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O desafio presente de reescrever a história dos escravizados
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Terça-feira, 22 de dezembro
“Canta América
Não o canto de
mentira e falsidade
que a ilusão
ariana
cantou para o
mundo
na conquista do
ouro
nem o canto da
supremacia dos derramadores de sangue
das utópicas
novas ordens
de napoleônicas
conquistas
mas o canto da
liberdade dos povos
e do direito do
trabalhador...”
(Canta
América – Solano Trindade)
Conforme prometido na postagem de
ontem, apresento a vocês a provocante palestra do Professor Dagoberto José da
Fonseca sobre a questão da escravidão e sobre o papel de instituições sólidas
como a Ordem dos Advogados do Brasil e Câmara Municipal de Campinas diante dos
questionamentos sobre o tema.
O professor Dagoberto José da Fonseca,
doutorado em Ciências Sociais pela PUC - São Paulo, exerce atividade docente na
Faculdade de Ciências e Letras na Unesp.
***
Professor Dagoberto |
Palestra
do Professor da Unesp, Dagoberto José Fonseca, proferida no Plenarinho da
Câmara Municipal de Campinas, no dia 16 de dezembro de 2015
O que é a Comissão da Verdade Negra no Brasil?
Essa Comissão da Verdade sobre a
Escravidão Negra no Brasil é uma das comissões mais importantes que nós temos
nesse momento do século XXI. Nós estamos atrasados quase duzentos anos na nossa
história pra retomarmos um princípio que é de fundamental importância, que é
aquilo que moveu uma parte da humanidade a fazer riqueza, fortuna e nome. A
escravidão veio justamente para estabelecer um dado fundamental que foi
riqueza, nome, empreendimento, e política pública.
A escravidão é parte de uma política
pública dos estados nacionais europeus, e Portugal também nesse processo. Isso
fez com que uma política pública que atendesse um, também atendeu o outro
negativamente, que foi fazer um tráfico atlântico, que na verdade, foi um
grande saque de população, um sequestro de população, portanto, um crime que se
cometeu ao longo de séculos. E é importante entender que nós não estamos
falando da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, apenas nos 350
anos de escravidão. Seria, para nós, minimizarmos o problema. O problema é
muito maior, porque nós estamos vivendo há vinte e um séculos, desde o início
da era cristã, o flagelo da população negra no mundo. Nós estamos pegando uma
parte pequena dessa história: os 350 anos.
Então é um grande desafio, sim, mas é
um desafio que nós precisamos considerá-lo como desafio para reconstruir a
humanidade. Uma humanidade que foi escravizada, e uma humanidade que
escravizou, portanto, tanto uma parte quanto outra, fizeram o mal a si mesma.
Uma, objeto do processo, e outra, sujeito do processo, sujeito enquanto algoz.
Isso faz com que nós tenhamos que
entender que esse debate é um debate difícil, é um debate difícil porque nós
temos no seio da questão que se coloca pra comissão as três perguntas já
mencionadas: Escravidão é crime? Se nós entendermos que escravidão é crime,
significa entendermos que houve um crime e alguém precisa pagar por este crime,
que significa um crime imprescritível. É fundamental entendermos que um crime
imprescritível é um crime que não prescreve a qualquer tempo. Talvez, lá no
século XXX, alguém possa levantar a questão, e nós tenhamos que olhar para trás
de novo. E olhar para trás não é um problema. Olhar para trás é fundamental
para a gente olhar para o amanhã.
Então, dentro desse contexto, duas
questões se colocam pra nós. A primeira, é responder se é um crime. A segunda,
quem cometeu? E a terceira, como se repara. Agora, pra estas três questões, uma
se coloca antes de todas elas: A nossa capacidade de reescrevermos a história.
Então, o que a comissão tem à frente é, justamente, a capacidade de alterar o
passado. Não é apontar um futuro de reparações de políticas públicas
afirmativas, é a capacidade que nós vamos ter, enquanto membros da Comissão da
Verdade, no Brasil inteiro, de reescrevermos a história e alterarmos a
história. Esse é o maior desafio.
Por que isso? Porque nós temos uma
academia, uma ciência, que já estabeleceu que o escravo era um animal, que o
escravo era mercadoria, que o escravo era coisa, que o escravo era objeto, e para
reescrevermos a história, nós vamos ter que desdizer tudo o que a academia já
disse, inclusive os bem-intencionados. O que significa isso? Nós vamos ter que
ter a capacidade de alterar os conceitos que fundamentaram a história da
escrita brasileira. Isso nos coloca diante de um desafio imenso, que é concber
um novo país a partir de uma outra escrita, portanto, nós vamos ter que lidar
com uma ideia, que, isso é importante que todos os membros desta Casa, que é
uma Casa política, não uma Casa de fazer leis, e política significa
convencimento, persuasão. Isso que se coloca, portanto, que esta Casa, ao
assinar este termo, não foi o vereador Carlão que assinou, foi a Câmara Municipal
de Campinas, que assinou um termo. Esta Casa, enquanto casa política terá
também que fazer convencimento político pra alterar a história.
Isso nos coloca em qual dimensão: Não
há escravos. O Elesbão não foi escravo. O Elesbão foi escravizado. Um homem que
foi tornado escravizado, submetido a uma condição de escravizado, e que perdeu
a humanidade em função da condição que o impuseram. Isso faz com que nós
tenhamos que alterar o conceito de escravo para o conceito de escravizado.
Alterarmos a concepção de natureza dada por uma concepção de relações sociais
políticas e economicas com base filosófica e teológica.
É nesse contexto que nós temos que
reescrever a história à despeito das universidades presentes em Campinas. À despeito
das maiores e melhores universidades presentes no Estado de São Paulo, as três
irmãs, e eu estou em uma delas. Eu sou da Unesp. Tem os membros da USP e os
membros da Unicamp. E nessas discussões a gente tem que fazer o quê? A
capacidade de alterarmos a escrita da história para a gente alterar a história
em 180 graus. Esse é um desafio fundamental para os membros da comissão. Retirem do
vocabulário e da mente de vocês o termo escravo. Se os membros da comissão não
entenderem que eles precisam alterar a língua, porque a língua é política, ela
emana conceitos, nós estamos mortos. Então o desafio também é interno, mudança
de concepção.
Essa
questão se coloca, portanto, num outro patamar do desafio: Se o africano, se o
negro no Brasil foi escravizado, foi escravizado por quem? E aí, eu tenho nome
e sobrenome. Eu tenho todo um conjunto de dados que estão nos fóruns, nos
cartórios, e na Câmara Municipal de Campinas, que nos tem muitos dados a
fornecer. Isso faz com que essa Casa vai viver um momento impar em sua
história, que é abrir os documentos, e abrir documentos deste nível não é abrir
documentos de meia dúzia, uma dúzia, sessenta, cem pessoas que viveram sobre o
regime militar no país. E eu estou falando sobre a outra Comissão da Verdade
sobre a Ditadura Militar. A Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no
Brasil, ela caminha na esteira da comissão sobre os desaparecidos políticos da
ditadura militar, mas nós estamos abrindo um momento que não é para trabalhar
em torno de uma centena de pessoas, ou de milhares de pessoas, mas nós estamos
abrindo documentos para trabalhar em torno de milhões de pessoas. Então, esse é
um grande desafio.
E esse
desafio se coloca, justamente, para que a gente considere que a sociedade civil
de Campinas precisa estar o mais próximo possível dessa Casa, porque essa Casa
vai ser pressionada, tanto quanto os membros da OAB serão pressionados, serão
coagidos. Isso já aconteceu em outras cidades. Recados “não mexam com isso
porque vocês sabem onde isso vai dar”. Então, de modo que vocês precisam estar
muito atentos de que nós estamos mexendo no maior país vespeiro que esse país
tem, que é a sua conta em relação ao seu passado criminoso. Essa é uma primeira
parte de minha fala.
A
segunda parte é pensar que se o termo escravizado é o termo que condiz com a
realidade, nos também teremos que tirar do nosso mapa e do nosso conceito, e de
nossa cabeça, o conceito de senhor de escravos, porque um criminoso não pode
ser senhor. Um criminoso é criminoso. Um criminoso, ele tem que ter, de fato,
um termo lhe condiz: criminoso, não de senhor. Porque damos ao criminoso o
título de senhor, é nos colocar como cúmplices de um crime, é dar-lhe
autoridade que ele não tem. Isso faz, então, com que nos tenhamos essa dupla
questão e verificarmos que nós estamos lidando, sim, com um crime. E um crime
tem que ser tipificado. Qual o crime foi cometido. E nós vamos verificar que
toda e qualquer tipificação, vai cair naquilo que nós concebemos como crime
imprescritível e crime hediondo. Houve sequestro? E sequestro é crime hediondo.
Houve mortes em larga escala? Isso é genocídio.
Portanto,
nós temos todas as convenções internacionais que este país assinou, nos
apoiando. Isso faz com que nós possamos mexer a história desse país rapidamente,
se nós tivermos capacidade política para fazê-lo. Isso faz com que a gente
altere a história. Agora, pra que isso possa vir, nós todos sabemos, nesta
sala, e o país todo sabe, que houve um crime, mas ainda assim, nós precisamos
provar que houve um crime. E como é que se cobra o crime? É nós trazermos a
autoria do criminoso.
Nós
não podemos cair naquilo que o velho e bom político do século XIX, tido e
havido como um grande abolicionista, Joaquim Nabuco, que vai dizer que, aonde
todo mundo vive numa situação de criminalidade, nós não podemos acusar alguém
de criminoso porque todo mundo convive com o crime, logo não há crime. Não é
verdade isso. Nós tenhamos a capacidade a trazer, efetivamente, que não houve,
por parte da população negra deste país, cumplicidade neste ato. Houve crime? O
crime é imprescritível. No que tange à Campinas, Campinas foi a última cidade
da Província de São Paulo a aceitar o fim da escravidão. Isso coloca Campinas
no lugar privilegiado, porque Campinas mostrou a sua capacidade política de
resistir diante de uma lei: a de 13 de maio de 1888. Por isso que foi a última.
E só foi a última porque tinha a capacidade política e econômica pra resistir.
E teve capacidade política e econômica pra resistir, porque fez poupança nas
costas dos outros. Fez poupança, enriqueceu, em função de um crime, cometido
coletivamente por um segmento da população campineira. Esta comissão de
Campinas, juntamente com esta Casa, tem a obrigação de trazer à tona os nomes e
sobrenomes daqueles que viveram sob o ato criminoso.
O
desafio é grande, mas o medo não pode ser maior do que o desafio. E nós não
podemos cair no desafio de entender que todo e qualquer branco cometeu crime,
porque isso é banalizar o ato, e isso enfraquece a acusação. Por isso que essa
Casa é fundamental enquanto Instituição pública. E neste ato, também forçar a
que as outras Instituições de Campinas, os arquivos, os cartórios, os fóruns,
as igrejas, possam abrir também o seu cofre de nomes, porque não há indulgência
nesse caminho. É de fundamental importância que a gente consiga estabelecer
isso. Pra que? Pra repor a história, antes de qualquer coisa. Repor a história
no seu devido lugar, e termos a capacidade de novamente reescrevê-la para
alterar o passado.
Pra
que alterar o passado? Eu tenho ouvido em muitos lugares. Tive a infelicidade
de ouvir isso de um professor, numa banca, agora recentemente, na Universidade
de São Paulo, lá no Campus de São Carlos. A
partir de uma tese de doutorado, de uma menina chamada Joana D’arc de Oliveira,
com uma tese primorosa sobre a população negra são carlense. A tese trazia
vários dados, e ao final, o professor dizia: “Pra que mexer nisso?” Pra que
trazer esse passado terrível da cidade de Campinas. Nós não vamos conseguir
mudar nada porque o que passou, passou. São águas passadas. O fato é que, se
nós entendermos que isso são águas passadas, nós estamos cometendo um erro
histórico, porque a história, ela pode ser alterada no presente. E essa
comissão é justamente isso, a capacidade de estabelecer honra, orgulho, e
colocar a verdade sobre a mesa pra que a gente possa olhar pra tudo isso e
fazer com que aja a reposição da história, e aqueles que forem condenados por
ela possam pagar por ela. E pagar por ela não significa você estabelecer
exumação de corpos, porque não vai ter cemitério em Campinas pra gente exumar
todo mundo.
O que
se coloca pra nós é que, quando o crime é imprescritível, alguém ainda mantém
fortuna no passado. Enriqueceu com um passado criminoso, um passado crime que é
imprescritível, portanto, fortuna amealhada num passado criminoso. Isso faz
então com que a gente possa levantar nomes, famílias, heranças. É disso que se
trata. Nós não estamos falando de outra coisa que é mexer com passado para
trabalhar o presente e construir outro futuro. Nós não estamos trabalhando com
a lógica de que as pessoas possam estabelecer perdão, desculpar o passado do
meu antepassado. A Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, à
luz da experiência da comissão sobre a ditadura militar, ela vem de um caminho
mais antigo, que é da experiência da África do Sul, da presidência de Desmond
Tutu, sob a coordenação de Nelson Mandela, dos crimes do apartheid, é colocar
um frente ao outro pra que se veja como é possível reparar esse passado, mas
que ele precisa ser reparado política e economicamente falando.
E qual
é o desafio dessa Casa? Qual é o desafio da OAB? Arbitrar este processo. Em
Araraquara de onde eu venho, nós estamos com este desafio, o mais interessante
que nós temos em Araraquara, é o fato de que, quando surgiu a Comissão da
Verdade, eu fui conversar com quem? Com um ex-juiz, ex-professor, amigo meu, de
oitenta anos, Luís Fabiano Correa, e disse: “Luís Fabiano, agora é a hora.” Por
que? Porque Luís Fabiano é de uma família que foi escravagista. Ele sempre diz:
“Dagoberto, eu tenho uma dívida para com vocês. Eu falei: “Então agora é o
momento de pagar. Com a tua família, de sete filhos. Uns são advogados. Um na
Procuradoria, outro na Defensoria. Agora é vez de vocês irem à OAB chamar o
Veiga (Dr. João Milani Veiga – Presidente
da OAB de Araraquara) pra uma reunião, e a gente institui isso (a Comissão da Verdade), e doa a quem
doer”. Ele disse: “Estou dentro”, e fez isso.
Ou
seja, nós precisamos comprometer o branco, aquele que sabidamente cometeu um
crime, pra que a gente possa estabelecer uma relação, desde já, de reparação.
Comprometê-lo no sentido de estabelecer, aquilo que diz o bom e velho
intelectual, Martin Cano, psiquiatra: “Se seu antepassado cometeu um crime, e
se você mantiver o crime, você continua sendo um criminoso, mas se seu
antepassado cometeu um crime e você vem à luz do presente dizer que o seu
antepassado cometeu um crime e você quer ver como você repõe, repara este passado,
você está inocentado diante da história”. Então a questão é trazer também essa
população pra dentro da discussão. Não fazer com que eles se afugentem da
discussão, mas os tragam pra ela, pra vir ao debate, pra construir um outro
projeto de Campinas.
Eu
conheço Campinas pelo meu pai, falecido em maio deste ano, que cresceu nessa
região, e viveu nessa região. O meu pai é de Indaiatuba, aqui do lado. Ele
dizia: “Em Indaiatuba foi difícil, mas em Campinas foi muito mais". Porque
minha vô, que eu conheci, que eu convivi, nasceu em 1893. Então nós sabemos
muito bem o que significa este passado. Isso faz então com que nós tenhamos que
olhar para este passado e ter a responsabilidade com os nossos antepassados. E
trazer a verdade é repor os nossos antepassados no lugar devido da história que
eles vivenciaram. Todo e qualquer negro neste país, a partir da Comissão da
Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, tem a responsabilidade de trazer o
seu passado à mesa, contar a sua história, e Campinas não pode fazer diferente,
não pode fazer uma comissão de poucos, mas tem que ser uma comissão da cidade
de Campinas. Trazer todos que queiram falar. Trazer objetos, trazer lembranças,
e aí, entendo eu, que vocês precisam ter uma parceria forte com a Câmara, mas
ter uma parceria forte com Instituições de Campinas que possam fazer um grande
documentário sobre isso, sobre essa realidade, para expor isso, colocar à tona
tudo isso, pra que, não que haja pessoas que se envergonhem desse passado, mas
que hajam pessoas que possam agir no presente diante deste passado.
E volto a dizer: “Vereador Carlão, o seu desafio é grande, mas eu diria a Vossa Excelência, o desafio da presidência desta Casa é maior”. Aqui o Sr. apenas representa a presidência desta Casa, mas é neste momento que o Sr. representa o presidente desta Casa, que eu não estou falando com o vereador Carlão, eu estou falando com presidente da Câmara Municipal de Campinas, ao qual Vossa Excelência representa. E esta Comissão, a partir deste ato, dessa cumplicidade, dessa parceria, desse acordo, desse convênio de cooperação técnica, faz com que esta Casa de leis possa colocar todos os partidos, todos os vereadores nesta missão de reconstruir a história de Campinas.
E volto a dizer: “Vereador Carlão, o seu desafio é grande, mas eu diria a Vossa Excelência, o desafio da presidência desta Casa é maior”. Aqui o Sr. apenas representa a presidência desta Casa, mas é neste momento que o Sr. representa o presidente desta Casa, que eu não estou falando com o vereador Carlão, eu estou falando com presidente da Câmara Municipal de Campinas, ao qual Vossa Excelência representa. E esta Comissão, a partir deste ato, dessa cumplicidade, dessa parceria, desse acordo, desse convênio de cooperação técnica, faz com que esta Casa de leis possa colocar todos os partidos, todos os vereadores nesta missão de reconstruir a história de Campinas.
Obrigado.
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