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Quem me navega? É o mar!
Posted by Cottidianos
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00:13
Quarta-feira,
22 de outubro
“Olhou para o
mar que se perdia no horizonte
e verificou quão
só estava agora...
O velho olhou
para o norte
e viu um bando de patos bravos
a delinear-se no
céu sobre o mar.
Depois desapareceu
e tornou a aparecer ao longe.
Na verdade, no
alto mar,
nunca se está completamente só”.
(O Velho e o Mar – Ernest Hemingway)
Digo
ao leitor que sei de muitas coisas, confesso também que, dentre essas muitas coisas
que sei, uma delas é certeza de que “só sei que eu nada sei, mas o fato de
saber disto me coloca em vantagem sobre aqueles que sabem alguma coisa”. Na
verdade, com essa frase — atribuída ao filósofo grego Sócrates, tanto na antiguidade
quando na modernidade — eu revelo a vocês minha própria ignorância. Se
realmente soubesse de alguma coisa não teria ido buscar na antiguidade essa
perola. Porém, se nas fontes antigas se encontra água de excelente qualidade
porque não pegar do balde e ir buscar nelas essas preciosidades, não é mesmo?
Por
me saber ignorante, estou sempre com os ouvidos atentos a ver se aprendo e
apreendo alguma coisa. O ideal a cada um de nós é apreender mais do que
aprender, pois o aprender situa-se
mais ao nível do reter na memória, ou simplesmente, decorar. É o que acontece
com uma receita do bolo predileto, da letra da música preferida. Já o apreender
situa-se em nível mais profundo. Apreender
significa que estamos com as antenas ligadas, antenados com tudo o que nos
rodeia. Captando, percebendo e assimilando as mensagens que nos são transmitidas,
e incorporando-as ao nosso dia a dia, ao
nosso modo de vida.
Procuro
estar atento às mensagens que podem acrescentar algo de positivo ao meu viver.
Ao buscar essas sementes, sei que elas podem ser encontradas na letra de uma
música, na palavra de um amigo, num artigo de jornal ou revista, em um livro, e
assim por diante.
Por
exemplo: domingo passado, 19 de outubro, estava na casa dos amigos Gentil e
Toninha. Saboreávamos um bom churrasco e, entre um copo de cerveja e outro,
ouvíamos boa música brasileira. A trilha sonora era o balanço do samba. Dentre
as tantas músicas tocadas, uma em especial, me chamou atenção. Fiquei ouvindo e
mergulhei naquele mar de palavras, tentando apreender o sentido contido nelas.
Quem disse que filosofia se aprende só nos livros? Pode-se perfeitamente
filosofar ao som de uma música de Paulinho da Viola, um dos filósofos-mestres
do samba. Lembro aqui que Paulinho da Viola, certamente, bebeu nas fontes de
Noel Rosa, poeta, boêmio e filósofo do samba por excelência.
Hermínio Bello de Carvalho (à esquerda) e Paulinho da Viola (à direita) |
A
música era Timoneiro — aquele que
guia o barco e o leva por caminhos seguros em meio ao mar — e eu fui me
deixando embalar pelo contagiante balanço e excelente letra daquele samba. Assim
diz o samba, composto por Hermínio Bello de Carvalho e Paulinho Da Viola,
interpretado por este último:
(Refrão)
Não sou eu quem
me navega
Quem me navega é
o mar
Não sou eu quem
me navega
Quem me navega é
o mar
É ele quem me
carrega
Como nem fosse
levar
É ele quem me
carrega
Como nem fosse
levar
E
quanto mais remo mais rezo
Pra
nunca mais se acabar
Essa
viagem que faz
O
mar em torno do mar
Meu
velho um dia falou
Com
seu jeito de avisar:
-
Olha, o mar não tem cabelos
Que
a gente possa agarrar
(Refrão)
Timoneiro
nunca fui
Que
eu não sou de velejar
O
leme da minha vida
Deus
é quem faz governar
E
quando alguém me pergunta
Como
se faz pra nadar
Explico
que eu não navego
Quem
me navega é o mar
(refrão)
A
rede do meu destino
Parece
a de um pescador
Quando
retorna vazia
Vem
carregada de dor
Vivo
num redemoinho
Deus
bem sabe o que ele faz
A
onda que me carrega
Ela
mesma é quem me traz
Assim
somos nós, navegando no mar da vida. Algumas vezes se faz calmaria e nosso
barquinho navega sossegado. Outras vezes fecha o tempo e as ondas sacodem o barco
para cá e para lá. Nesses momentos de tormenta, ficamos desesperados, mas não
podemos jamais perder a fé, senão o barco vira. A fé deve sempre ser a
fortaleza que sustenta o barco que é nossa vida.
Marilena Chaui |
Mergulhei
nesse mar e lembrei-me de um discurso da professora de filosofia, Marilena
Chauí, o qual ouvi pela primeira vez, no documentário Ética, exibido pela TV Cultura. Assim diz ela:
Nós somos seres passionais. Nós temos
paixões, e as paixões como o amor, o ódio, a cólera, a vingança, a tristeza, a
alegria, a generosidade, elas atuam, agem sobre o nosso caráter, nossa índole,
e produzem resultados terríveis, nos colocam desorientados, na vertigem,
desvairados, dilacerados, sem saber o que fazer.
A imagem que os antigos usavam para
mostrar o que eram as paixões agindo sobre o nosso caráter, sobre o nosso
temperamento, era a de um barquinho, solto no mar durante a tempestade. O
barquinho sobe com as ondas, vai para o fundo da água, é arrastado pelos ventos
para a direita, para a esquerda, fica sem destino, à deriva. É porque as paixões
fazem isso conosco, que é preciso a educação da nossa vontade. Nossa vontade,
recebendo uma formação racional, nos ajuda a escolher entre o bem e o mal,
entre o vício e a virtude.
A ética é, portanto, essa educação da
nossa vontade, pela razão, para a vida bela, justa e feliz a qual nos estamos
destinados por natureza.
Pensando
em todas essas coisas, tive saudades dos bons tempos. Quando digo “bons tempos”,
refiro-me aquele no qual me encontrava envolto, mergulhado, navegando no líquido
amniótico, no útero materno.
Vivia
naquele lugar privilegiado, quentinho, sem ter de me preocupar com coisa
alguma. Chovesse ou fizesse sol para mim era tudo uma maravilha. Não havia
ondas ameaçadoras, apenas bonança. Minhas necessidades eram todas satisfeitas
como num passe de mágica. Nem mesmo a consciência do que eram necessidades, eu
precisava ter. Estava tudo ali, a tempo a e hora. Aquele mundo maravilhoso era
a própria imagem da segurança, ninguém podia entrar ali para me fazer mal
algum. Enfim, um paraíso durante o qual eu vivi durante nove meses.
Um
dia, porém, tudo mudou. Arrancaram-me de lá. Fui
forçado a sair daquele agradável lugar onde tudo era tranquilidade, calma e
silêncio. De repente, me
vi em um ambiente estranho. Fui pego pela ponta dos pés, colocado de cabeça
para baixo e ainda deram-me umas tapinhas no bumbum. “Poxa, que gente malvada”!
Pensei eu naquele momento, e comecei a chorar. Derramei, pela primeira vez,
minhas primeiras lágrimas. Em seguida, me separaram de minha mãe, colocaram-me
em um tal de berçário, onde havia uns bebes chatos, que não paravam de chorar
um só instante. Eu, acostumado com um ambiente calmo, ordeiro e tranquilo, me
assustei e também comecei a chorar.
A
partir daí fui lançado de vez no mar da vida. Vivo diariamente essa dicotomia,
essa guerra entre o bem e o mal. Como todos os seres que navegam junto comigo,
sou passional. Porém, não deixo que as paixões assumam o comando. Se assim o
fizer, ajo igual ao cavaleiro que solta às rédeas do cavalo e o deixa vagar por
aí sem destino. Nessa cavalgada louca, sem rumo e sem destino, não se sabe onde
o cavalo poderá levar o cavaleiro, então, é melhor não arriscar. Cavalo sem
rédea levando no seu dorso o dono é passível de levá-lo ao abismo com grande
facilidade. Então, sempre que possível, procuro ter em mãos as rédeas. Não vou
dizer a vocês que é um exercício fácil, porém, vos digo que impossível não é.
Esse
segurar as rédeas do cavalo é o que Marilena Chaui, no texto citado acima,
chama de “educação da vontade”. Com essa formação racional temos melhor
capacidade de nos movermos nos caminhos dos vícios e das virtudes.
Diziam
os antigos filósofos que os seres humanos, em seus corações aspiram ao bem e à felicidade, coisas estas que só podem ser alcançadas através de uma conduta virtuosa.
É
bem verdade que de lá para cá os tempos mudaram... E muito. Mas as aspirações
ao bem e à felicidade permanecem de modo incontestável. Nos tempos modernos ou
pós-modernos, como queiram, quem, em sã consciência, deseja para si próprio, o
mau ou a infelicidade? Pelo menos, eu não conheço ninguém que aja desse modo.
Uma
coisa que anda bem diferente dos tempos antigos é essa coisa da vontade guiada
pela razão. A razão, hoje em dia, anda meio solta, como cavalo sem rédeas. Isso
leva os homens, e também as mulheres, a instintos descontrolados, emoções
doentias e impulsos irracionais, causa de tantos males do mundo
pós-moderno.
Bom
seria que todos nós procurássemos beber nas fontes do passado as águas da
conduta ética. Aquela água que nos ajuda a dosar muito bem razão e emoção e, a
partir dessa dosagem, conseguir o discernimento entre o bem e o mal, o certo e
o errado, entre aquilo que está ou não ao nosso alcance realizar. Agindo desse
modo, nosso mar será sempre de calmaria, e se sobrevierem tempestades, nosso
barco estará seguro e pronto para enfrentá-las. Nesses momentos, o timoneiro,
saberá jogar nosso frágil barquinho para bombordo — lado esquerdo da embarcação
— ou para estibordo — lado direito da embarcação — levando-nos com as manobras
certas, sempre para mares seguros.
Assim,
quando chegarmos ao caís dourado, e aportarmos em terra firme, firme também
estará nosso coração e avivada nossa razão. Já que “o mar não tem cabelos onde
se possa agarrar” procuremos singrá-lo com sabedoria, atravessando-o com
inteligência, porém, sem desafiá-lo.
Também
como Paulinho da Viola, “o leme da minha vida Deus é quem faz governar”. Já
tentei fazer diferente e assumir o controle da embarcação, mas como não havia
feito curso de timoneiro, nem sou “expert” em velejar, meu barquinho foi de
encontro aos rochedos e quase naufragou. Após essa experiência, resolvi
entregar o comando do barco nas mãos de quem sabe o faz... Desde então, sigo
tranquilo e em paz, pelos mares da vida.
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