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Tragédia em Santa Maria – Parte 2
Posted by Cottidianos
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18:25
Terça-feira,
28 de janeiro
Imagem: http://www.exatasnews.com.br/secretario-da-seguranca-confirma-superlotacao-da-boate-kiss-perfil-das-vitimas-e-como-aconteceu/ |
Comecei
a analisar melhor o ambiente. O espaço total da boate devia ter um pouco mais
que 600 metros quadrados. Entrava-se nela por duas portas frontais que
cumpriam, simultaneamente, dupla função: entrada e saída. “E se houvesse algum
imprevisto, uma situação que causasse tumulto? Como faríamos para sair dali?”
Isso seria um grande problema, pensei. Para agravar mais essa situação, nas
portas de entrada foram colocadas grades de proteção com a finalidade de
organizar a entrada dos freqüentadores da boate. Aquilo representaria um grande
obstáculo se as pessoas precisassem sair em situação de emergência. Olhei para o teto da boate e notei que ele
era revestido por uma camada de espuma ordinária. Nem desconfiava que estivesse
olhando para algo que ceifaria a vida de muita gente naquela noite.
Logo
após atravessar o hall de entrada, chegava-se a um salão com duas áreas Vips e
dois bares. À esquerda desse salão, acessível por uma rampa e uma escada, localizava-se
a pista de dança. Esse local podia ser dividido em duas partes: na frente
ficava um mezanino, no qual se podia abrigar um DJ, e um bar. Ao fundo ficava o
palco principal. Naquela noite, quem se apresentaria nele seria a banda
regional, Gurizada Fandangueira. A banda já havia se apresentado na Kiss por
diversas vezes. Meus amigos contaram que eles tinham o hábito de usar shows
pirotécnicos para impressionar o público. Eu já os conhecia dos CDs, mas nunca
havia participado de um show ao vivo com eles.
Por esse motivo, aguardava ansiosamente pelo início do show. Quando eles
subiram ao palco, passava das duas horas da manhã de domingo. Por alguns
momentos senti vontade de ir embora, mas meus amigos estavam tão animados que
resolvi ficar mais um pouco.
Estava
na pista, dançando com Aline quando vi o vocalista da banda erguer o braço o
mais que conseguiu. Ele disparou um artefato luminoso em direção ao alto. Todos
pararam para ver os efeitos luminosos provocados pelo artefato. Foi quando meus
olhos viram uma faísca atingir a espuma que recobria o teto. Um pequeno foco de
incêndio logo foi formado. Era tão pequeno que não me causou preocupação. Um
simples extintor de incêndio logo resolveria o problema. Foi o que fez um dos
seguranças da boate que estava próximo ao palco. Ao perceber o foco de
incêndio, ele pegou um extintor que estava próximo ao palco e o acionou. Nada
aconteceu. Tentou mais uma vez. Vi uma nota de preocupação em rosto quando
tentou pela terceira vez e não obteve sucesso. Um dos integrantes da banda
tomou o instrumento das mãos do segurança e tentou acioná-lo, mas o extintor
não funcionava de jeito nenhum. Eu
acompanhava atentamente todos esses detalhes. Enquanto isso, o pequeno foco de
incêndio já havia adquirido proporções consideráveis. Quando o vocalista da banda viu que não havia
mais jeito, ele pegou o microfone e pediu que todos se retirassem do ambiente,
pois estava havendo um incêndio.
Imagem: http://extra.globo.com/noticias/brasil/policia-recolhe-extintores-de-boate-incendiada-em-santa-maria-7414457.html |
O
desespero começou a tomar conta de quem estava na pista de dança, pois o fogo
ainda não havia atingido os demais ambientes. Enquanto a maioria se dirigia a
porta de saída, eu e Aline fomos em direção a sala vip, onde estava o restante
de nosso pequeno grupo. Era difícil chegar até lá, pois, éramos empurrados a
todo o momento pela multidão que já se dirigia para a saída. Os meus olhos
ardiam muito e eu começava a ter dificuldades para enxergar. Respirar já estava
se tornando uma tarefa complicada. Em meio a todo aquele tumulto, ouvi alguém
gritar:
_
Os seguranças não estão deixando ninguém sair. Eles acham que ocorreu um briga
e que algumas pessoas querem se aproveitar da situação e sair sem pagar a
conta.
_
Alguém avisa pra eles que o caso é sério e que a boate está pegando fogo,
replicou outro.
Enquanto
isso, eu e Aline chegamos ao ambiente onde estava o restante dos nossos amigos.
Eles ainda não tinham consciência de quão grave era a situação. Confesso que
fiquei aliviado quando os vi são e salvos.
_
Precisamos achar um jeito de sair daqui o mais rápido possível, pessoal. A boate
está incendiando! Disse eu em tom desesperado.
A
espessa fumaça começou, nesse momento, a chegar ao local onde estávamos. O
desespero tomou conta de todos nós. Soube depois que, aquela fumaça que nos
envolvia, trazia em sua essência, Cianeto: o veneno da morte.
***
A
dois quilômetros dali, o Corpo de Bombeiros da cidade, recebia uma ligação
informando que estava acontecendo um incêndio na boate Kiss. A equipe saiu
preparada, porém sem grandes preocupações. “Deve ser apenas um superaquecimento
de fios”, pensavam eles.
***
A
espessa nuvem de fumaça invadiu completamente o lugar em que estávamos.
Tentamos sair dali tateando às cegas, indo em direção ao que achávamos ser a
saída. Era difícil manter os olhos
abertos. Tirei a camisa e tentei usá-la como máscara para filtrar o ar. A
sensação que sentia era a de que mãos invisíveis estavam apertando minha
garganta. Não conseguia respirar direito. Começava a sentir também fortes dores
no peito. Sentia como se estivesse sangrando internamente. Em meio a intensos
gritos de desespero, tentava sair o mais depressa que pudesse. O problema era
que centenas de pessoas também tentavam fazer a mesma coisa e, como
conseqüência, quase não saíamos do lugar. Os amigos que tinham vindo comigo
haviam se perdido em meio à multidão. Eu queria gritar por eles, mas não tinha
mais voz. Pisei em alguns corpos de pessoas que estavam desmaiadas, o mais
provável é de que já estivessem mortas. Dezenas de outras caiam ao meu redor.
Foi quando senti meu corpo, aos poucos, ir perdendo as forças. Meus sentidos me
abandonaram e eu desfaleci.
Imagem: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/boate-kiss/ |
Comecei
a sentir uma sensação estranha. Era como se estivesse fora de meu corpo,
flutuando no espaço. Não entendi porque meu corpo ficava ali parado, sem reação
alguma. Tentei reanimá-lo, mas não obtive nenhum sucesso nessa tentativa. O
jeito foi correr para fora da boate e tentar conseguir alguma ajuda por lá.
Quando cheguei fora da boate, a cena que vi foi de uma terrível confusão.
Muitas pessoas desmaiadas, outras chorando desesperadas. As luzes das viaturas
policiais e dos carros de bombeiros davam um ar sinistro ao momento. O barulho
das sirenes era ensurdecedor.
Aproximei-me de um policial que fazia anotações no que parecia ser um
livro de ocorrências.
_
Por favor, policial, o Sr. Precisa me ajudar. Há muitas pessoas em apuros
dentro da boate. É preciso tirá-las de lá imediatamente.
Por
mais que gritasse, o policial não me ouvia, não me notava. Não me dava a menor
atenção. Corri, então, para onde estavam os bombeiros. Implorei ajuda para eles,
mas eles também nem me notaram. Pensei que talvez eles estivessem bastante
ocupados para me ouvir.
Fui
procurar ajuda entre as demais pessoas em frente à boate. Gritava. Implorava
para que elas me ajudassem. Tudo em vão. Elas também não conseguiam me ouvir.
Desanimado,
fui sentar-me do outro lado da rua. Para minha surpresa, Fabrício, Matheus,
Carlos, Aline e Fernanda vieram sentar-se ao meu lado. Todos se queixavam da
mesma coisa: ninguém conseguia nos ouvir.
O
estranho era que também conseguíamos ver o que acontecia dentro da boate. Lá
dentro, vimos uma jovem colocar a cabeça dentro do freezer onde se colocavam as
bebidas e sorver a maior quantidade de ar que conseguisse. Depois ela saiu
tateando pelas paredes em direção à saída. Alguns minutos mais tarde nós a
vimos fora da boate sendo levada para o hospital. Alguns rapazes desafiavam a
fumaça e, com picaretas, quebravam as paredes na tentativa de salvar algumas
pessoas.
Vimos
quando um jovem militar que, junto com a esposa, havia conseguido sair com vida
da boate, voltou para ajudar a salvar vidas. Conseguiu salvar algumas pessoas,
mas ao voltar pela sexta vez para dentro da boate, não conseguiu mais sair de
lá com vida.
A
todo o momento chegavam familiares e amigos de jovens que estavam na boate.
Centenas de curiosos se reuniam em volta tentando ajudar de alguma forma.
Também nós, estávamos esperando os nossos familiares, mas antes deles chegarem,
aproximou-se de nos um grupo de homens com roupas brilhantes. De seus olhos
emanavam fortes ondas de amor. Eles estenderam as mãos em nossa direção e, com
voz doce e suave, disseram:
_
Viemos para levá-los de volta para casa.
Nós
nos entreolhamos com surpresa e admiração. Pelo menos, eles conseguiam nos
ouvir. Demos as mãos a eles e partimos. Naquele momento, a dor e angústia que
sentíamos, desapareceu. Fomos envoltos por uma luz que irradiava grande paz.
***
Imagem: http://www.tatliaskim.org/resimler-guzel-resimler/183048-dogadan-secmeler.html |
Ao
voltar, após um ano daquela noite de terror, encontrei um processo de onze mil
páginas correndo na justiça. Os sócios da boate Kiss; Elissandro Callegaro e
Mauro Londero Hofmann e os músicos da banda Gurizada Fandangueira; Marcelo de
Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão são acusados, nessa ação, de
homicídio tentado e consumado. Eles tiveram prisão temporária decretada em 31 d
janeiro de 2013. Em 1 de março foi decretada prisão preventiva. Entretanto, em
29 de maio, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça gaúcho revogou a prisão
dos quatro acusados e, hoje, eles respondem ao processo em liberdade. O
inquérito criminal indiciou 16 pessoas e responsabilizou outras 12. Bombeiros
funcionários da prefeitura também foram citados nas investigações.
Sofro
ao ver o sofrimento dos meus irmãos gaúchos. Muitos dos que perderam entes
queridos ainda hoje, inconscientemente, esperam que eles voltem. Isso fica
demonstrado através de pequenos e significativos gestos: uma porta que fica
aberta, como se esperasse que o filho ou filha estivesse viajando e fosse
chegar a qualquer hora, um quarto arrumado do mesmo jeito que estava na noite
da tragédia, são apenas alguns exemplos. Quanto aos sobreviventes, esses sofrem
de três maneiras diferentes: a primeira, pelas terríveis lembranças daquela
madrugada. A segunda, pela dor da perda dos amigos. A terceira, na pele marcada
pelas queimaduras e nas graves sequelas provocadas pela intoxicação devida a inalação
da fumaça e que afeta grandemente os pulmões. Mais de seiscentas pessoas ainda
recebem atendimento hospitalar e psicológico. Muitas outras fazem uso de
antidepressivos. A cidade de Santa Maria nunca mais será a mesma cidade
universitária alegre de antes. Haverá sempre essa nota triste nas canções que
serão cantadas, futuramente, pelas esquinas da cidade ou embaixo das árvores do
Campus Universitário. Um desejo está sempre presente nos corações e mentes dos
habitantes daquela cidade: o de que se faça justiça, e que os responsáveis por
tantas mortes, não fiquem impunes. Reza-se também para que coisas como essas
nunca mais se repitam em nenhuma parte do mundo.
Por
fim, gostaria de vos dizer que, do plano espiritual, onde nos encontramos,
estamos a todo o momento enviando vibrações de paz carinho, conforto e amor
para todos os nossos familiares e amigos, e para todos os sobreviventes daquela
tragédia. Quero vos dizer também que quando uma lágrima cair de teu rosto
lembra-te dos momentos felizes que passamos juntos. Quando a tristeza te
invadir o coração, lembra-te de que, acima de um céu nublado brilha
intensamente a luz do sol. Quando te sentires sozinho lembra-te de que há um
Deus poderoso que é só amor e que te acolhe de braços abertos. Quando sentires
a minha falta, lembra-te de que és filho do universo, irmão das estrelas e que
teremos uma eternidade para nos reencontrar. E quando ouvires as notas das
canções lembra-te de que estarei vivendo nas boas lembranças que construímos,
na chuva fina que cai enriquecendo a terra para novo plantio e no sol que nasce
a cada novo dia, iluminando e renovando a vida na terra.
Um
grande abraço cheio de carinho e saudade à todos.
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