Sábado,
28 de novembro
“Às vezes é melhor a gente dizer
“amém, meu filho, obrigado”,
e virar as costas e cuidar da vida, do
que ficar discutindo.
Discutir não leva a gente a lugar
nenhum.
A gente perdoa, e segue em frente”.
(Babá Dirce)
Os
homens e mulheres, todos os homens e mulheres desse mundo terreno, deveriam
estar sempre em comunhão. Todos deveriam deixar de lado às diferenças e prestar
mais atenção às semelhanças que nos unem. E essas diferenças que nos unem são
tantas e tão maiores que as diferenças que nos separam... É uma pena que
busquemos as diferenças e nos esqueçamos do que nos faz
iguais. E o que nos faz iguais? Somos todos, biologicamente semelhantes. Esteja
o ser humano no Brasil ou na Malásia — só para citar um exemplo de distâncias
geográficas — ele sempre terá olhos, coração, pulmão, veias
distribuídas pelo corpo, cérebro, e assim por diante. Não é porque esse outro,
tão diferente de nós, em termos de cultura, vive em terra diversa, que
ele terá uma constituição biológica diversa. Outras coisas que nos
fazem simplesmente humanos: habitamos o mesmo planeta, viemos pelo caminho do
mesmo processo reprodutivo, assim como fomos agraciados com o nascimento,
também um dia, todos nós, seremos agraciados com a morte. Se pretendesse
continuar, poderia citar uma infinidade de coisas que nos tornam iguais. Mas
paro por aqui, e deixo ao leitor, a tarefa de pensar em outras coisas que nos
unem enquanto habitantes do mesmo planeta, participes da mesma vida.
E
o que nos faz diferentes? O fato de termos uns a cor da pele mais clara, e outros
a cor da pele mais escura, nos faz diferentes? O fato de uns, por causa de
fatores biológicos, terem os olhos mais arredondados, e outros os olhos mais
puxados, os faz diferentes? Nossas culturas são diferentes, porém isso nos não
faz diferentes enquanto participantes da grande família humana. O fato de um
ser judeu, outro católico, outro protestante, outro mulçumano, outro
umbandista, outro candomblecista,ou
budista nos faz diferentes? Todas essas coisas nos fazem diferentes ou melhores
que uns e outros?
Também
não apresentarei aqui, respostas para essas perguntas, e, novamente, deixo ao
leitor, a tarefa de refletir sobre esses assuntos.
No
início dessa semana, fui a um evento que discutiu questões referentes ao
universo negro, organizado pela prefeitura de Hortolândia, cidade próxima a
Campinas. Nesse evento, o Dr. Ademir Silva, presidente das Comissões de
Igualdade Racial, e da Verdade sobre Escravidão Negra no Brasil, proferiu uma
excelente palestra sobre A Contribuição do Negro para a Formação da Sociedade
Brasileira. Logo no hall de entrada do prédio onde ocorreria o evento, havia
uma exposição de arte. Nessa exposição havia um quadro de um artista da cidade,
que me questiona até agora. A obra apresentava um Cristo negro crucificado,
sobre ele, estava escrito a seguinte pergunta: “Se ele fosse negro, sua fé
seria diferente?”
Mais
uma vez, caro leitor, provoco-lhe com esse questionamento. A você que é cristão
eu lhe pergunto: “Se Cristo fosse negro, você deixaria de acreditar nele por
causa disso”?
Ainda
falando de Hortolândia. Houve uma apresentação de dança com ritmo afro,
apresentado por crianças de um projeto social mantido pela prefeitura daquela
cidade. Não sei por coincidência, ou não, colocaram, lado a lado, uma menina
branca, e um menino negro. A cor da pele não os impedia de dançar ao mesmo
ritmo, de estarem lado a lado, partilhando da mesma alegria. Não deveria ser
sempre assim?
Tomemos
as palavras que escrevi até aqui, como introdução para o tema dessa postagem
que é a comunhão e igualdade religiosa atuando como machados da justiça a
quebrar o preconceito e a discriminação.
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Á esquerda, Pai Clodoaldo; Ao centro, Pai Ronaldo; Á direita, Pe. Paulo |
No
dia 20 de novembro, houve, em todo o Brasil, vários eventos celebrativos do Dia da Consciência Negra. Em Campinas
também houve, mas não participei dos eventos em aqui na cidade, ao invés disso,
fui à cidade de São Caetano do Sul, — distante cerca de 108 km de Campinas — a
fim de participar de uma missa afro na Casa de Pai Benedito de Aruanda,
terreiro de umbanda e templo sede da Federação Umbandista do Grande ABC —
formado pelas cidade de Santo André, São Bernardo e São Caetano do Sul. O
terreiro foi iniciado na década de 60 por Pai Ronaldo Linares, e hoje é
comando com muito amor e firmeza, pela Babá Dirce.
O templo
religioso estava lotado, e os umbandistas da Casa Pai Benedito, em grande expectativa,
afinal, participariam da primeira missa afro realizada naquela casa de umbanda.
Gosto de observar as expressões no rosto das pessoas, de sentir a vibração que do
ambiente emana. E no rosto das pessoas que lotavam o templo vi muita alegria,
serenidade, paz, amor, irmandade, e tantos outros frutos bons? Ora, não são
assim os frutos do espírito?
Participando
daquela missa, celebrada pela voz doce e mansa voz do Pe. Paulo, — carinhosamente
chamado por todos, de Pe. Paulinho — era como se voltássemos ao começo de tudo.
Aquela celebração unia duas religiões, celebravam a fé católica e a fé
umbandista, mas as orações dirigiam-se ao mesmo Deus amor, ao mesmo Pai eterno.
Digo era como se voltássemos à origem de tudo, pois na origem de nosso povo, de
nossa fé, está o sincretismo. Os escravos, proibidos pelos senhores de cultuar
os seus orixás, herança da mãe África, deram um jeito de sincretizar a fé, e
rezando para os santos nos altares dos brancos, rezavam para seus orixás.
No
momento da comunhão, ao ver toda aquela gente, contrita, vestida de branco,
comungando do corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, Epababa Oxalá,
fiquei pensando em como o mundo poderia ser diferente se não houvesse nele, as
venenosas sementes da violência, discriminação, intolerância e preconceito.
Particularmente,
costumo fazer um comparativo da religião com um campo de guerra. Em uma
batalha, há soldados lutando em várias trincheiras, porém, no coração de todos
há um único objetivo: vencer a guerra. Um soldado que milita no front do sul,
não é inimigo de outro que está a quilômetros de distância, ao Norte. Obviamente,
há uma distancia entre eles, mas não há uma separação, uma vez que todos se
veem sob o comando de um único general.
Ora,
não são assim as religiões? Milhões de soldados guerreando contra o mal? Não são
vários também os fronts de batalha? E porque tratamos como inimigos aqueles que
não estão no mesmo front que nós, e saímos por aí, desferindo tiros contra
eles? Agir assim, por acaso não é agir como tolos?
Abaixo,
apresento três entrevistas que fiz na ocasião, com três pilares de sustentação
da umbanda no estado de São Paulo: Pai Ronaldo Linares, Babá Dirce, e Pai Engels
de Xangô.
Pai
Ronaldo Linares — Presidente da Federação Umbandista do Grande ABC
José Flávio - Há quanto
tempo existe a Federação Umbandista do grande ABC?
Pai Ronaldo – Desde maio de
1972. Mas antes da federação nascer o templo que nós mantemos já existia. Tudo
começou assim: A gente encontrava diferentes pessoas do candomblé, que não
tinham muito conhecimento de umbanda. Então um dia eu tive a ideia… Nós nos encontrávamos
na Pedreira Montanhão, onde hoje é o santuário. Eu consegui inverter as coisas,
parar com a pedreira e ficar com o santuário. Na década de 70, o capô dos
automóveis, era, quase sempre, plano, então a gente colocava uma toalha, em
cima do capô, e ia comer aquela tortinha que a vovó fez. Daí eu comecei a
chamar as pessoas que estavam em volta: “vem cá, vem fazer uma boquinha com a
gente”, e eu perguntava pra eles “há quanto tempo você está na umbanda? Qual a
tenda mais antiga que você conhece?” Na esperança de entender, porque no candomblé,
nos ensinavam a ter medo da umbanda. Umbanda não tinha fundamentos, eram coisas
assim, compreende? Então, desses encontros esporádicos, nós fomos juntando um
grupinho. Um dia eu disse, “olha, eu ofereço a minha casa, aonde nós vamos nos encontrar.
Vocês não vão chamar caboclo, nem preto velho, eu não vou bater meus atabaques.
Vamos conversar e tomar um café". Então, nós começamos, primeiro em casa,
fazendo perguntas, “você me ensina o que você sabe, e eu te ensino o que eu
sei”, compreende? Logo esse grupo cresceu, aí tinha um professor que fazia
parte desse grupo, ele disse “olha, precisa dar um nome pra isso". Demos o
nome de Grupo de Estudos da Doutrina Umbandista, isso cresceu pra Curso sobre
Incorporação, Mediunidade, e Desenvolvimento, depois, formação pra ser chefe de
terreiro, e só depois, em maio de 72, é que nós conseguimos criar uma
organização federativa. De lá pra cá é isso que você tá vendo aqui, é o
Santuário, é a Casa de Pai Benedito, enfim, já passaram por essa casa,
aproximadamente, 4.000 pessoas que se formaram médiuns, ou sacerdotes de
umbanda. Isso nos levou a encontrar o papai Zélio, também. E a briga continua
filho, hoje, por vez primeira, nós tivemos uma missa católica, aqui na casa de
Pai Benedito, no rito afro. Mas eu faço parte do diálogo inter-religioso. Já
estivemos na Catedral Metropolitana, junto com o Cardeal Arcebispo de São
Paulo, fizemos parte da Campanha da Fraternidade. É a umbanda ocupando o lugar
que ela merece no conceito das religiões.
Babá Dirce – Dirigente espiritual da Casa Pai Benedito
José Flávio – Qual
a importância desse momento vivido aqui hoje? Desse dialogo entre as religiões?
Babá Dirce – Olha, eu acho
muito importante. Nós fazemos parte da uma comunidade aqui em Santo André, que
reúne várias religiões, católica, evangélica, temos rabinos, uma porção de
sacerdotes de várias religiões, e essa missa, aqui na nossa casa, na Casa de
Pai Benedito, que é um templo de umbanda, eu acho que é a maior interação que a
gente podia ter. Essa que é uma casa de preto velho, que é uma casa que é dos
negros mesmo, porque nós aqui, cultuamos muito os preto velhos, eu acho que
isso hoje, foi o ápice de toda a nossa luta pela igualdade, pra não ter
discriminação, pra que haja paz, para que haja muito amor, entre todos nós,
porque nós somos todos irmãos, filhos do mesmo pai.
José Flávio – Há
quanto tempo a Sra. está na umbanda?
Babá Dirce – Há cinquenta
anos.
José Flávio – Antes,
as religiões afros eram muito mais perseguidas…
Babá Dirce – É, quando eu
comecei era muito perseguida. Eu ainda cheguei a correr da polícia, mas hoje,
graças a Deus, hoje eu tenho vários policiais aqui dentro do terreiro, e é uma
benção.
José Flávio – Como
a Sra. conseguiu vencer o preconceito e suportar toda essa perseguição?
Babá Dirce – Olha, eu sempre
me mantive calma, tranquila, sabe, eu não costumo discutir. Às vezes, a gente
ouve as coisas, às vezes é melhor a gente dizer “amém, meu filho, obrigado”, e
virar as costas e cuidar da vida, do que ficar discutindo. Discutir não leva a
gente a lugar nenhum. A gente perdoa, e segue em frente.
José Flávio – Esse
é o caminho, não é?
Babá Dirce – Esse é o
caminho.
Pai
Engels de Xangô – Presidente da Escola
de Curimba Aldeia de Caboclos
José Flávio –
Pai Engels, quais as suas impressões
sobre o dia de hoje? Qual a importância dele para a religião, e pra todos nós,
de certo modo?
Pai Engels de Xangô – Primeiro, eu
gostaria de agradecer a oportunidade de participar, de poder ser um grãozinho
de areia, uma formiguinha, para poder estar nesses momentos tão bonitos, que
elevam o nome de nossa religião, porque é muito importante praticar a caridade
no terreiro, está com as portas abertas para trabalhar com a espiritualidade e
atender as pessoas que se socorrem dos terreiros. Mas a gente tem que ter cada
vez mais, eventos culturais, promoção de ações sociais para continuar
trabalhando contra a intolerância religiosa. Só através de ações positivas é
que a gente vence tudo isso, e também confirmar a nossa união, e fazer que
outras pessoas conheçam nossas culturas, e outras culturas conheçam a nossa,
então, essa missa afro, com os nossos irmãos vindos de Campinas, e os terreiros
de umbanda juntos, o padre Paulinho, da pastoral afro, lá de Campinas, foi uma
grata alegria, uma imensa alegria tá junto, poder participar, ver a realização
da missa afro, vibrar junto com ela, entregues no amor, e receber as bênçãos,
como a gente também doou a nossa vibração, o nosso axé, a ele, e a todos os que
estavam aqui. Então, o motivo para nós é gratidão, e isso fortalece o espaço de
nossa religião.
José Flávio – E
as atividades no mês da consciência negra, como estão sendo realizadas?
Hoje
teve essa, e está havendo diversas outras festividades, posso citar, não sei se
a gente vai conseguir chegar, devido ao tempo, em Carapicuíba, tá havendo uma
ação da consciência negra, homenagem a Zumbi dos Palmares, e em diversas outras
localidades. A gente acabou de ter a Semana de Umbanda, que para nós foi um
marco de alegria, a proclamação da Carta Magna de Umbanda, as engiras de
confraternização nas matas, e as homenagens às mamães de terreiro, mamães
umbandistas, as babás de umbanda, que fechou a semana de umbanda, e foi
maravilhoso poder homenageá-las.