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Projeto Ruas de Histórias Negras resgata o valor de lideranças negras da cidade de Campinas e do Estado de São Paulo
Posted by Cottidianos
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Sexta-feira,
13 de novembro
“Existe uma
história do povo negro sem o Brasil.
Mas não
existe uma história do Brasil sem o povo negro”.
(Januário
Garcia)
O
céu da manhã de domingo (7) estava nublado e cinzento. Todos os indícios
prenunciavam um dia chuvoso. Porém, como chuvas por esses lados tem sido coisa
rara, duvidei um pouco de que fossemos ser abençoados com este fenômeno natural
tão benéfico: aos reservatórios, para torná-los cheios e garantir o
abastecimento da população; e as cidades, para umedecer o ar, afastar a poeira
das ruas, enfim, tornar o clima mais leve. Por falar em fenômenos naturais,
sinto que eles estão um tanto quanto diferentes do que eram antes, a começar
pela chuva. Antes, as chuvas duravam o dia inteiro, às vezes, dias seguidos de
chuva, entremeados de um tímido sol. Se a chuva não durava o dia inteiro, pelo
menos passávamos algumas horas vendo aqueles pequenos pingos d’água a cair do
céu. Hoje não, elas vêm e vão embora com a velocidade da luz. Dez ou vinte
minutos de chuvarada e acabou a brincadeira. Na maioria das vezes, nem chega a
molhar direito o solo. Acho que chegou a hora de sermos realistas: O planeta
pode ficar sem água. Não quero aqui pregar o apocalipse, mas há questões que,
de tão óbvias acabam escapando a nossa reflexão, como por exemplo, a de que o
planeta é água, nós somos, em grande parte, formados por água, e água é fonte
da vida, consequentemente, sem água não há vida.
Entretanto,
apesar de essa ser uma questão de suma importância, deixemo-la de lado por
enquanto. Voltemos à manhã de domingo cinzenta, e um pouco fria, em Campinas, e
continuemos a narrativa deste ponto.
Preparava-me
para ir a dois eventos na Vila Industrial, bairro da região sul da cidade. A
Vila tem história, e muita história para contar, afinal foi um dos primeiros
bairros surgidos na cidade. Apesar da proximidade com o centro da cidade, ele
ainda conserva um pouco do passado, mesclando construções antigas com
construções modernas, em uma agradável harmonia. Por exemplo, ali está
localizada a Vila Manoel Dias, que foi um reduto de operários na década de 30,
que foi tombada e se tornou patrimônio histórico de Campinas. Na Vila também
está situado o Teatro Castro Mendes.
Enquanto
caminhava pelas ruas da cidade em direção ao bairro em questão, pensava nas ruas
como espaço público por excelência. Lugar de encontros e desencontros. Lugar de
procissões religiosas, e de manifestações artísticas e culturais. Em oposição a
casa, lugar de diálogo, de intimidade, a rua é verbo impessoal. As ruas também
expressam a competitividade do mundo atual, no vai e vem de automóveis e pessoas,
correndo de um lado para outro, apressadas. Entretanto, acima de tudo a rua
ainda é um espaço democrático: Nela andam negros e brancos, ricos e pobres.
A
grande maioria das administrações municipais costuma atribuir nome de pessoas
às ruas de suas cidades. Então, nos deparamos com outro aspecto interessante
desses espaços públicos. Quando caminhamos por alguma rua, estamos passeando
por sua história. São pés que pisam na pedra, ou no asfalto. São pés que pisam
em recortes da história. Muitas vezes, passamos de modo tão mecânico que esses
detalhes escapam a nossa compreensão. Não exercemos a nossa curiosidade e
deixamos passar a chance de saber um pouco mais, de costuramos a grande colcha
de retalho que forma a realidade que nos cerca.
Aproximava-me
da Vila Industrial. Ali aconteceriam dois momentos muito belos e especiais. O
primeiro deles era o lançamento do Projeto
Ruas de Histórias Negras, na Rua Mestre Tito. O projeto, de autoria do
vereador Carlão, do PT, consiste na instalação de placas com informações sobre
personalidades negras que foram homenageadas com nomes de ruas, praças e locais
históricos da cidade de Campinas. As placas foram solicitadas pela
administração municipal aos Serviços Técnicos Gerais (Setec), que confecciona e
instala as placas. De início serão 42 a ser instaladas em diversas regiões da
cidade. A apresentação do projeto havia acontecido na quinta-feira (6), no
Plenarinho da Câmara Municipal de Campinas.
Saí
da Avenida João Jorge, e entrei à direita, na rua Dr. Sales de Oliveira.
Atravessei duas quadras, passei em frente ao Teatro Castro Mendes e, alguns
metros após, já estava em frente à Rua Mestre Tito, primeiro homenageado do
projeto. No local já estavam alguns adeptos de religiões de matrizes
afro-brasileiras, com suas costumeiras vestes brancas. O vereador, Carlão
também já estava por lá e conversava com os religiosos e demais convidando, e também
atendia a imprensa. Pouco depois chegou o Dr. Ademir José da Silva, presidente
da Comissão de Igualdade Racial e da Comissão da Verdade sobre a Escravidão
Negra da OAB-Campinas.
“Nós
procuramos construir esse projeto com o objetivo de contribuir com a Lei 10.639
para a implementação dessa lei nas escolas, e pra que a gente possa trazer um
conhecimento para a população de Campinas, dos negros, dos heróis que nós
conhecemos na história, dos negros e negras importantes daqui da cidade e do
Estado de São Paulo”, disse Carlão à TV Câmara, citando em sua fala a lei
federal que institui o ensino da história e cultura africana nas escolas.
“Nós só estamos aqui hoje porque esse pessoal
trabalhou, esse pessoal lutou, e esse pessoal tombou, muitos morreram por causa
dessa luta, dessa questão da escravização, e do racismo”, afirmou a
presidente do Grupo Força da Raça, Edna Almeida Lourenço, que também coordenou
os seis meses de pesquisa, nos quais contou com a ajuda de alunos da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).
E
o homenageado, quem foi? Mestre Tito (Tito de Camargo Andrade) chegou ainda
adolescente ao Brasil, após ser capturado na África, e de sofrer os horrores do
porão dos navios negreiros durante a travessia do atlântico. Em Campinas, foi
comprado pelo capitão-mor Floriano de Camargo Andrade. Tito conquistou a
confiança do capitão-mor, e este lhe concedeu a liberdade. Floriano tinha uma
estima tão grande por Tito que, ao alforriá-lo, emprestou-lhe também o
sobrenome. Mestre Tito era grande curandeiro, exímio conhecedor de plantas e
raízes medicinais, tão abundantes em nossas matas naquela época. Os seus conhecimentos
e domínio das ervas que curam eram tão vastos que ele chegava a ser procurado
por médicos que praticavam a medicina tradicional.
Além
de ter ajudado a curar muita gente através das ervas medicinais, Mestre Tito
teve outra atuação importante na história da cidade. Nos idos de 1800, o
preconceito era tão forte quanto as marcas do chicote que estalavam nas costas
do povo negro. Até a participação deles em grupos religiosos era proibida.
Mestre Tito e outros negros participavam de um grupo religioso chamado,
Irmandade do Rosário, quando foram expulsos dela. Apesar de contrariados, eles
conseguiram outro local para se reunir e fundaram uma nova irmandade: a
Irmandade de São Benedito. Em 1835, surgiu a ideia de construírem uma nova
igreja em homenagem a São Benedito, o santo negro. A tarefa não era nada fácil,
muito menos vencer a resistência das autoridades, porém, a fé e obstinação de
Mestre Tito fizeram com que o sonho fosse realizado. Conseguiu autorização para
que a igreja fosse construída, e para arranjar dinheiro para erguer a
construção, ele e seus companheiros saiam pelas ruas da cidade, pedindo doações
para a obra. Mestre Tito morreu em 29 de janeiro de 1822, antes de ver a obra
completada. Após sua morte, Dona Ana de Campos Gonzaga, encarregou-se de dar
prosseguimento à realização da obra.
O Projeto Ruas Negras de Campinas
possui, além do caráter de resgate da história do povo negro, tem por objetivo, fortalecer a estima nos descendentes desse povo que atravessou séculos de
opressão. “Em nosso ponto de vista, os
referenciais deles são um pouco distorcidos em relação aos negros. São
lembrados os açoites, o navio negreiro e a discriminação no mercado de
trabalho, mas são esquecidas as pessoas que se destacaram nas áreas de
engenharia, humanas. O objetivo é mostrar que elas [crianças] podem fazer a diferença
apesar de tudo isso”, afirmou o parlamentar, em entrevista ao portal Globo.
com, em 07 de novembro.
Após o lançamento do projeto, e da
homenagem a Mestre Tito, todos se dirigiram ao Teatro Castro Mendes. O
burburinho de vozes preenchia o ambiente. Às onze horas da manhã, os músicos da
Orquestra Sinfônica de Campinas, adentraram o palco ocupando cada qual seu
lugar defronte aos seus respectivos instrumentos. Estando todos os músicos a
postos, o maestro Victor Hugo Toro, subiu ao palco. Apagaram-se as luzes da plateia,
acenderam-se as luzes do palco. Iluminados pela luz que vem do alto, os músicos
da orquestra levaram o público a uma viagem pelo reino dos Orixás, através das
três peças apresentadas.
A primeira peça apresentada pela
orquestra foi a Sinfonia dos Orixás, escrita por Almeida Prado (1946-2010), em
1984-85. A obra foi concluída em 05 de janeiro de 1985, e apresentada em março
daquele mesmo ano, no Centro de Convivência Cultural de Campinas, sob a
regência do maestro Benedito Juarez. “Esta peça foi encomendada, executada em
sua estreia e gravada pela Sinfônica de Campinas em 1985. Em minha avaliação,
trata-se da maior sinfonia brasileira da segunda metade do século 20”, afirmou
o atual maestro, Victor Hugo, em reportagem do jornal Correio Popular, em 06 do
corrente mês.
“Sob
o aspecto extramusical, a Sinfonia dos Orixás é a maior e mais ambiciosa
realização de Almeida Prado que utiliza a temática afro-brasileira. Além de
encontrarmos um retrato sonoro de 15 orixás, a própria composição da orquestra
sofreu influência direta, com a inclusão de 8 percussionistas para executar 21
diferentes instrumentos”, afirma Carlos Fernando Fiorini, em “SINFONIA DOS
ORIXÁS” DE ALMEIDA PRADO: UM ESTUDO SOBRE SUA EXECUÇÃO ATRAVÉS DE UMA NOVA
EDIÇÃO, CRÍTICA E REVISADA”, tese de Doutorado em música apresentada ao
Instituto de Artes da Unicamp, em 2004.
Sinfonia dos Orixás começa com uma
Saudação a Exu, erroneamente, confundido com uma figura do mal, e apresenta em
seguida uma manifestação aos demais Orixás. Em movimentos, às vezes calmos, às
vezes agressivos, às vezes lento, às vezes rápido, Almeida Prado, nos legou uma
obra de rara beleza.
Apesar
de ser considerada a maior sinfonia brasileira da segunda metade do século XX,
a peça poucas vezes foi apresentada pela Sinfônica de Campinas. Soube por
fontes organizadoras do evento que a cada vez que a Sinfonia aos Orixás é
apresentada, há conflitos entre os músicos da orquestra, pois, alguns deles são
evangélicos e se sentem incomodados em tocar uma sinfonia aos orixás,
principalmente uma que começa com a saudação a Exu. Desta vez não foi
diferente, era quinta-feira, faziam-se os últimos ensaios e a discussão
continuava entre o grupo. Alguns músicos não queriam apresentar a peça. O
Secretário de Cultura teve que intervir de maneira enérgica, e pelo visto deu
resultado, pois no dia apresentação todos se portaram digna e respeitosamente
em prol da arte e da cultura. As pessoas podem até ser preconceituosas, a arte
não. A arte deve voar livre e altaneira como voa o condor.
Ao
final da Sinfonia dos Orixás, houve um breve intervalo, e os músicos retornaram
ao palco para executar a peça, Candomblé,
de Chiquinha Gonzaga. Finalizando a apresentação, a orquestra executou, Maria Jesus dos Anjos - Cantata Umbandista.
Muitas
outras atividades artísticas, culturais e religiosas marcarão as comemorações
do mês da Consciência Negra. Quanto tempo já não se passou desde que a Lei
Áurea foi assinada e os escravos libertos? 124 anos já se passaram e ainda
continuamos discutindo a igualdade dos negros perante toda a sociedade. 124
anos e o povo negro ainda continua lutando por um lugar ao sol. Enquanto isso,
a sociedade escravista ainda parece viver no coração de muitos corações
retrógrados, e são essas mentes retrogradas que ainda continuam contaminando a
sociedade moderna como o vírus do preconceito e da discriminação. Apesar de
todas essas questões, é bonita a luta dos afrodescendentes para conquistar, na
sociedade, o papel de destaque que merecem, de ser enfim, sujeitos de sua
própria história.
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