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Guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis, mas sempre superam seus limites
Posted by Cottidianos
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01:29
Quinta-feira,
12 de junho
“Guerreiros são pessoas / São fortes, são frágeis / Guerreiros são
meninos
No
fundo do peito / Precisam de um descanso / Precisam de um remanso
Precisam
de um sonho / Que os tornem perfeitos”
(Trecho da música Guerreiro
Menino, de Gonzaguinha)
Daqui
há algumas horas, com o jogo entre Brasil e Croácia, no estádio Itaquerão, em
São Paulo, começa oficialmente a Copa do Mundo de 2014. São 32 nações
disputando o título de campeão mundial. Grandes nomes do mundo do futebol como
Neymar, Messi, Balotelli, Drogba, e tantos outros, prometem dar o melhor de si
dentro de campo. Brasil, Argentina, Uruguai, Alemanha, Itália, França,
Inglaterra e Espanha, nações que já experimentaram a sensação de levantar a
taça de campões mundiais brigam pelo título, juntamente com outras que querem
experimentar esse prazer pela primeira vez. Mas não esqueçamos que esporte é
superação dos limites. É resistir à dor, ao cansaço, aos treinos exaustivos. Um
campeão não se faz com o levantamento da taça. Isso é uma consequência de todo
um intenso e meticuloso trabalho.
Pensando
nisso, dedico esse texto a um atleta, que não sabia que carregava dentro de si
um guerreiro. Que não sabia que, dentro de si mesmo, havia uma fortaleza em forma
de gente. Dedico esse texto a Fernando Fernandes, atleta paraolímpico, detentor
dos títulos de tetracampeão mundial, bicampeão sul-americano e campeão
brasileiro de canoagem. De bem com a vida, Fernando namora atualmente com a austríaca
Viktoria Schwarz que é atleta olímpica e campeã mundial de canoagem. Fernando, certamente,
estará torcendo pelo Brasil como estarão todos os brasileiros. Dedico o texto também,
a todos aqueles que não se entregam ao desanimo, à angustia e à depressão, pois
sabem que, acima do céu nublado e do tempo fechado, brilha intensamente a luz
da esperança e da felicidade.
***
Na
noite de terça-feira, 14 de maio de 2002, estreava sob câmeras, luzes e
ilusões, a 2a edição do programa Big
Brother Brasil. Naquela noite, 12 participantes entravam na “casa mais
vigiada do Brasil”, como costuma dizer o apresentador do programa, Pedro Bial.
Dentre eles, estava o modelo e boxeador, Fernando Fernandes de Pádua, natural
de São Paulo, à época com 21 anos. Apesar de sua beleza, carisma e juventude,
Fernando foi eliminado do reality show, no dia 4 de junho, três semanas após o
início do programa.
Apesar
disso, a participação no BBB, abriu-lhe as portas da fama e sucesso. O modelo
já fazia sucesso estrelando peças publicitárias no Brasil. Após o reality
abriu-se para ele as portas da carreira internacional. Dolce&Gabbana, Calvin
Klein e outras grandes marcas perceberam o potencial do jovem e o convidaram
para fazer parte de seu elenco de modelos. Fernando sempre gostou de esportes,
mesmo desenvolvendo seus trabalhos como modelo, ele pensava, em algum dia
dedicar-se ao mundo do esporte. Quando estava com 28 anos, surgiu uma
oportunidade de ouro na vida de qualquer modelo profissional: estrelar a
campanha de uma grande marca de perfumes. O trabalho já havia sido finalizado e
ele aguardava, com ansiedade, o lançamento da campanha, em Milão, Itália. Era
ele quem faria a abertura da semana de moda que aconteceria em Milão, promovida
pela marca de perfume que o havia contratado. Fernando já se imaginava no
glamour dos desfiles de moda na Itália.
Aproximando-se
do dia do desfile, ele começou a vender alguns bens aqui no Brasil, como casa,
carro e outros pertences, para que pudesse ficar quatro anos viajando. Seu
plano era passar esse tempo promovendo a marca de perfumes, e economizando o
dinheiro que essa campanha lhe traria — que não seria pouco — e, com o retorno
financeiro que obteria, pretendia dedicar-se a sua paixão: o esporte.
No
dia 04 de julho de 2009, acordou de bem com vida. Correu cerca de quinze
quilômetros pela manhã e, logo após, fez uma saudável refeição. À tarde fez
mais hora e meia de treino de boxe. Quando chegou à noite estava um pouco cansado
e pensou em descansar um pouco. O telefone de sua casa tocou. Era o pai dele
chamando-o para jogar futebol. Pensou em dizer não, porém a possibilidade de
praticar mais esporte o animou. Depois de certo tempo de jogo já estava realmente
cansado. Além disso, surgiu-lhe uma câimbra na panturrilha e ele resolveu sair
de campo.
Após
o final da partida, era hora de, finalmente, ir para casa descansar um pouco.
Afinal, apesar da muita energia que tinha, não era de ferro e precisava, além
de estar em forma, estar também descansado e com boa aparência para as
passarelas italianas, que lhe esperavam dali a quinze dias. A ansiedade por
esse momento o havia dominado e ele estava comendo muito pouco. Essa questão de
comer o preocupava, mas ele não conseguia controlar a ansiedade. O carro rodava
ao final da noite, pelas movimentadas ruas e avenidas de São Paulo, em meio ao
ritmo frenético da cidade. De repente, tudo se fez silêncio. Como diz a música Roda Viva, de Chico Buarque: “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino
mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá”.
Fernando, que estava sozinho no carro, bateu em um poste na esquina da Avenida
República do Líbano, na zona Sul de São Paulo e perdeu os sentidos.
Quando
recuperou a consciência e abriu os olhos, viu-se em um ambiente todo pintado de
branco, pessoas vestidas de branco. Será que eu morri? Pensou o modelo. Ainda
meio confuso, começou a analisar o próprio corpo. Olhos para as mãos:
perfeitas! Os braços: tudo em ordem. Passou as mãos pelas faces: uma sensação
de alívio lhe invadiu, estava tudo bem com sua face. Nem um arranhão, nenhum
ferimento. Ele resolveu então, verificar o restante do corpo. Tentou levantar
as pernas direita e esquerda: elas não responderam ao seu comando. Um suor frio começou a lhe escorrer pelo
corpo. O que há de errado com minhas pernas. Porque não consigo mexê-las,
pensou. Ajudem-me, minhas pernas, daqui há quinze dias vocês têm que estar
funcionando, por favor. Lembrem-se de que as passarelas de Milão me esperam,
brincou ele com o próprio corpo.
O
tio de Fernando estava ao lado da cama. O modelo se dirigiu a ele e perguntou:
— Tio,
o que foi que aconteceu comigo. Porque minhas pernas não respondem?
— Nando,
você sofreu um grave acidente de carro...
—
Fala logo, tio. Não me esconda nada, por favor. Disse o modelo com apreensão na
voz.
—
Olha, você bateu o carro e, em consequência desse acidente, você quebrou a
coluna. Quebrou duas vértebras.
—
E minhas pernas? Não consigo movimentar minhas pernas...
— Paciência,
meu querido. Se suas pernas vão funcionar ou não, isso só vamos saber depois da
cirurgia.
—
Ainda tem mais essa? Uma cirurgia?
Feita
a cirurgia Fernando esperou mais três dias recuperando-se, antes de começar a
fazer fisioterapia. O desejo de voltar a andar era enorme e ele se entregou
intensamente aos exercícios. Exagerou na dose e, em consequência disso, no
terceiro dia de tratamento, lhe sobreveio uma forte dor de cabeça. A cirurgia
ainda não havia cicatrizado e começou a vazar liquido pelo local onde os
médicos haviam feito a sutura. Era essa liquído que estavam provocando as dores
de cabeça.
Como
resultado, teve que ficar mais dez dias deitado, imóvel. O desespero lhe
dominou. Não posso ficar deitado aqui por dez dias. Em dez dias tenho que estar
em Milão, pensava. Conforme passavam os dias, a realidade lhe batia porta e lhe
dizia que os seus sonhos de um desfile glorioso nas passarelas de Milão se
desfaziam como se desfazem os castelos de areia na beira do mar. Lágrimas
silenciosas rolaram pelas suas faces. Em sua mente muitos pontos de
interrogação, dúvidas e incertezas. E agora? O que eu faço? Meu corpo é meu
instrumento de trabalho? Com minhas pernas inertes, como poderei desfrutar do
glamour que o mundo da moda oferece? E o futebol? Isso é muito preocupante? Eu
que gosto tanto de esportes, como fazer se ficar sem andar, sem jogar?
Começou
a pensar de forma bastante racional: Que eu vou fazer da vida? O que foi que eu
conquistei até agora? Tenho uma Faculdade de Educação Física, mas não
desenvolvo nenhum trabalho na área que me garanta bons dividendos. Minha
carreira de modelo? Essa ainda não está completamente consolidada a ponto de
garantir a minha subsistência em meu novo modo de vida. Um pensamento lhe veio
à mente e uma luz inundou a solidão do quarto em que estava e refletiu-se em
sua mente: o mundo da moda poderia rejeitá-lo, mas o esporte não. Andando ou
sentado em uma cadeira de rodas, sempre haveria um lugar para ele no mundo dos
esportes.
Era
modelo, conquistara o sonho que era o sonho de muita gente, viajava por muitos
países, tinha o mundo da moda a seus pés, mas aquilo não o realizava. Então a
possibilidade de praticar esportes lhe surgiu na mente como o sol que nasce por
sobre as nuvens em um dia frio e nublado. Um sorriso lhe invadiu os lábios.
Afinal, aquele poderia ser o início de um novo começo. Essa esperança afastava
para longe dele o fantasma da depressão que estava rondando pelo ambiente,
apenas aguardando um momento de fraqueza humana para dominar a mente e o corpo
de Fernando. Como a depressão e sua irmã, a angustia, viram que aquele homem
forte não se deixaria abater, fizeram as malas e foram embora, à procura de
mentes mais fracas na qual pudessem fazer morada. Com isso, deixaram Fernando
em paz e tranquilidade para viver seus novos planos. Era como se olhos de águia,
asas de gavião e garras de tigre — que nem ele mesmo sabia que possuía —
começassem a nascer em seu corpo, demonstrando uma fortaleza de alma que
surpreendeu a todos: à equipe médica, a família, aos amigos e, principalmente,
a ele próprio.
Enquanto
caminhava pelos jardins do hospital, aproveitava para observar o vigor e vitalidade
com que crescem as plantas Via a exuberância com que as flores desabrochavam e
a intensidade do perfume que elas exalavam e tudo isso o inspirava. Pensava
também nas partidas de futebol que jogara com os amigos. No esporte aprendera a
perder e aprendera a ganhar.
Falava
abertamente de seus planos com os médicos e enfermeiros e eles lhe
incentivavam. No ambiente hospitalar teve contato com várias modalidades de
esportes. Em setembro, assistia a uma corrida de atletas em cadeira de rodas...
Um despertar surgiu em sua mente. As coisas tornaram-se muito claras para ele.
“É isso que eu quero fazer”, pensou. Dali a cinco meses aconteceria a corrida
de São Silvestre e ele já se via nessa corrida. Falou de seu desejo com a
família. Esta he impôs mil obstáculos: “Você nunca treinou” “Você não está
preparado” “Ainda está em tratamento” “Ainda há doze pinos na sua coluna”.
Fernando fechou os ouvidos a todas essas sugestões negativas e correu em busca
da realização de mais esse sonho.
No
dia 31 de dezembro, lá estava ele, todo empolgado, correndo na São Silvestre.
As dificuldades como já eram de se esperar, foram inúmeras. Não estava ainda acostumado
com a cadeira de rodas, o pneu furou durante o percurso, a escolha errada das
luvas fez com que suas mãos sangrassem. Entretanto, quando cruzou a linha de
chegada ele soube que havia dando um grande passo em direção a vitória, mais
ainda, soube que, mesmo não chegando em primeiro lugar, conseguira uma das
maiores vitórias de sua vida.
Depois
disso, Fernando começou a achar que a corrida em cadeira de rodas não oferecia
mais tantos desafios e resolveu trocar a modalidade pela canoagem. Foi para
frente do computador e procurou nos sites de busca por um professor de
canoagem. Achou uma professora chamada Diana. Ligou para ela e, sem dizer que
era paraplégico, disse-lhe que gostaria de fazer aulas de canoagem. Marcaram um
encontro no local de trabalho de Diana. Ao final ligação, após acertarem todos
os detalhes da visita foi que Fernando lhe disse que estava com 12 pinos na
coluna e que suas pernas não estavam se mexendo. A professora, do outro lado,
da linha ficou sem fala por alguns segundos, depois se recuperou e disse: “Tudo
bem. Pode vir”.
Sobre
essa conversa e a respeito desses planos de fazer canoagem, o paciente não
falou absolutamente nada com a equipe médica. Era proibido fazer atividades
físicas fora do hospital. Encontraram um Kaiaque adequado para o novo atleta da
canoagem e, a partir daí, foram três meses de treinos intensos. Fernando
demonstrou grande habilidade nessa modalidade de esporte e, quatro meses
depois, conquistava o Campeonato Sul-americano, tornou-se o primeiro campeão de
canoagem do Brasil. Descobriu também uma nova paixão: a canoagem.
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