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O blues perde um rei
Posted by Cottidianos
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12:18
Sábado, 16 de maio
BB King.
BB Rei.
89 anos, bem vividos, bem tocados, bem felizes.
Com certeza, Lucille vai sentir a falta de teus dedos
sensíveis deslizando pelo corpo esbelto dela. Lucille era o nome que davas as
tuas lendárias guitarras. Certa vez, salvaste-lhe a vida. Foi em uma noite
fria, no Arkansas dos anos 50. Estavas tocando num salão, em Twist, condado de
Cross Country. Um barril de querosene aceso, no meio do salão, aquecia o
ambiente. Hoje em dia não se usa mais desse artifício, mas naquela época isso
era comum. As notas de teu instrumento mágico flutuavam pelo ambiente contagiando
a todos com o doce vinho da alegria.
De repente, um grupo de foliões, começou uma briga,
causando uma grande confusão. O barril de querosene foi derrubado e provocou um
grande incêndio. Todos correram para fora, inclusive tu. Do lado de fora,
refeito do susto, e já mais tranquilo, percebeste que havias deixado tua
guitarra dentro do salão. Ah, não! Isso, não! Tua parceira na música não podia
morrer queimada em um incêndio. Para evitar essa enorme tragédia, correste para
dentro do salão, ainda em chamas, e salvaste a guitarra, antes que o teto
desabasse. Duas pessoas morreram nesse incêndio.
Mais tarde, vieste a saber que uma mulher, de nome
Lucille, teria sido a causa da disputa entre aqueles brigões que haviam
provocado o incêndio. A partir de então, e para lembrar a ti mesmo da confusão
que pode provocar uma briga por causa de mulher, resolvestes batizar todas as
tuas lendárias guitarras com o nome de Lucille.
Deste adeus ao mundo físico, no dia 14 de maio, às
21h40, horário local, em Las Vegas, de uma forma gloriosa. Afinal, és amado e
admirado por milhões de fãs em todo o mundo. Foram 16 prêmios Grammy. Mais de
50 discos gravados, em 60 anos de uma carreira vitoriosa. Atravessaste a
fronteira da vida enquanto dormias, sem dor, nem sofrimento, aos 89 anos.
King, acho que não é apenas Lucille que se sentirá órfã. Todos os teus fãs, sentem-se um pouco órfãos. Certamente, ouvirão teus
discos e se deixarão navegar pelo mar da saudade. É humano chorar pela morte de
seus semelhantes, porém, acho que o que todos deveriam fazer era ficar muito
alegres e celebrar a tua vida, celebrar o homem que foste, render homenagens ao
artista que deslizou pelos céus da música como astro de primeira grandeza.
Por ocasião de tua morte, muitos famosos publicaram
mensagens nas redes sociais, porém, a que achei mais expressiva e que melhor te
define, foi a mensagem publicada pelo cantor, Lenny Kravitz. “B.B., qualquer um podia tocar mil notas e
nunca dizer o que você dizia com uma”, escreveu ele.
É isso aí King: Há pessoas que estão vivas e não
vivem, vegetam. E há pessoas, que por terem compreendido a transitoriedade da
vida, vivem com intensidade e, mesmo morrendo, vivem eternamente.
Conheceste a fama. Conheceste o brilho dos holofotes.
Vivias rodeado pelos flashs dos fotográficos. Teu nome foi alçado aos cumes da
glória humana. No panteão da música foste elevado aos altares sagrados da fama,
ao lado de deuses da guitarra, do nível de Eric Clapton e Jimmy Hendrix.
Mas nem sempre tua vida foi assim. Conheceste o lado
duro da vida ainda muito cedo. Debruçando-me sobre tua história de vida, vejo
que a vida te deu limões azedos e tu os transformaste em uma gostosa limonada.
Sábio e forte é o homem que consegue esta façanha.
Nasceste em uma obscura cabana, em uma fazenda do Mississippi, em 16 de setembro de 1925, às vésperas da
Grande Depressão: A mais grave crise econômica do século XX. Na verdade, nem
tu, nem tua família, tinhas conhecimento do que era essa tal de Grande
Depressão. Tu, devido a tua pouca idade. Teus pais, Albert Lee King e Nora Ella
Far — assim como os poucos moradores do vilarejo de Itta Bena — porque,
afastados das notícias do mundo fora da aldeia, só se preocupavam com a safra
de algodão, e com o parco salário que recebiam, e que mal dava para alimentar a
família e para o gás do lampião. Só viestes a saber que realmente existiu uma
grande depressão algum tempo depois de ela haver acabado.
Tinhas quatro ano quando teus pais se separaram. As notas tristes daquela separação tocaram o teu pequeno
coração de criança. Mesmo sem entender o fim de uma relação entre homem e
mulher, sofreste. Por muito tempo, acordaste no meio da noite, com a imagem de
teu querido pai desaparecendo na curva de uma estrada, em uma tarde triste daquele
ano de 1929, enquanto tu e tua mãe seguiam em um caminhão que rumava em direção
ao povoado de Kilmichael, também no Mississippi.
Logo te sentiste em casa no novo povoado. Afinal de
contas, ali estava grande parte da família. Todos te receberam muito bem. Foi
ali que conhecestes personagens caricatos, como por exemplo, o teu bisavô, Pop
Davidson. Durante o dia, o homem pregava o evangelho na pequena igreja do
povoado. A noite virava boêmio. Durante o dia, Bíblia na mão. À noite, um copo
de uísque.
Havia também tua avó, Elnora Farr. Ah, como ela era
mestre em transformar em banquete as sobras da mesa dos patrões. Ela fazia
coisas deliciosas com aquele pão que caia da mesa dos patrões.
Uma das tuas mais caras lembranças era a de tua
bisavó. Sentada em um banco de madeira, sob a luz do lampião a gás, ela contava
histórias do tempo do cativeiro. Foi nessas histórias que começaste a
compreender como era difícil ser negro no sul dos Estados Unidos. Uma destas
histórias contadas pela tua avó, particularmente, ficou registrada em tua
memória. Contava ela da história de um amor proibido entre um dos escravos da
fazenda, onde ela morava, com a filha do fazendeiro. Às escondidas, escravo e
sinhazinha se entregavam aos prazeres do amor proibido. E gostavam disso. Certo
dia, foram descoberto por um dos capatazes da fazenda.
O homem levou o escravo à
presença do pai da noiva, sob a acusação de estupro. Cheio de ira, o fazendeiro
espancava o escravo, fazendo o sangue escorrer pela pele negra. Não contente
com isso, molhou o corpo do pobre rapaz com querosene. No momento em que iria
fazer com que o escravo se tornasse uma tocha humana, chegou a jovem com qual o escravo se deitara tantas vezes. Chorando,
ela disse ao pai que não havia sido estuprada por ele, que se entregara por
livre e espontânea vontade. Disse também que amava o rapaz. O pai da jovem então
perguntou o que ela queria que fosse feito. A moça respondeu ao pai que não
fizesse queimar o rapaz, que aliviasse o sofrimento do amado, dando um tiro
nele. Assim, ele não sofreria tanto. Tu sempre achaste essa uma forma muito
estranha de amar e de ter misericórdia.
Quando criança, tu gostavas da escola. Tinhas
disciplina, porém, nunca foste o que se pode chamar de um bom aluno.
Percorrias, sem reclamar, os cinco quilômetros que separavam a fazenda da única
escola que existia nas redondezas. Porém uma coisa teu professor Luther Henson,
te ensinou muito bem, que foi lição da autoestima. O professor sempre dizia, a
ti e aos teus companheiros de escola, para andarem sempre de cabeça erguida, em
qualquer situação.
Nos cultos dominicais também não eras uma disciplinada
ovelha. Muitas vezes prestavas mais atenção às meninas que frequentavam a
igreja, do que as exortações do pastor. Foi também ali, que o pastor percebeu
teu interesse pela guitarra, e te ensinou lições de blues. A música também estava
presente na casa de tua tia Mima. Frequentavas com assiduidade a casa dela. Ela
era a única sortuda na família que tinha condições de ter uma vitrola em casa.
Viajavas nos discos de blues de tua tia, sem saber que um dia aquelas viagens
te levariam muito longe, muito além do que sonhavas imaginar.
Rezavas para que chegasse o inverno. Com o rigoroso
inverno chegava o calor dos acordes da guitarra do primo de tua mãe, chamado Bukka
White, que sempre os visitava nessa época. White tocava muito bem. Já tinha até
gravado vários discos. Era o artista da família. O primo guitarrista sempre
costumava cuidar muito bem do visual.
Ah, como sonhavas em ser igual a Bukka White. Tocar
guitarra tão bem quanto ele. Usar aquelas roupas elegantes que ele usava. Ir
para Memphis, no Tennessee, junto com ele era um sonho constante.
Mais uma vez, infelizmente, esses dias coloridos
ficaram mais cinzentos, em mais um golpe que a vida te deu. Tua mãe foi
acometida de uma doença grave, não diagnosticada. Em consequência disso, ela
ficou cega e morreu ainda muito jovem, aos 25 anos.
Com apenas oito anos de idade, ainda criança tiveste
que enfrentar situações difíceis como se fosse um adulto. Depois da morte da
mãe, ficaste morando sozinho na pequena cabana. Apesar da imensa saudade que
sentias de tua mãe, era preciso continuar tua luta, tua vida. Ordenhavas vacas,
colhias algodão, ias à escola. Teus dias ficaram mais iluminados quando
ganhastes uma antecipação de salário do dono da fazenda e, com o dinheiro
extra, conseguiste comprar tua primeira guitarra. Com mais alguns centavos de
dólar, conseguiste comprar também um método de guitarra. Quanta alegria nasceu
e teu coração quando começaste a dedilhar a primeira canção!
A pobreza, a solidão, a saudade da mãe, as
dificuldades enfrentadas, todos esses amargos temperos ainda te ajudariam a
fazer belíssimos pratos no banquete da vida. A guitarra solitária, as músicas
na igreja, e os discos que ouvias na casa da tia Mima, iam aperfeiçoando teus
dedos e teus ouvidos. Começaste a tocar nas esquinas próximas a igreja e
começaste a ganhar teus primeiros centavos de dólar.
O sonho chamado Memphis se concretizou em 1947, quando
tinhas 22 anos. Tu chegaste à capital da música, templo de todos os estilos,
trazendo na bagagem apenas tua guitarra, U$ 2,50 dólares, e uns poucos
pertences pessoais.
Naquela época, Memphis podia ser comparada a um mar de
música para o qual afluíam todos os rios e vertentes musicais. Andando em um
sábado à noite, pelas ruas da cidade, ouviste o som mágico de uma guitarra. Ela
não tocava espirituais negros aos quais estavas tão acostumado a ouvir. Quem tocava
o instrumento era T-Bone, interpretando a canção Stormy Monday. Talvez tenha sido naquela noite que o blues
conquistou definitivamente o teu coração.
Em Memphis, passaste um ano dividindo o apartamento
com Bukka. Foi ele que conseguiu que te apresentasses, em 1948, no programa de Sonny
Boy Williamson, na rádio KWEM. A canção que escolheste para a ocasião foi Caldonia, de Louis Jordan. A
apresentação teve grande êxito, e as portas do sucesso no rádio começaram a se
abrir. Após pequenas participações, ganhastes um programa de rádio, e ganhaste
o nome artístico de Riley Blues Boy King. Nome muito longo. Logo saiu Riley,
abreviou-se o primeiro e o segundo, e o mundo conheceu B.B. King.
Em 1951, pisaste no trampolim para o sucesso: os
estúdios da Sun Record. Fizeste ali tua primeira sessão de gravação, e tu que
eras um sucesso regional, passaste a ser conhecido e ouvido em todo o país.
Desse mesmo trampolim, três anos mais tarde, seria lançado ao hall da fama, um
jovem tímido, chamado Elvis Presley.
A partir daí, o sucesso veio em avalanches. Shows, shows e mais
shows. Turnês e mais turnês. E o
dinheiro, que antes era tão difícil te chegar às mãos, começou a não caber
nelas.
Mas qual ser humano é perfeito em cima dessa terra? Eras
um deus na guitarra, mas escravo dos vícios e das paixões. Duas delas estavam
sempre no topo da lista: mulheres e jogo. Quem poderia jogar pedras em ti, se
somos todos pequenos barcos a navegar no oceano das paixões. Tão humanos, e
demasiadamente humanos, e como tais, sujeitos a erros e acertos.
Mas para tua alegria, não é pelos vícios que o mundo
se lembrara de ti, mas pelo som de tua guitarra.
Quem conseguirá explicar os inexplicáveis caminhos da
vida? Como explicar essa coisa chamada destino, que pega um garoto em uma
obscura aldeia no Mississippi e o lança nos braços do sucesso esplendoroso?
E o dom? Como explicá-lo? Tantos tocam guitarra,
tantos são os que tocam blues com esmero e técnica e não alcançam o mesmo
sucesso que alcançaste?
Estaria no sentimento que imprimias às tuas canções,
ou as canções que interpretavas? Não seria a guitarra, apenas um instrumento
processador colocado entre a técnica de teus dedos e o profundo sentimento que
brotava de teu universo interior?
“Ninguém precisa sofrer para tocar o
blues”, disseste certa vez a um grupo de estudantes brasileiros. Não estarias,
com essa frase, tentando encobrir tua própria história?
Não sabendo explicar o inexplicável
apenas te jogamos flores, e continuamos a ouvir os acordes mágicos de tua
guitarra, em um dia qualquer, em uma noite qualquer, a tocar um delicioso
blues.
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