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Isaura: A escrava que conquistou o mundo
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00:58
Sexta-feira,
20 de novembro
Leôncio (Rubens de Falco) e Isaura (Lucélia Santos) |
Era nos primeiros anos do reinado do Sr.
D. Pedro II.
No fértil e opulento município de Campos
de Goitacases, à margem do Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia
uma linda e magnífica fazenda.
...
A casa apresentava a frente às colinas. Entrava-se
nela por um lindo alpendre todo enredado de flores trepadeiras, ao qual
subia-se por uma escada de cantaria de seis a sete degraus. Os fundos eram
ocupados por outros edifícios acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros,
por trás dos quais se estendiam o jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia
perder-se na barranca do rio.
Assim
começa um dos mais famosos romances da literatura brasileira: Escrava Isaura,
lançado em 1875. Nessa época, as campanhas abolicionistas estavam em efervescência. A partir de 1870, por influência da Europa,
crescia em diversos setores da sociedade brasileira, o repúdio a escravidão,
considerando-a um retrocesso nos campos sociais, políticos e econômicos da
nação. Formaram-se dois campos de batalha: escravistas x abolicionistas. Os
primeiros nadavam contra a maré, ao querer que o Império continuasse a utilizar
a mão de obra escrava, indo de encontro à onda de liberdade que soprava na
Europa, continente que já havia afastado para longe de si os grilhões da
escravidão. Os abolicionistas queriam a modernidade que vinha do continente
Europeu, símbolo de humanidade e desenvolvimento, novos modos de estar no mundo
nos quais o trabalho servil não encontrava lugar. Foi em meio à essa sociedade
imperial dividida que o romance de Bernardo Guimarães teve lugar, romance que,
inclusive, projetou seu autor para a fama e o sucesso, tornando Escrava Isaura,
um dos romances mais populares em nossa literatura.
O
romance fez um sucesso estrondoso assim que foi lançado, principalmente, por se
tratar de uma história de amor temperada fortemente com os dois temas que incendiavam
a sociedade da época: escravismo e abolicionismo. Apesar de todo o sucesso do
romance, de já ser um autor consagrado, as luzes do reconhecimento ainda não
estavam de todo sobre Bernardo Guimarães. Foi preciso que um leitor especial
dissesse que tinha lido o romance, que tinha gostado, e que admirava seu autor.
Esse leitor especial foi D. Pedro II. Em 1881, Bernardo voltara a morar em Belo
Horizonte. Naquele ano, o monarca, estando em visita à província de Minas, fez
questão de visitar o autor de Escrava Isaura. Fez-lhe muitos elogios e
revelou-se leitor do romance. Com tão grande aval, a sociedade política mineira
passou a ver com outros olhos aquele a quem consideravam malsucedido.
O
romance usa a figura de uma escrava bela, sensível e branca, em cujas veias
corre sangue africano, para tratar do constrangedor e desumano tema da
escravidão e do abismo criado pela diferença de classes sociais. Temas esses
que servem como pano de fundo para uma história de amor, na qual uma escrava
sonha com a liberdade e com o amor verdadeiro, mas vê esse sonho ser várias
vezes adiado por um senhor cruel e obsessivo.
Apesar
de ser uma história envolvente e emocionante, seus personagens,
psicologicamente falando, não variam muito em suas atitudes e ações, que seguem
uma linearidade durante toda a obra.
Cem
anos depois, entre 11 de outubro de 1976 e 5 de fevereiro de 1977, a Rede
Globo, exibiu uma adaptação livre do romance Escrava Isaura. A adaptação para a
TV foi feita por Gilberto Braga, com direção de Herval Rossano e Milton
Gonçalves. Tal quando da ocasião de seu lançamento, a novela, exibida em 100 capítulos,
tornou-se um dos clássicos da TV brasileira, alcançando também um enorme
sucesso mundial, já tendo sido vendida para mais de 80 países. E uma das
novelas mais reprisadas da Globo.
Continuo
o texto falando dessa adaptação feita por Gilberto Braga. Nela encontramos, a
escrava Isaura. Esta é uma escrava órfã que foi criada pela sua senhora, Ester,
a quem chamava de madrinha. Ester sempre tratou Isaura com muito carinho e a
educou como a uma filha, ensinando-lhe a arte da música, da leitura, o domínio
das línguas estrangeiras. Isaura era mais uma dama de companhia de sua senhora
do que propriamente uma escrava, embora também não pudesse ser considerada
livre. Já o senhor de Isaura, Comendador Almeida, apenas a tolerava para fazer
os gostos da esposa Ester. Mas tudo isso tem explicação no passado.
Houve
na fazenda do Comendador Almeida uma escrava, mestiça, muito bonita, de pele
muito clara, cheia de alegria, chamada Juliana. Ela era a mucama favorita de
Dona Ester — esposa do comendador —, e as duas viviam em harmonia. O comendador não respeitava muito o casamento
com Ester, e frequentemente deitava-se com as escravas, principalmente, se elas
eram bonitas. A beleza de Juliana chamou a atenção do comendador e ele passou a
olhar para ela com os olhos libidinosos do desejo. Passou então a assediá-la
constantemente. Ester descobriu o assédio do marido para com a
escrava. Porém, o comendador continuou a insistir nisso. Juliana, porém, era mulher muito digna e não
cedeu aos caprichos do comendador. Irado, ele manda açoitá-la no tronco. A escrava,
que só fazia trabalhos domésticos leves, foi obrigada a trabalhar na lavoura. Almeida
recomenda ao feitor que seja rigoroso com a escrava, mas o feitor acaba se
apaixonando por ela. Ao descobrir o romance, Almeida expulsa o feitor da
fazenda. Grávida do feitor e, enfraquecida, pelo duro trabalho na lavoura,
Juliana não resistiu e morreu ao dar à luz a pequena Isaura. Dona Ester, então,
mesmo contrariando a vontade do marido, resolve proteger a menina, cuidar da
educação dela, e encaminhá-la na vida.
De
certa forma, essa história de amor não correspondido é revivida mais tarde
entre Leôncio, filho do comendador, e Isaura, filha da escrava falecida. Ao
abordar esse assunto sem assim o colocar dessa forma, Bernardo Guimarães
denuncia a devassidão e destruição dos valores morais e familiares nas fazendas
escravocatas. Muitos senhores abusavam sexualmente de suas escravas e, estas
não podiam dizer nem fazer nada. As que não cediam aos caprichos de seus
senhores sofriam toda espécie de castigos e humilhações.
Mas,
voltemos a Isaura. Esta, educada como moça da corte, vive tranquila em
companhia do comendador e de sua senhora. Almeida, às vezes, a alfineta com
palavras, mas nada que perturbe a paz da escrava. Isaura ajuda Januária, a
cozinheira da casa grande, a preparar pratos finos, retirados de receitas de
livros em Frances, é convidada a tocar piano na sala para os convidados, faz a
leitura de livros para sua senhora, passeia pelo jardim. Esse paraíso na vida
de Isaura dura apenas até que, Leôncio, filho do comendador, se junta ao grupo.
O jovem havia estado na Europa estudando. À princípio seria esse o motivo de
sua viagem. Depois o coronel descobre que o filho levava, na Europa, uma vida
boemia, bem longe dos bancos da faculdade.
A
ver Isaura, linda, meiga e bela, o jovem é tomado de desejo por ela, mas Isaura
não cede aos caprichos, foge de seus beijos. Leôncio desenvolve uma verdadeira obsessão
pela escrava, que, tal como sua mãe, só faz na casa, trabalhos leves. Leôncio
casa-se com a linda jovem Malvina, não porque a ame, mas para colocar as mãos
na fortuna do pai. Mesmo após o casamento, continua a assediar a escrava. Isaura
sempre fugindo de suas investidas.
A
escrava apaixona-se por um jovem de uma fazenda vizinha, chamado Tobias, e o
jovem também se apaixona por Isaura. Leôncio coloca todos os obstáculos para
que esse amor não seja concretizado. Vendo que havia perdido o jogo, arma uma
cilada para assassinar Tobias incendiando uma cabana próxima a um moinho nos
arredores da fazenda. Às escondidas, a mulher de Leôncio, entra à noite, na
cabana para libertar Tobias. Sem saber que a esposa também está dentro da
cabana, Leôncio manda os feitores incendiar a cabana, matando os dois.
Após
a morte dos pais, e do assassinato da esposa, aumentam as investidas contra Isaura.
Como a escrava não cede a esses apelos sexuais, os castigos aumentam. Isaura
foge com pai, que descobrira morar numa fazenda vizinha. Nessa fuga, ela
descobre Álvaro, um rico fazendeiro, abolicionista. Os dois se apaixonam. Após algum
tempo, Leôncio descobre o paradeiro de Isaura, e a traz de volta para a
fazenda. Manda chicoteá-la no tronco, envia também para os trabalhos pesados no
canavial. Entretanto, na corte, Álvaro, luta pelo amor de Isaura. Descobre a
falência de Leôncio e compra-lhe todos os bens, inclusive os escravos. Álvaro casa-se
com Isaura e alforria a todos os escravos.
Assisti,
recentemente, o box contendo 05 DVD’s, com todos os capítulos da novela Escrava
Isaura, lançado pela Globo Marcas. Ao assistir aquela versão romanceada da
escravidão fiquei pensando em quão dura era a vida dos escravos, principalmente
das mulheres escravas, que eram obrigadas a ser objeto sexual de seus senhores.
Falando da mocidade escrava, assim questiona Joaquim Nabuco: “A escrava, essa
de quinze a dezesseis anos, às vezes vinte antes, nos limites da impuberdade, é
entregue, já violada às senzalas. Aquela nasceu virtualmente sem honra. Ao alcance
da primeira violência, sem proteção, sem tribunal, sem família, sem lei para
que apelar, que pode ela contra a cilada?” Havia, claro, os escravos que tinham
sorte de ter bons senhores, que mesmo em meio aquela sociedade escravocrata,
tratavam seus escravos com alguma dignidade.
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