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Tragédia em Santa Maria - Parte 1
Posted by Cottidianos
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19:22
Segunda-feira,
27 de janeiro
Imagens: http://www.valor.com.br/brasil/2985084/jovens-que-estavam-na-boate-relatam-momentos-do-incendio |
No dia 28 de janeiro de 2013, o Brasil
acordava sob o choque de uma grande tragédia ocorrida na cidade de Santa Maria,
no Estado do Rio Grande do Sul. Uma festa universitária era realizada na boate
Kiss. Dentro da casa noturna havia muito mais gente do que o previsto para o
local. Depois ficou provado que, diversas irregularidades além dessa, foram
responsáveis pela grande tragédia. Os alvarás de funcionamento da boate não
estavam em ordem, a esponja de revestimento do teto da boate não era adequada
para o local, os fogos de artifício usados pela banda Gurizada Fandangueira
eram propícios para serem utilizados em lugares abertos e não em lugares
fechados. Enfim, muitas vidas poderiam ter sido poupadas se normas básicas de
prevenção e combate à incêndios tivessem sido observadas.
O incêndio ocorrido na madrugada de
domingo, 27 de janeiro de 2013, exatamente há um ano, deixou um número de 242
mortos, em sua maioria, jovens entre 18 e 24 anos. As vítimas não morreram
queimadas, morreram em conseqüência de terem respirado a fumaça altamente
tóxica liberada pelas espumas do teto. Pessoas que saíram com vida da boate e,
aparentemente bem, chegaram ao hospital mortas, tal era o grau de toxicidade da
fumaça. Foi uma comoção nacional e não houve quem não se emocionasse com
fato. Depois da tragédia começou uma
onda de fiscalização de casas noturnas em todo o país. Pensou-se que a nação
viveria uma nova era quanto à segurança desses estabelecimentos. Um ano depois,
toda essa pressa em encontrar soluções que impeçam que novas tragédias como a
de Santa Maria aconteçam ficaram apenas no papel. Mudanças legislativas,
propostas nos meses que seguiram, não entraram em vigor. Um projeto de lei federal que propõe regras
mais rígidas ainda está para ser votado no Congresso Nacional. As investigações
sobre o incidente caminham a passos lentos. Em resumo, nada mudou. As únicas
coisas que mudaram, verdadeiramente, foram a vida dos familiares que perderam
jovens na tragédia e a vida dos sobreviventes daquele fatídico evento.
O texto a seguir foi construído com base
em documentários, reportagens de jornais e telejornais e é baseado no
depoimento de quem estava dentro da boate Kiss naquela noite e viveu todo o
horror que aconteceu no local. Criei um personagem fictício para narrar os
fatos verdadeiros em relação ao que aconteceu dentro da casa noturna, das
homenagens na cidade e de como está a situação atualmente. Ao final do texto, o
personagem deixa uma mensagem de conforto àqueles que perderam seus entes
queridos. Por ter ficado extenso, dividi o texto em duas partes. A primeira,
apresento a vocês agora e amanhã publico a parte final.
Imagem: http://valsoaressilva.blogspot.com.br/2011/10/crenca.html |
É
dia 27 de janeiro de 2014. Um belo e esplendido sol se derrama sobre a cidade
de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, trazendo vida e luz aos habitantes do
lugar, e revigorando o verde da que circunda a região. Tem sido assim desde a
fundação desta terra, há 156 anos. Caminho pela cidade, sem destino certo.
Passo em frente à Universidade Federal – uma das maiores instituições de ensino
público do Brasil. “Poderia estar estudando aqui, se meus planos não tivessem
sido barbaramente interrompidos”, penso com certa melancolia. Esse pensamento
logo se dissipa ao pensar que frequento agora uma Universidade onde tenho
aprendido muito mais do que se estivesse na Federal de Santa Maria.
Imagem: http://en.wikipedia.org/wiki/Universidade_Federal_de_Santa_Maria |
Santa
Maria era uma alegre cidade universitária.
À sombra das arvores por onde caminho agora, os jovens cheios de planos
e com toda uma vida pela frente, sentavam-se e cantavam e tocavam violão e
saboreavam um gostoso chimarrão. Essa alegria foi embora, transformou-se em
fumaça, no fatídico dia 27 de janeiro de 2013. Hoje, após um ano, as pessoas
ainda tentam retomar a normalidade da vida. Mas isso ainda é uma coisa difícil.
Nunca mais as lembranças daquela madrugada serão apagadas. Elas ficarão para
sempre marcadas na história da cidade.
Vou
ao centro da cidade – a propósito, uma coisa boa nesse meu novo estilo de vida
é o fato não ter minha locomoção limitada. Posso ir aonde quiser e à hora em
que desejar. No centro da cidade, flores
e rosas brancas estão espalhadas por todas as ruas, praças, janelas e avenidas.
Há uma infinidade de velas acesas. Aqui e acolá, pessoas rezam fervorosamente,
sozinhas ou em grupos. Vejo tristeza em todos os rostos. Melancolia em todas as
faces. Lágrimas em todos os olhos. Faixas brancas foram estendidas na fachada
das lojas, dos comércios, nas escolas, na Prefeitura Municipal. Enfim, de algum
modo, as pessoas querem expressar o luto e a saudade que sentem de seus entes
queridos. Santa Maria, no dia hoje, confunde-se com uma cidade mística.
Sentada
em um banco de uma pequena e florida praça, está sentada uma jovem de belos
cabelos cacheados. Ela parece ter o olhar perdido no tempo. Uma lágrima escorre-lhe
pelas faces. Passo as mãos pelo seu rosto tentando enxugar essa lágrima teimosa
que insiste em cair dos olhos da jovem. Apesar de meu esforço, ela não consegue
notar a minha presença. Sopro no ouvido
da bela jovem gaúcha, umas palavras de conforto e de esperança. Pelo menos nessa tarefa, acho que tive
êxito... O esboço de um sorriso achegou-se aos seus lábios e a lágrima foi
substituída por um leve brilho no olhar.
Imagem: http://oglobo.globo.com/pais/veja-imagens-da-boate-kiss-apos-incendio-7440062 |
Caminho
mais algumas quadras pelo centro da cidade e chego à Rua dos Andradas, número
1925. Meus sentidos se turvam e minha percepção extra-sensorial fica um pouco
confusa. Apodera-se de mim um sentimento
de angústia, é como se, de repente, uma grande tribulação me envolvesse. Meu
espírito enfraquece e tento me segurar em alguma coisa, mas é como se tudo ao
meu redor tivessem sido envolto por uma densa nuvem de fumaça. Sinto-me sendo
sugado para dentro de um abismo de tristeza, angústia e depressão. Preciso
reagir, pois, apesar de já aprendido bastantes coisas, ainda não aprendi tudo.
Mas já sei que esse redemoinho que me envolve é uma armadilha que me levará ao
caminho das trevas interiores, onde tudo é choro e ranger de dentes. Preciso
ser forte, reagir, não me deixar tragar por esse turbilhão. Após alguns minutos
de luta, minhas vestes ficam novamente resplandecentes, recobro a lucidez e
chego mais próximos das pessoas que ali estão reunidas. Em plena rua está sendo
celebrado um culto ecumênico. A beleza, a suavidade e o perfume dos belos
arranjos de flores quebram o ambiente de tristeza e o transformam em lugar de
divina inspiração. As flores não são
apenas ornamentos, elas são carregadas de simbolismo e significados. Os lírios,
tulipas, violetas e rosas brancas colocadas ali simbolizam a paz, a pureza, a
lealdade. As rosas e os crisântemos; o
amor e a fidelidade. A morte não é capaz de matar o amor, apenas o transforma.
Aliás, nada é capaz de fazer morrer um verdadeiro amor. Quando uma alma se vai e a outra segue seu
caminho terreno, o amor é a linha invisível que as une. Há também o azul das
violetas representando as moradas celestes. Dos amores-perfeitos, nem é preciso
explicar coisa alguma: o nome já diz tudo. A folhagem verde que dá o toque
especial aos arranjos expressa a esperança que embala o coração dos seres
viventes. As velas queimando também têm seu significado: a brevidade da vida.
Fiquei ali parado, inebriando-me do vinho delicioso advindo daquelas fervorosas
orações. Quão bem fazem as orações às almas que delas tanto necessitam...
Perdão,
falei tanto que até esqueci-me de vos dizer quem sou e qual é o imóvel ao qual
parei em frente. Meu nome é Ângelo Farias Giacomelli, tinha 19 anos quando morri
asfixiado, há um ano, no incêndio que vitimou 242 pessoas, em sua maioria jovens
como eu, na boate Kiss, no centro de Santa Maria. Na Rua Andrada, 1925, funcionava
a boate Kiss.
***
Imagem: http://noticias.uol.com.br/album/2013/01/27/incendio-em-boate-deixa-varios-mortos-e-feridos-em-santa-maria-rs.htm |
Era
sábado, dia 26 de janeiro e eu tinha dois bons motivos para ir à boate Kiss:
primeiro, havia acabado de ser aprovado para o curso de Pedagogia, na
Universidade Federal de Santa Maria e queria comemorar essa conquista junto com
os amigos em uma festa na Kiss. Sempre fui um idealista e achava como acho até
hoje, que a educação e uma ferramenta capaz de transformar, em primeiro lugar
as pessoas, e por conseqüência, a sociedade a qual ela pertence. Os países
ditos desenvolvidos são aqueles em que a educação é peça fundamental na
construção de seus projetos. “Mais uma vez os homens, desafiados pela
dramaticidade da hora atual se propõe a si mesmos como problemas. Descobrem que
pouco sabem de seu “posto nos cosmos”, e se inquietam por saber mais...”, diz o
grande educador brasileiro, Paulo Freire, em sua clássica obra, Pedagogia do
Oprimido. Era a essa vontade de saber mais a qual eu queria me dedicar.
O
outro motivo que tinha para ir a boate era o convite que havia recebido para
participar de em evento na Kiss, promovido pela juventude universitária de
Santa Maria. Na verdade, era uma festa promovida pelos alunos dos cursos de
Zootecnia, Engenharia de Alimentos, Agronegócios, Medicina Veterinária,
Agronomia e Pedagogia. O objetivo era arrecadar fundos para a festa de
formatura dos alunos desses seis cursos. Vários universitários de outros cursos
também aderiram à causa, de modo, que a juventude universitária da cidade
estava bem representada naquela festa. A maioria dos jovens presentes tinha
entre 18 e 24 anos.
Cheguei
à boate por volta das 23h40 da noite de sábado, dia 26 de janeiro de 2013. A
casa noturna havia acabado de abrir as portas. Eu não estava sozinho. Fui
acompanhado por três amigos; Fabrício, Matheus e Carlos e duas amigas; Fernanda
e Aline. Estávamos todos alegres e
entusiasmados era a primeira vez que eu participava de festas na Kiss. Meus
amigos já haviam ido a várias delas. Quando chegamos havia pouca gente na
boate. Nos primeiros minutos do dia 27, os jovens começaram a chegar em grande
quantidade, enchendo o espaço. Era tanta
gente que, até o simples ato de pegar uma bebida no bar, era tarefa difícil.
Quase não havia espaço para caminhar pelo ambiente. Lembro-me de ter perguntado
para Aline:
Imagem: http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/01/estudio-de-fotografia-que-cobria-festa-na-boate-kiss-entrega-fotos-a-policia |
_
Soube que a capacidade de lotação dessa casa é de 690 pessoas. Pelo que vejo já
há por aqui mais de 1.500 participantes. Isso não poderá causar algum tipo de
problema?
_
Qual nada! Já aconteceram várias festas aqui com a casa cheia e tudo correu
normalmente. Fica sossegado. Disse ela despreocupadamente.
Mas
eu não estava sossegado. Meu sexto sentido me dizia que algo terrível estava
para acontecer naquela madrugada de domingo.
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