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Lições de vida

Posted by Cottidianos on 01:01
Quarta-feira, 27 de maio

Minha jangada vai sair pro mar,
Vou trabalhar, meu bem querer,
Se Deus quiser quando eu voltar,
Do mar,
Um peixe bom, eu vou trazer...
Meus companheiros também vão voltar,
E a Deus do céu vamos agradecer
(Suíte de Pescador – Dorival Caymmi)


Caríssimos leitores, entre o final de abril e o início deste mês, escrevi sobre a Rede Globo e seu fundador, Roberto Marinho. Durante essas pesquisas, descobri uma carta que Roberto Marinho escreveu para o filho, Roberto Irineu. Quis apresentá-la logo em seguida a referida postagem, mas só agora o faço. E o faço por encontrar nela um pai zeloso com a educação dos filhos, apresentando a eles bons livros e bons filmes, enfim, coisas que alimentam o espírito. Vemos na carta, um Roberto Marinho, preocupado em dar aos filhos elementos que os ajudem a enfrentar a vida com coragem e humildade.

Quando recebeu a carta, Roberto Irineu Marinho tinha 15 anos. Igual a todo jovem dessa idade, também ele era cheio de sonhos e projetos de futuro. O jornalista e empresário, Roberto Marinho, acabava de voltar de uma viagem que fizera aos Estados Unidos. Através de palavras carinhosas de pai amoroso, ele fala ao filho a respeito do livro, O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, e do filme A Grande Olimpíada, e usa, tanto este quanto aquele, para traçar um paralelo entre as duas formas de entretenimento para definir o valor da vida.

O livro citado por Roberto Marinho eu já havia lido, e achei uma bela e profunda história. O filme, não. Até tentei procurar na Internet, mas não obtive sucesso.

Acho que o saudoso jornalista e empresário foi muito feliz nas exortações que faz aos filhos, pois, o que é a vida, senão um mar agitado no qual navegamos, lutando pela sobrevivência, buscando pescar o peixe nosso de cada dia?

Não seria a vida também uma grande maratona, na qual todos nós corremos em busca de um lugar ao sol?

Seja pescando ou participando dessa grande maratona, há que se ter sempre um espírito forte e decidido. As lutas são grandes, enormes, às vezes, colossais, mas não podemos jamais desistir dela. Alguns se entregam a essa luta por ambição, outros por causa de um ideal, mas, quase sempre, é a necessidade que nos move. É preciso saber ganhar e perder, pois nem sempre na vida se consegue as primeiras colocações, nem se pesca o maior peixe, pois, a maratona é diária e o mar é eterno, e a luta é constante. Cabe a nós, desejosos de vitória, de sucesso e felicidade, sermos persistentes, sempre, sempre e sempre.

Pelo fato de a carta ter sido escrita em 1963, há algumas palavras que podem dificultar a compreensão total dela, por isso, apresento, ao final, um pequeno glossário. As palavras apresentadas no glossário estão destacadas, em itálico, na carta.

***



Carta de Roberto Marinho para Roberto Irineu – 13/02/1963

Meu querido Roberto Irineu:

Ontem, assisti a um filme e, durante as duas horas em que estive no cinema, evoquei coisa da minha vida e lembrei-me também de meus filhos. O filme era a GRANDE OLIMPÍADA, que seria um excelente belo documentário sobre o grande acontecimento esportivo, que se verifica de quatro em quatro anos, se não fosse, antes de tudo, uma extraordinária demonstração do valor humano, na sua ânsia de competir e vencer.

Creio que V. ainda não leu O VELHO E O MAR, e que talvez não tenha visto o filme do Spencer Tracy no papel do velho e obstinado Santiago. De longos e longos anos de curtimento ao sol, a luta insana no mar nem sempre dadivoso, tinham-lhe vincado o rosto, e até mesmo curvado um pouco a espinha, mas não conseguiram abater o espírito do velho pescador e muito menos a sua fé inquebrantável no dia de amanhã. É por isso que ele, isolado no seu pequeno barco, afastou-se tanto da costa, para perseguir o peixe das suas esperanças. Afinal, depois de tantas horas, ele consegue fisgar a presa almejada, que procura libertar-se, ora mergulhando no seu elemento, ora dando grandes e desesperados saltos. São mais de quinhentos quilos a dominar. A linha corre-lhe nas mãos, fazendo-lhe profundos sulcos de sangue. Mas o velho pescador luta desesperadamente durante uma noite inteira e, afinal, consegue recolher o monstro já cansado. Enceta a viagem de volta, mas novas provações o esperam, no ataque dos tubarões à sua presa. A única arma que ele tem à mão são os remos com que procura desatinadamente atingir os monstros enfurecidos, que acabam por deixar ao exangue pescador apenas o esqueleto do peixe que foi a grande mera da sua vida.

Você lerá algum dia esse livro de Hemingway, para verificar que o velho Santiago é de certo modo um modesto, mas heroico personagem dessa Olimpíada, porque ele, como os atletas nas pistas, lutou ao paroxismo para vencer.

E é esse espírito de luta, dom velho pescador ou dos flamantes atletas, do cientista que vai ao fundo abissal do oceano ou do astronauta que desvirgina o espaço sideral, que anima a humanidade a vencer, a progredir, porque a vida, meu querido Robertinho, é justamente essa luta pela conquista de um ideal ambicioso ou por um simples lugar ao sol.

Porque os trabalhadores, britando a pedra ou afagando o asfalto nas ruas da cidade, dessorando ao sol nos dias mais causticantes, suando a camisa nos escritórios, nas oficinas, nas locomotivas, nos porões dos navios, - também disputam a sua olimpíada, não em busca de glórias esportivas, mas do sustento das suas famílias. O mesmo ânimo dos atletas para alcançar a meta da vitória, eles o empregam na luta quotidiana pela sobrevivência, pelo pão de cada dia.

Mas, Robertinho, as atletas que, na maior corrida de revezamento da história, levam da Grécia para Roma, através dos desfiladeiros, dos campos e das avenidas, dos mares e as montanhas, o fogo sagrado, chegam ao seu destino. A pira do grande estádio é acesa. Os jogos olímpicos de 1960 começam. Atletas de todo o mundo, gente de todas as cores, raças e religiões, estão irmanados no ideal olímpico do barão Pierre de Coubertin, fundador das modernas olimpíadas: o importante não é vencer, mas competir. As provas se sucedem. Nas pistas, nas piscinas, no oceano, cada centímetro é bravamente disputado. É tal o esforço pela vitória que há atletas que chegam trôpegos, desmaiando assim que transpõe a meta. Há esportistas que realizam grandes façanhas, mas que choram como crianças, depois da vitória ou da derrota.

Mas eis que vai ser corrida a maratona, que é a prova olímpica por excelência, evocativa da façanha de um soldado ateniense que correu 22 milhas, de Maratona (cidade da Grécia) a Atenas, para dar a notícia da vitória das suas armas contra os persas. Cumpriu a sua missão e morreu. Centenas de corredores lançam-se à grande empreitada. Os mais luzidos corredores, selecionados nos seus países de origem, empregam – se cautelosamente. Sabem que precisam resguardar as suas forças para a interminável porfia. Mas um dos corredores junta-se ao atleta que comanda o pelotão e não mais o larga. É um preto e corre descalço. O narrador da GRANDE OLIMPÍADA esclarece que se trata de um etíope. A corrida prossegue.

Muitos corredores vão ficando para trás, mas o representante da Abissínia ganha terreno, acelerando o ritmo da corrida. E ali nas ruas da orgulhosa Roma de César e de Mussolini, ele derrota, com os seus pés descalços, os atletas de todo o mundo, inclusive os corredores italianos... Lembrei-me da invasão da Abissínia. Nessa época, Mussolini, endeusado pelos estadistas mais famosos de então, clamava pelo espaço vital, que dizia necessitar para a expansão do seu país. Por isso, e alegando razões históricas, lançou as suas tropas blindadas, a sua aviação poderosa, toda a força das suas armas contra a pobre e indefesa Abissínia. Aí eu cometi um erro. Feito comendador por Mussolini, cortejado pela embaixada daquele grande país, ferveu-me o sangue dos avós maternos, e coloquei O GLOBO ao lado do invasor contra a pequena nação, cujos filhos — descalços como o corredor da Maratona — jogaram as suas flechas contra a blindagem dos aviões que semeavam a morte e a desolação.

Por muitos anos lembrar-me-ei daquela cena admirável da chegada do corredor etíope, que assumiu aos meus olhos o simbolismo de uma lição na história, e trouxe-me a recordação de um ato de que me penitencio.

As Olimpíadas continuam... São os ginastas, homens e mulheres que fazem verdadeiro balé sobre as barras... Os lançadores de peso, de martelos, de dardos... Os saltos ornamentais, em trampolim, as lutas grego-romanas, as regatas a vela no lago de Castel Gandolfo... E a prova das nações, que também me trouxe recordações. Em 1947 e 1948 eu estava em plena forma e tinha ganho a maioria das provas de tipo olímpico, aqui disputadas. Nas vésperas da escolha do team hípico que devia ir às Olimpíadas de Londres, a Federação Hípica resolveu que todos deviam submeter-se às eliminatórias. Achei a resolução injusta. Além do mais, viria desgastar os cavalos com que contava para a Prova das Nações. Neguei-me a participar das eliminatórias e com esse gesto, que hoje julgo pouco esportivo, perdi a única oportunidade que me foi oferecida para participar das Olimpíadas.

De qualquer forma, meu filho, também eu me julgo um pouco participante dessa outra olimpíada que disputamos a vida toda, por um ideal, uns, por ambições outros, por necessidade quase todos, mas que constitui a essência da vida: lutar, disputar, vencer se possível, mas sempre sabendo perder.

Nesse terreno V. já me deu uma grande alegria, quando participou de Kart. O seu “bólido” andou franquejando, mas V. bem atrás dos outros concorrentes, soube conservar o mesmo ânimo e o mesmo sorriso, até o final. Isso é que é essencial, meu querido Roberto Irineu...

Quero que V. e o Paulinho — já que o Joaozinho e o Zezinho estão doentes —vejam a GRANDE OLIMPÍADA. Vocês vão divertir-se e possivelmente recolher exemplos úteis para o futuro.

Um beijo do

Roberto.

Rio, 13/2/1963
***
Vocabulário

Encetar – Começar, principiar

Paroxismo - A maior intensidade de um acesso, dor etc.

Flamante – Brilhante, resplandecente.

Abissal – Relativo a grande profundidade do oceano.

Dessorando – Enfraquecendo.

Luzido – Esplendoroso, pomposo, vistoso.

Porfia – Competição, disputa.



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