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Gestão do Samba - I parte

Posted by Cottidianos on 19:34
Sexta-feira, 14 de março

Imagem: http://campos24horas.com.br/portal/unidos-da-tijuca-e-campea-do-carnaval-2014/

Porque o Brasil do carnaval funciona e o Brasil das gestões públicas deixa muito a desejar? A resposta é simples: Para uma escola de samba se tornar campeã, seus dirigentes assumem um trabalho eficiente que tem os mesmos ingredientes das gestões empresariais: Planejamento, estratégia, trabalho em equipe, organização, criatividade e disciplina. Para fazer os adereços, recorre-se a um especialista em adereços, para fazer o samba-enredo da escola, busca-se um profissional que realmente entenda de samba, para tocar bateria procuram-se pessoas que dominem os instrumentos, e assim por diante. Esse empenho e garra com que os integrantes da escola se entregam a esse trabalho, a essa gostosa e séria brincadeira que é o carnaval, é que faz com que nos deslumbremos com espetáculos maravilhosos e de grande beleza nos desfiles das escolas de samba.

Só para citar um caso do Brasil que não segue o padrão do Brasil do carnaval. No final de 2005, a advogada paulistana Denise Maria Ayres de Abreu, foi indicada para exercer o cargo de Diretora do Departamento Nacional de Aviação Civil (ANAC). Na época, o jornal O Estado de São Paulo investigou o assunto e descobriu que, na fase de nomeação, a advogada apresentou um currículo profissional que não demonstrava nenhuma experiência para administrar o setor aéreo. Segundo apurou o jornal, nas quatro páginas do currículo, aprovado em 15 de dezembro de 2005, pela Comissão de Infra-Estrutura do Senado, as únicas referências consistentes são as seguintes: Ensino médio no Colégio Bandeirantes (1976-1978) e o curso de direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1979-1983). Ainda segundo o jornal O Estado de São Paulo, depois dessas informações Denise “recheia” o currículo com vagas e supostas experiências, sem, contudo, apresentar evidências dessas experiências. Quando a equipe de reportagem mostrou o currículo dela aos senadores, alguns ficaram constrangidos.  Se a ANAC fosse uma Escola de Samba, Denise de Abreu jamais teria sido escolhida para ser diretora.

Para falar de gestão do samba, apresento a vocês um excelente artigo escrito por Marcelo Chiavone Pontes, especialista na área de gestão empresarial. Marcelo é doutor em Administração pela Universidade de São Paulo (USP). Ainda no artigo, dois outros especialistas no assunto, falam sobre a questão da receita das escolas, são eles; João Luiz de Figueiredo e Marcelo Borges. O artigo foi escrito, com exclusividade para a revista HSM MANAGEMENT e publicado na edição da revista de Maio/Junho de 2012, com o título A Gestão do Samba. O grupo HSM é uma referência em conhecimento de gestão e, com seriedade e profissionalismo, tem inspirado profissionais de diversas áreas. Agradeço a direção da revista, na pessoa seu Coordenador de Produção, Alexandre Braga, pela oportunidade de publicar no blog Cottidianos, esse texto precioso. O endereço eletrônico da revista é: hsm.com.br

Publico o texto na integra, divido em duas partes.

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Imagem: http://carnaval.uol.com.br/noticias/riodejaneiro/2009/02/23/ult5681u266.jhtm



A gestão do samba


O Carnaval é, sem dúvida, uma das maiores manifestações da cultura brasileira. Sua grandiosidade transformou-o não apenas em um dos mais importantes eventos do País, mas também em responsável por parte significativa da “marca Brasil” no mundo. O “País do Carnaval” é, na verdade, o país de vários carnavais, pois os festejos de Momo são comemorados de maneiras diferentes pelo território nacional –o Carnaval de rua de Olinda e Recife não é exatamente igual aos desfiles de trios elétricos de Salvador e se parece muito pouco com os desfiles das escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro, que, claramente, são os maiores ícones dessa festa. Descobri que a montagem de um desfile de Carnaval, na verdade, é consequência de um trabalho contínuo, que, entre vários fatores fundamentais, exige: • Planejamento. • Estratégia. • Trabalho em equipe. • Organização. • Criatividade. • Disciplina

Que não se engane quem olha de longe: só com esses elementos as escolas de samba alcançam o resultado esperado – com a qualidade esperada. Então, o Carnaval tem a ver com gestão de empresas ou não? Pode guardar lições para os gestores?

Evolução

As festas e os ritos de integração social, com pessoas mascaradas e fantasiadas, fazem parte da história humana desde a Grécia antiga, em que brincadeiras aparentemente desordeiras serviam para reafirmar a ordem dos grupos da sociedade. No Egito acontecia a famosa festa de Ísis, deusa invocada para superar as tragédias da vida. Na Roma dos imperadores existiam as saturnais, festas em que se cultuava o deus Saturno e eram marcadas pelos exageros e inversões das regras sociais. São dessa época os primeiros relatos de festas populares associando pessoas mascaradas, fantasias e desfiles em forma de procissão.

A festa carnavalesca como é conhecida atualmente surgiu em Paris, durante a Revolução Francesa, com grandes bailes e exibição de alegorias luxuosas, além do desfile de grupos pelas ruas disputando a atenção das pessoas. Era indiretamente ligada à tradição católica medieval – acontecia sete domingos antes da Páscoa, quando os católicos dão adeus à carne (“carne vale”, em latim) para reencontrá-la quando celebram a ressurreição de Cristo –, mas a burguesia impôs uma nova maneira de festejo, percebendo o alto potencial de lucro e prazer que a ocasião proporcionava.

O Carnaval chegou ao Brasil por meio dos colonizadores portugueses, que trouxeram o entrudo, uma festa em que baldes de água, cinzas e líquidos imundos eram atirados sobre quem passasse por perto. Essa diversão foi praticada até a chegada da família real, quando os costumes carnavalescos começaram a ficar mais sofisticados com a realização de festas semelhantes aos bailes franceses e com passeios da elite social pelas ruas da cidade exibindo fantasias de luxo.

Essa nova forma de brincar o Carnaval foi contagiante e, assim, nasceram os primeiros grupos que desfilavam pelas ruas do Rio de Janeiro, dando origem às atuais escolas de samba.
As escolas de samba

Elas surgiram no Rio de Janeiro – a primeira delas foi a Deixa Falar, fundada em 1928. O termo “escola” é fundamental para entendermos a cultura existente nessas agremiações. Seus integrantes se reuniam nos bairros e se intitulavam “escola” porque consideravam que ali o aprendizado era compartilhado. A cultura das comunidades desses bairros está necessariamente presente nas escolas de samba e, mesmo com o passar dos anos, crenças e valores ainda são identificados e têm grande importância – as tradições são mantidas, respeitadas e mostradas durante os desfiles.

Podemos dizer que a escola de samba é uma grande fábrica, cujos produtos finais são as emoções. Por trás de um desfile existe toda uma estrutura complexa, semelhante a uma linha de produção, cujo objetivo final é entregar um show de emoção, encantamento e alegria para seus diferentes “clientes”. Para isso, é feito um trabalho durante o ano inteiro, gerando empregos, criando processos, desenvolvendo a criatividade, gerenciando verbas e tempo, e administrando uma enorme quantidade de pessoas, com culturas, formações, objetivos e responsabilidades bastante diferentes.

Entre vários aspectos em que uma escola de samba pode ser comparada com uma empresa – e oferecer-lhe lições –, vale destacar alguns que parecem especiais:

a) Satisfação do cliente.

Como qualquer empresa, uma escola de samba também tem diferentes públicos, claramente identificados: seu produto principal, a emoção, deve ser entregue não apenas para o folião que pagou caro para desfilar nas escolas do grupo especial de São Paulo ou Rio – o preço médio de uma fantasia é cerca de um salário mínimo –, mas também para as pessoas que pagaram ingresso no sambódromo, com a expectativa de ver o maior espetáculo teatral da Terra. E, não menos importante, há o público que fica em casa, assistindo pela televisão, gerando audiência e, como consequência, garantindo a verba de transmissão para o próximo ano.

A satisfação desses clientes parece estar sendo muito benfeita: apenas como exemplo, em 2012, todas as escolas desfilaram praticamente com sua capacidade máxima de foliões, o que significa que todas as fantasias foram vendidas, para turistas do exterior, inclusive. Os sambódromos de São Paulo e Rio estavam lotados, e a transmissão pela TV foi vista, só no Brasil, por mais de 4 milhões de pessoas. Porém o mais interessante é ver que a maioria das pessoas que desfilam, ou seja, um dos “clientes” da escola, sai da avenida satisfeita, recomendando a experiência para os amigos e familiares e, em geral, voltando no ano seguinte. Isso é exemplo claro de manutenção de cliente e de comunicação boca a boca em sua essência.

b) Generosidade.

Um desfile de escola de samba não é formado apenas pelos destaques, celebridades e carros alegóricos cada vez mais deslumbrantes. É sempre bom lembrar que, para que um carro alegórico se movimente na avenida, existem várias pessoas trabalhando dentro dele – pessoas que não veem o desfile nem são vistas pela audiência, cuja função é controlar o movimento e os efeitos visuais, e também ajudar alguns passistas no desenvolvimento das coreografias preparadas para aquele carro. Outro exemplo: poucos sabem que uma das funções existentes durante o desfile é o “apoio de destaque”, ou seja, pessoas que vão para a avenida vestindo apenas calça e camiseta, com o objetivo de dar suporte para que os destaques da escola brilhem. É lugar-comum falar da importância do trabalho em equipe em qualquer organização, e é difícil imaginar um trabalho em equipe com bons resultados sem um mínimo de generosidade entre seus membros.


Imagem: http://fotos.noticias.bol.uol.com.br/carnaval/2012/02/25/desfile-das-campeas.htm


c) Gestão dos detalhes.

Uma escola de samba do grupo especial desfila com cerca de 4 mil integrantes, ou seja, tem o porte de uma grande empresa. No entanto, existe aqui uma característica única: a escola de samba se prepara o ano inteiro e tem apenas pouco mais de uma hora para apresentar seu trabalho. Para colocar na avenida desfiles maravilhosos, são necessários meses de trabalho para escolher o enredo, definir o samba, ensaiar a bateria, criar fantasias, adereços e carros alegóricos, coreografar passistas etc. Qualquer erro cometido pode ser fatal na hora da apuração, e não existe uma segunda oportunidade. Para aumentar ainda mais o desafio, devemos lembrar que um desfile é o único espetáculo artístico do mundo em que não existe ensaio geral. A disputa entre as escolas é cada vez mais concorrida. Nos últimos anos, tanto no Rio como em São Paulo, a escola campeã tinha uma diferença de pontos em relação à segunda colocada inferior a um ponto. Exatamente por isso é fundamental que tudo seja planejado. Quem observar uma fantasia de perto verá a quantidade enorme de pequenos detalhes que ali estão presentes. Sozinhas, essas particularidades provavelmente passariam despercebidas; no conjunto, porém, são o que faz uma escola ter um desempenho melhor ou pior –não porque esses detalhes fiquem visíveis, mas porque eles deixam claro para toda a escola a importância de se preocupar cuidadosamente com cada ponto do desfile.

d) Senso de propriedade.

Uma das frases que se ouvem com alguma frequência nas empresas é que os funcionários devem “vestir a camisa da organização”. Na escola de samba isso é feito com naturalidade, pois existe um enorme senso de propriedade, e fica claro quando ouvimos algum integrante comentar: “Hoje tem ensaio na minha escola”. Walt Disney dizia que “você pode sonhar, projetar, criar e construir o lugar mais maravilhoso do mundo, mas são necessárias pessoas para tornar o sonho realidade”.

Essa ideia é totalmente pertinente ao universo das escolas de samba: de nada adiantam carros alegóricos com milhares de efeitos especiais e fantasias luxuosas, porque o que efetivamente ganha o Carnaval são as pessoas. Prova disso está nos quesitos de julgamento: harmonia, conjunto, evolução, comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira, bateria etc. Em suma, todos quesitos que dependem fundamentalmente de pessoas. Daí a importância dos símbolos, histórias, ritos e rituais. Quando vemos integrantes da escola abrindo caminho para a velha guarda, numa atitude de agradecimento a quem ajudou a construir aquilo, quando notamos o respeito dedicado à ala das baianas, que abençoam a escola trazendo seu axé, ou quando assistimos às pessoas reverenciando a bandeira da escola, beijando-a e colocando-a na testa para absorver sua energia positiva, podemos ter a certeza de que ali há pessoas absolutamente comprometidas.

e) Trabalho em equipe.

Se o trabalho em equipe é o aspecto mais óbvio da comparação da gestão de uma escola de samba com a de uma corporação, ele merece uma reflexão mais cuidadosa, pois é o eixo fundamental que faz com que as escolas de samba consigam desenvolver seu trabalho. Em primeiro lugar, há que se fazer uma distinção: grupo não éequipe. Grupo é apenas um monte de pessoas trabalhando juntas. Equipe é muito mais que isso; é um monte de pessoas trabalhando juntas, de forma integrada, comprometida, com o mesmo objetivo.


Em uma escola de samba, todos querem desfilar bem e ganhar o Carnaval. É por isso que, na hora do desfile, ninguém precisa pedir para o outro caprichar e dar o melhor de si, porque isso é o mínimo que se espera. O engajamento com a escola é, por si só, suficiente para que as pessoas façam seu melhor.

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