que canta, vendeu apenas 5.500
cópias. Um sinal vermelho fora acendido. A Odeon estava insatisfeita com os
resultados. Ela também. O sucesso a que tanto almejava parecia-lhe escorrer por
entre os dedos. Estaria ela destinada a passar pelo universo da música como uma
estrela sem brilho, dessas que gravam um ou dois discos e depois ninguém mais
se lembra do nome delas? Algo precisava ser feito com urgência.
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