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O mágico som do berimbau
Posted by Cottidianos
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14:34
Domingo,
19 de outubro
“Não existiria som
Se não houvesse o silêncio
Não haveria luz
Se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim,
Dia e noite, não e sim...”
(Certas Coisas – Lulu Santos)
Dedico
este texto, especialmente, aos mestres capoeiristas Vicente Joaquim Ferreira Pastinha –
Mestre Pastinha (1889 – 1981) e a Manoel dos Reis Machado – Mestre Bimba (1900 –
1974)
Quem
assistiu ao filme Titanic, certamente se lembra da clássica cena, na qual Rose
tenta se jogar do navio, sendo salva por Jack. A cena, uma das mais belas do
filme, é embalada pelo som de My Heart Will Go On. O que seria desta cena sem a
bela canção interpretada por Celine Dion? Com certeza, pouca gente, se
lembraria dessa sequência do filme.
Quando
os tumbeiros — nome dado aos navios que transportavam os escravos da África
para o Brasil — cruzavam os mares não havia o luxo nem a sonoridade do Titanic.
Ao contrário, naqueles tristes porões, a trilha sonora que se ouvia era o som dos
remos quebrando as águas e o som do chicote cortando a carne dos escravos. “Não
existiria som se não houvesse o silêncio”, diz Lulu Santos, na canção Certas
Coisas, nos fazendo deduzir que a música é feita de silêncios e sons. Nesse
caso, a outra parte que completava o calvário dos escravos, eram as lágrimas
que desciam, em silêncio, pelas suas faces.
Ah,
música que seria das nossas vidas sem ti? Talvez, um céu sem sol, um jardim sem
flores, uma cachoeira sem água. O que é necessário para que teu som seja
produzido? Nada mais que um instrumento musical e um artista que o domine.
Todos conhecem um piano, um violão, uma guitarra, uma flauta. Os instrumentos,
por si só, ficariam quietos e tristes no canto de uma sala, não fosse à mão que
extrai deles sons maravilhosos. O instrumento faz às vezes do corpo, enquanto o
artista faz às vezes da alma que o anima. Para ter acesso a esse gama de sons
advindas da combinação das sete musicais, é preciso se orientar por linhas
guias, as chamadas partituras.
Com
o berimbau não é assim. Ele não precisa das linhas guias, pois o instrumento-mestre
da capoeira é guiado pelas linhas do coração. Assim como as músicas cantadas na
capoeira não carregam em si a rigidez das escolas formais. Musica e letra,
nesse esporte tão centenário e tão genuinamente brasileiro, brotam do coração,
como as águas brotam das nascentes centenárias. Tudo é improviso, e no improviso,
nos encontramos, pois a linguagem com a qual a vida conversa conosco é a arte
do improviso. É certo que fazemos planos. Planejamos isso e aquilo, para tal ou
qual época, mas, muitas vezes, vêm os ventos da vida e destroem nossos castelos
de areia... Ou os constroem ainda melhores ou piores em outro lugar, bem longe
daquele que imaginávamos. Assim é a ilógica vida.
Há
na capoeira um saber que não é transmitido através de livros ou documentos, e
sim, na oralidade. De boca em boca, as músicas vão sendo transmitidas, as
histórias contadas, as filosofias vividas. Isso se chama preservar
integralmente a raiz, sem deixar de ser atual, de se adequar aos novos tempos. Esse
é um dos motivos que tornam a arte capoeira ainda mais encantadora e mais bela.
Digo
preservar integralmente a raiz, pois os primeiros capoeiristas que praticava a
capoeira, penso eu, não sabiam ler nem escrever. Acredito também que esse falta
de saber, o não acesso à leitura por parte dos escravos, propiciava a
perpetuação do poder dos coronéis e a longevidade do sistema escravista. Ainda
hoje é assim em muitos lugares: não se permitem que as mulheres aprendam. Não
se permitem que as crianças aprendam. Nem se permite que os pobres sejam
letrados, pois essas estruturas opressoras sabem que o saber liberta e isso
pode ser perigoso para algumas estruturas que se mantém, há séculos, ou talvez
milênios.
O que,
porém, os senhores da casa-grande e os governantes da época não sabiam é que o
saber não está apenas nos livros. Há uma sabedoria que brota do íntimo do
coração e é igual ou tão mais forte que a brota dos livros. Principalmente,
quando o sofrimento obriga o oprimido a transformá-la em códigos para driblar o
opressor.
Ora,
pois não era exatamente isso que os escravos faziam? Prostravam-se diante dos
santos católicos para agradar aos senhores. Entretanto, naquele ato fervoroso
de fé, havia um retorno às formas de rezar que praticavam na África. Os negros
reverenciavam os santos nos altares aos olhos dos senhores brancos, mas na verdade,
o que, na verdade, faziam, era elevar o pensamento aos Orixás que eram
cultuados em solo africano. Assim como faziam com a religiosidade também faziam
com a capoeira, revestiam-na com roupa de festa e de diversão, quando na
verdade perpetuavam um modo de luta, de resistência.
Eis
porque acho o toque do berimbau um toque todo cheio de lamento, mesmo quando
canta a alegria. Pois o seu berço, todo cheio de dor e sofrimento, deu-se no
passado, no meio da senzala opressora.
E
o berimbau, esse instrumento tão próprio das rodas de capoeira, e tão
centenário? Esse que traz de volta ao presente à voz do passado, da tradição?
Quem ele é?
Não
sou eu que vou lhes responder essa questão. Sou apenas um não-praticante da
capoeira, mas um seu grande admirador. Acho que essa coisa do definir o berimbau
deve ser dita por um mestre.
Sendo
assim, trago a vocês a palavra de Vicente Ferreira Pastinha — ou simplesmente,
Mestre Pastinha — fundador da modalidade Capoeira Angola. Pastinha, esse homem
admirável, não apenas ensinou capoeira, mas imprimiu-lhe uma filosofia, uma
consciência social que fez a capoeira se interligar ao universo da cultura
popular. Pastinha nasceu em 5 de abril de 1889, na cidade de Salvador e morreu
nesta mesma cidade em 13 de novembro de 1981, sem ter o devido valor
reconhecido pelos governantes locais. Os seus discípulos, entretanto, trataram
de manter vivos sua memória e a herança, chamada Capoeira Angola, deixada por
ele. Assim diz Pastinha, no livro, Capoeira
Angola, de sua autoria.
O berimbau é o instrumento
indispensável.
É constituído de uma vara de madeira
resistente, aproximadamente, com 1,50 m de comprimento, mantendo em tensão um
arame de aço. Possui uma caixa de ressonância formada por uma cabaça unida ao
arame por meio de um barbante.
As batidas de uma vareta de madeira, à
semelhança da batuta de um maestro, sobre a parte inferior da corda sonora
produz um som que pode ser mais agudo encurtando, momentaneamente, a extensão
vibratória do arame de aço aplicando, contra o mesmo, uma moeda de cobre que é
mantida, pelo tocador, entre os dedos polegar e indicador da mão esquerda.
A mão direita segura à vareta com os
dedos polegar, indicador e médio, restando os dedos mínimo e anelar para manter
fixo por intermédio de uma pequenina alça, o Caxixi, uma delicada cestinha de
vime com sementes secas em seu interior, funcionando, pelos movimentos da mão
como um pequenino chocalho.
A caixa de ressonância, formada por uma
cabaça, aumenta ou diminui a intensidade do som afastando ou aplicando contra o
abdômen a abertura da mesma.
Vejo
uma roda de capoeira como um ritual, no qual estão presentes, ao mesmo tempo, o
místico e lúdico. Primeiro, o fato de fecharem-se os capoeiristas em roda. Se alguém
sai da roda e vai ao centro lutar, ou se vai fazer qualquer outra coisa
referente às atividades daquela roda, aquele lugar vago tem de ser logo
preenchido. Não pode haver lugar vazio, pois ali está circulando energia, e não
se pode deixar que a energia se dispersse. Ela tem de circular entre a roda e
para a roda emanar vibrações positivas. Ora, esse também não é um principio
utilizado nos terreiros de umbanda e candomblé, onde os participantes se reúnem
em roda, chamada corrente, e objetivo não é o mesmo: não permitir que energia
se disperse?
O
berimbau, como afirmou Mestre Pastinha, é instrumento indispensável. É ele quem
assume o comando, quem dita o ritmo do jogo. São três os berimbaus presentes em
uma roda: Gunga, Viola e Médio. O Gunga, espécie de berimbau-mestre, marca o
ritmo, dá o tom. Sua fala é grave. O médio possui composição média e o viola,
possui composição aguda. Completando a parte musical, temos a bateria, composta
de atabaque, pandeiro, agogô, reco-reco e chocalho.
Dois
capoeiristas saem da roda e se posicionam aos pés do berimbau como sinal de
reverência. É o inicio do ritual, do jogo. Uma ladainha é cantada e durante a
sua entoação o grupo se concentra para o inicio do jogo. Sem dúvida, um momento
solene, como também são solenes os rituais místicos. Durante a recitação de uma
ladainha é evocada a tradição, são feitas reverências aos mestres ou é narrado
algum momento da História do Brasil. Após a ladainha canta-se uma chula e em
seguida um corrido. Um dos corridos, que acho que uma beleza singular por
saudar, primeiramente a Deus, depois ao mestre que trouxe até nós a arte da
capoeira e também as voltas que o mundo dá — coisa que nos remete ao que já
havia falado no início do texto sobre a ilógica da vida — é o seguinte:
Iê, viva meu Deus.
Iê
viva meu Deus, camará.
Iê viva meu mestre
Iê
viva meu mestre camará,
Iê, quem me ensinou
Iê
quem me ensinou, camará
Iê a capoeira
Iê
a capoeira camará
Iê a malandragem
Iê,
a malandragem, camará
Iê, volta no mundo
Iê
volta no mundo, camará
Iê, que o mundo deu,
Iê,
que o mundo deu, camará
Iê, que o mundo dá,
Iê,
que o mundo dá, camará
Pode-se jogar a capoeira sem a música?
Pergunta você. Eu lhe respondo com outra pergunta? É possível comer feijão sem
sal? Claro, é perfeitamente possível, comer feijão sem sal. Mas admitamos que
uma pitadinha de sal, realça o sabor do prato. Assim também é a música na
capoeira: ela realça o sabor do jogo.
Foto facebook Mestre Balão |
Para
finalizar esse texto, chamo da encantadora cidade de Salvador, berço da
capoeira angola, Ricardo Carvalho, mestre Balão, na capoeira. Balão é mestre
capoeirista na capital baiana e é fundador do CTE Capoeiragem. Aproveito estas
linhas para mandar um grande abraço para Mestre Balão e a todos os capoeiristas
da Bahia, estado da alegria, como diz os compositores; Moraes Moreira ,
Armandinho , Matias da Rocha e Joana Batista Ramos, na música Chame Gente/Vassourinhas: “Alegria,
alegria é o estado que chamamos Bahia, de todos os Santos, encantos e Axé,
sagrado e profano, o baiano é carnaval”.
Sobre
a questão da música na capoeira, assim se expressa mestre Balão:
“A capoeira é uma das principais artes que
conheço em termos de complexidade neste nosso grande mundo. Coloco isto porque
ela tem diversas vertentes como: marcial, esportiva, folclórica, filosófica,
musical entre outras.
Desconheço qualquer manifestação dentro
do contexto arte/luta que utilize instrumentos e músicas próprias da sua raiz.
Neste formato a capoeira se confunde com dança e luta, uma das maneiras que os
escravos tinham de ludibriar seus opressores. Desta forma, esta linda e sofrida
herança foi tomando um direcionamento, nos tempos atuais, no qual a música se
tornou um dos aspectos extremamente necessário para sua prática. Quem não gosta
de ouvir uma linda música? Imagine uma música que é da sua própria raiz e lhe
conduz a fazer movimentos conforme sua cadência e toques imprimidos!!! Isto é
muito forte e contagiante!! E as histórias que são contadas/cantadas do nosso
passado? Vixe, são tantas coisas que as músicas nos arremessam dentro desta
arte/luta.
Hoje em dia educamos nossas crianças
através da transversalidade, ou seja, mostrando como a matemática, história e
outras matérias podem ser colocadas em uma aula de capoeira. Fazemos isto,
também, nas cantigas inventadas, no qual as crianças repetem o coro e entendem
o sentido de uma maneira natural”.
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