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As aventuras e reflexões de Raul Seixas na cidade das estrelas
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Sexta-feira,
28 de março
“Eu prefiro ser / Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada
sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada
sobre tudo
Sobre o que é o amor / Sobre o que eu
nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela /Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio / Amanhã lhe tenho
amor
Lhe tenho amor / Lhe tenho horror
Lhe faço amor / Eu sou um ator
É chato chegar / A um objetivo num
instante
Eu quero viver / Nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada
sobre tudo”.
(Trecho
da letra da música “Metamorfose
ambulante”, de Raul Seixas)
Raul Seixas e Paulo Coelho, uma das parcerias mais famosas da Música Popular Brasileira |
Maluco beleza,
irreverente, contestador, metamorfose ambulante, Raul Seixas era um homem à
frente de seu tempo. Cantor e compositor, um pioneiro do rock no Brasil. Com o,
hoje famoso escritor, Paulo Coelho, escreveu músicas de cunho filosófico, e que se tornaram clássicos da MPB, como Eu nasci há dez mil anos atrás, Sociedade Alternativa, Medo da
Chuva, Tente Outra Vez, Gita, Al Capone, só para citar algumas. Em 1974, quando Paulo
Coelho e Raul Seixas criaram a Sociedade Alternativa, o Brasil vivia tempos de
ditadura militar e o universo artístico era fortemente censurado. A música, Sociedade Alternativa, apresentava um
novo modelo de sociedade e os militares logo pensaram que se tratava de ato de
rebeldia contra o governo. Raul e Paulo foram torturados e exilados nos Estados
Unidos. Por ironia, outras canções os trouxeram novamente a terra natal. O
Albúm, Gita, gravado poucos meses
antes do exilio, começou a fazer um sucesso tão grande, que os militares foram
forçados a trazer os dois ao Brasil.
O
roqueiro baiano passou pela terra como um cometa brilhante. Deixou um legado
que até hoje é preservado pelos seus admiradores e fã-clubes espalhados por
todo o Brasil. Nesse texto, escrito em primeira pessoa, deixo Raul se dizer. Em
algum ponto, aquele que conhece seu pensamento e sua obra poderá questionar:
“mas Raul não pensava assim”. E a metamorfose ambulante? E o estar aberto a
conceitos novos? No mais, é um texto afinado com o pensamento de Raul e com
muitas alusões à sua obra.
***
Imagem: http://rollingstone.uol.com.br/blog/musica-popular-brasileira/raul-seixas-nascia-ha-67-anos-atras |
Meu
nome é Raul. Raul Santos Seixas. Nasci em Salvador, Bahia, em 28 de Junho de
1945. Deixa eu me dizer de outra forma, que essas falas muito certinhas não
fazem muito meu estilo não. Vocês estão cansados de saber que, enquanto vocês
se esforçam para ser um sujeito normal, eu, por outro lado, vou aprendendo a
ser louco, um maluco total, na loucura real. Controlando minha maluquez,
misturada com minha lucidez. Na verdade, “Eu
sou a areia da ampulheta... Cachaceiro mal-amado, o triste-alegre adestrado. Eu
sou a areia da ampulheta. O que ignora a existência de que existem mais
estados, sem idéia que é redondo, o planeta onde vegeta”. Quando nasci? “Nasci há dez mil anos atrás e não tem nada
nesse mundo que eu não saiba demais”. No jogo da vida “prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião
formada sobre tudo, sobre o que é o amor, sobre quem eu nem sei quem sou”.
Meu
lugar agora são os espaços etéreos, as regiões mais distantes do cosmos. Gosto
de admirar a beleza da lua de Júpiter... Os anéis de Saturno... Adoro passear
pelas galáxias distantes. Elas são de rara beleza. Não encontro palavras com as
quais possa construir uma descrição. São jardins de luzes coloridas. Uma das
coisas que já aprendi, e que se constitui num dos meus passatempos favoritos, é
misturar-me ao brilho delas. De vez quando, o moço do disco voador me leva pra
dar uns passeios surreais. É um modo de fugir da rotina.
Fui
chamado aos caminhos da eternidade em 21 de agosto de 1989. Do lado de cá,
encontrei respostas para as questões existenciais que sempre foram motivo de
questionamento para os homens de todos os tempos. Minhas companhias aqui são
selecionadíssimas! Um pessoal bem legal! Tem um jardinzinho bem bacana onde nos
reunimos para bater um papo, chama-se Jardim do Éden. Quando eu chego Ghandi já
está por lá, depois vão chegando Platão, Schopenhauer, Oxalá, Shiva, Krishna,
Jesus Cristo. A conversa vai longe. Entramos eternidade adentro, discutindo a
evolução humana, evolução espiritual, destinos da humanidade e questões desse
tipo.
Tenho
meditado, ultimamente, acerca de algumas das mais belas páginas da filosofia: o
Mito da Caverna, de Platão. É um diálogo metafórico entre os personagens
Sócrates e Glauco. Sócrates pede a Glauco que imagine uma caverna. Dentro dela,
homens que sempre estiveram acorrentados, sem poder se locomover. A única visão
que possuem é a parede em frente à eles. A única iluminação do ambiente vem de
uma fogueira atrás deles. Entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho
ascendente e, ao longo deste, um muro. Ao longo desse muro passam homens
transportando animais e objetos. Uns conversam, outros passam em silêncio. Essa
movimentação provoca sombras na parede à frente dos prisioneiros. Os habitantes
da caverna tomam essas sombras e os sons que vêm do exterior como realidade.
Se
um desses prisioneiros fosse arrastado à força para fora da caverna ficaria, à
princípio, completamente perdido. Sentiria dores pelo corpo devido ao fato de
ter ficado tanto tempo sem movimentar o corpo. A luz do sol o ofuscaria e ele
seria obrigado e desviar o olhar. Não conseguiria fixar diretamente as pessoas
e objetos reais. Seria uma adaptação dolorosa até que ele conseguisse
contemplar as coisas com nitidez. Igualmente doloroso seria o processo inverso,
ou seja, passar da luz às sombras. Acostumados à luz, seus olhos teriam dificuldade
em encarar às sombras. Certamente sofreria com a zombaria de seus antigos
companheiros. Diriam eles: “o mundo lá fora não te fez bem. Te afetou a vista e
ainda embaralhou tuas idéias”. Até fazê-los compreender a realidade, teria um
longo caminho pela frente.
Assim
também é o plano físico. A humanidade enxerga sombras na parede e acredita que
é realidade aquilo que enxerga. Claro, há os que conseguiram subir pelo caminho
ascendente e brilharam. Há também aqueles que se esforçaram por abrir os olhos
de quem estava na caverna e não se deu nada bem. Lembram do filho do dono da
vinha? Pois é, ele esteve aí, há dois mil anos atrás, pregando umas verdades e
o mataram pregado na cruz. Eu hein! “Eu
não sou besta pra tirar onda de herói”...
A
minha história a maioria de vocês já conhece. Cresci menino da classe média
baiana. Freqüentava os melhores clubes de Salvador. Mas o rock veio alterar a
rota do trem quando fui morar perto dos norte-americanos que tinham vindo pra
Bahia por causa da Petrobrás, que havia acabado de se instalar na região. Com a
molecada americana ouvi os primeiros acordes daquele ritmo que modificaria meu
modo de ser. Little Richard, Chuck Berry, Elvis Presley. Era som demais e eu me
deixei navegar. Me envolvi com a coisa de tal forma que, quando vi, eu já
estava fundando um fã clube do Elvis: o Elvis Rock Club. Depois botei a mão na
massa e fundei, junto com outros amigos, o The Phanters, que depois veio a ser
chamar, Os Panteras. O rock era, na época, uma música marginalizada. Era música
tocada em subúrbio, não em teatros e salões. E eu envolvido com essa gente.
Imagina o trabalho que dei para os meus pais! Os Panteras eram a melhor banda
de Salvador, por isso, quando a turma da Jovem Guarda vinha à cidade e
precisava de acompanhamento, era a nós que eles chamavam para acompanhá-los.
Tocamos com Roberto Carlos, Wanderléia, Ed
Wilson, Wanderley Cardoso. Os meus favoritos eram os Jet Black. Até que Jerry
Adriane nos levou para o Rio de Janeiro. Lá gravamos um disco que,
comercialmente, não emplacou. Voltamos pra Salvador. Rapaz, entrei numa
depressão, que não é bom nem falar! Aí conheci um cara que era diretor da CBS,
o Evandro Ribeiro, que se tornou meu amigo em Salvador. Tempos depois esse cara
me faz um convite para voltar ao Rio como produtor fonográfico da gravadora. Voltei
ao Rio de Janeiro, cidade maravilhosa. Porém o emprego burocrático não era a
minha “praia”. Como produtor, ouvia tanta música sem qualidade e letras
medíocres que resolvi gravar meu próprio LP. Aproveitei um descuido do
patrão... E gravei o disco Sociedade da Grã-Ordem Cavernista Apresenta Sessão
das Dez (1971). Os diretores ficaram bravos recolheram o disco da praça e, não
contentes com isso, me demitiram. Fizeram foi uma grande burrada. Fui para a Philips
e entrei lá pela porta da frente. Depois disso me sobrevieram glórias e
fracassos. A maioria dos meus trabalhos é autobiográfico. Neles eu me desnudo.
Digo quem sou. A parceria com Paulo Coelho foi bem importante em minha
carreira.
Uma
das minhas maiores mancadas foi não ter percebido as armadilhas na beira da
estrada. Por exemplo, a dependência ao álcool me trouxe uma pancreatite e, com
ela, vieram dores terríveis, internações em hospitais e outros desconfortos que
vocês nem queiram imaginar. Essa doença, aliás, foi a causa da minha morte. Ó, olha o trem, vem surgindo de trás das
montanhas azuis, olha o trem Ó, olha o trem, vem trazendo de longe as cinzas
do velho aeon.Ó, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem Ó,
é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem. Quem vai chorar, quem
vai sorrir ? Quem vai ficar, quem vai partir” ? Costumo dizer que a
Pancreatite foi o trem que veio me buscar. O abuso das drogas me trouxe muitos
problemas e me fechou muitas portas.
Eu
e Paulo mergulhamos de cabeça na obra do bruxo inglês Aleister Crowley, dentre
ela, eu destaco o Livro da Lei, obra que inspirou a música Sociedade
Alternativa. “Faz o que tu queres pois é
tudo da lei”. Vivi isso com intensidade. Hoje eu sei que a vida é um cheque
em branco, você pode preenchê-lo do jeito que você quiser, mas... A lei de
Thelema é uma “faca de dois gumes”: tanto pode elevar o homem como pode também destruí-lo.
Você pode fazer o que quiser, mas não esqueça: tudo há de ter seu preço. E
alguns produtos podem custar muito caro...
Pra
terminar, digo que, algumas vezes, ouço meus fãs dizerem “Poxa porque que o
Raul tinha que ter ido tão cedo. Ao que eu diria: “Quem escapa do Trem 103?
Acho que era “louco demais para ficar mais tempo por aí...”
À
minha família, aos meus fãs, meus amigos, fã-clubes espalhados por todo o
Brasil eu quero agradecer o carinho que até hoje vocês sentem por mim. Obrigado
por preservarem minha memória e minha obra. Daqui de cima vejo o esforço de
vocês e isso me emociona... Tenho que ir agora: o Chefe me chama.
Um
grande abraço a todos! (Especialmente pra você Plininho, meu irmãozinho,
companheiro de traquinagens na meninice).
(Texto de minha
autoria, publicado inicialmente no blog rec2010.blogspot.com)
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