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A bisavó
Posted by Cottidianos
on
19:54
Domingo,
10 de maio
“Mãe, palavra que Deus inventou
Um
anjo que à Terra chegou
Voando
nas asas do amor
Mãe,
palavra mais doce que o mel
Talvez
um pedaço do céu
Que
Deus transformou em mulher”
(Mãe, Um pedaço do céu – Compositor: Ed
Wilson / Carlos Colla
Interpretação:
Leonardo Sullivan)
— Mãe,
quem és?
— Filho,
sou uma metáfora da palavra amor?
— Metáfora
da palavra amor? O que é metáfora, mãe?
— Metáfora,
filho, é quando a gente olha para uma coisa, e enxergar outra coisa.
—
Então, mãe, a senhora não é metáfora, mas o próprio amor.
Mãe
é isso, caro leitor, um sinônimo da palavra amor. Houve um tempo em que elas
eram árvores. De que modo? Isto, deixo que Ruben Alves explique no interessante
texto que escreveu em homenagem às mães.
Ruben
Alves é um escritor, psicanalista, teólogo e educador, aqui da cidade de
Campinas. Ele nasceu no ano de 1933, na cidade de Boa Esperança, no sul de
Minas Gerais. Morou no Rio de Janeiro, e em Nova York. Veio para Campinas em
1973 para assumir o cargo de professor-adjunto na Faculdade de Educação, na Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Morreu em Campinas, no dia 19 de julho de 2014.
Nos
dias atuais, a tendência das mulheres é ser pássaros — o porquê disto também
está no texto de Ruben Alves. Infelizmente, porém, muitas mulheres ainda
permanecem sendo árvores, com medo da violência de seus maridos e companheiros.
Diz o escrito campineiro que “quem dá uma flor a alguém está lhe dando um
desejo de voar”. Neste dia das mães, dê você também, um desejo de voar para sua
mãe.
Abaixo,
compartilho o texto, A bisavó, Ruben
Alves, e com ele, deixo também minha homenagem, não apenas as mães, como também
as avós e bisavós.
Boa
semana a todos.
***
A bisavó
Minhas netas: hoje é o dia das mães.
Vou falar sobre a minha mãe, sua bisavó, que vocês não chegaram a conhecer. Ela
morreu antes de vocês nascerem.
Para falar sobre a minha mãe eu vou dar
uma explicação inicial. Gosto de escrever. Especialmente para crianças. Tanto
para crianças como vocês quanto para as crianças que moram, escondidas, dentro
dos adultos. Se eles deixassem as crianças que moram neles sair do lugar onde
estão presas, eles poderiam brincar e ficar mais bonitos.
Escrevendo, eu uso sempre
"metáforas". O nome é difícil mas é fácil explicar. Metáfora é
quando, olhando para uma coisa, a gente vê outra. Neruda, poeta, olhou para uma
cebola e viu que ela se parecia com uma "rosa de água com escamas de cristal!".
Ora, cebola é cebola. Não é rosa. Mas o poeta viu, na cebola, uma rosa. Cecília
Meireles pensou sobre a vida dela e viu um barco navegando por um mar sem fim.
Ora, a vida não é um barco navegando. Mas a poeta viu, na própria vida, um
barco a navegar no mar azul...
Pois eu vou usar uma metáfora que
vocês, a princípio, não entenderão - mas entenderão, porque toda criança tem
olhos e imaginação de poeta: no tempo da minha mãe, sua bisavó, as mulheres
eram como árvores. Agora, elas se parecem com pássaros...
Vocês se lembram da estória da
Cinderela. O nome antigo era "Gata Borralheira". Vejam: dizer que uma
menina é "gata borralheira" é uma metáfora. Ela era uma menina; não
era uma gata. Peçam ao seu pai ou sua mãe que explique para vocês a razão dessa
metáfora. Borralheira é que gosta de borralho. Sabem o que é borralho? Borralho
são as cinzas quentes que ficam no fogão de lenha, depois de apagado o fogo...
Pois a estória moderna daquela menina triste, do Walt Disney, conta que ela
tinha uma "Fada Madrinha"... Na estória original - muito antiga - não
havia nenhuma "Fada Madrinha". Era diferente. A mãe da menina havia
morrido. E agora ela estava nas garras de uma madrasta malvada e duas filhas
invejosas que a mantinham presa na cozinha - perto do borralho. Abandonada...
Não, não, não! Não estava abandonada. Mesmo morta, a sua mãe continuava a
protegê-la. Quem a protegia não era uma Fada Madrinha; era a sua mãe! E sabem
como ela a ajudava? Ela, mãe, morava numa árvore que a menina plantara no
quintal da casa. A árvore estava sempre cheia de pássaros. Os pássaros eram os
anjos da mãe. Eram os pássaros que ajudavam a Gata Borralheira...
As mulheres, nos tempos antigos, nos
tempos da minha infância, eram árvores.
No meu sítio, lá em Pocinhos do Rio
Verde, tenho árvores plantadas para todos os meus amigos que morreram. Plantei
também uma árvore para a minha mãe. Ainda não plantei uma árvore para o meu pai
porque ainda não encontrei a árvore-metáfora que se parece com ele. Como pode
uma árvore se parecer com uma pessoa? Pode. Para o meu pai, escolhi uma
laranjeira. Meu pai adorava chupar laranjas. Ele ia descascando as laranjas com
incrível técnica, sem jamais ferir a laranja. Laranja com casca ferida é ruim
de chupar. As cascas inteiras, ele ia pendurando no braço esquerdo. Cascas de
laranja, secas, são um combustível maravilhoso. Eram usadas, de manhã, na
feitiçaria de acordar as brasas para acender o fogo, como já expliquei. Essas
laranjeiras modernas, enxertos, não são laranjeiras de verdade. Árvores anãs,
mirradas - as laranjas ao alcance da mão.
Para ser metáfora do meu pai a
laranjeira tem de ser das antigas, que demoravam para crescer e ficam altas, as
laranjas amarelas lá no alto! Era preciso subir na laranjeira para apanhar as
laranjas. Era o que eu fazia com meus amigos. Subíamos na laranjeira e
chupávamos sem parar. Cada um com seu canivetinho. Já havíamos aprendido a arte
de descascar laranjas como o meu pai. Eram tantas as laranjas que chupávamos
que ficávamos com vontade de fazer xixi. Pois não havia problema: fazíamos xixi
do alto das laranjeiras e morríamos de dar risada, vendo o xixi cair e se
empoçar na terra. Essa é uma das vantagens de ser homem: fazer xixi do alto de
uma laranjeira... Quando eu encontrar uma muda das laranjeiras antigas
plantarei como metáfora do meu pai. E então, os passarinhos, especialmente os
sanhaços azuis, anjos dele, virão chupar as laranjas.
Para minha mãe plantei um pé de
camélia. Camélias são flores lindas - tão perfeitas, alguma brancas, outras
vermelhas. Fui a Santiago de Compostela, no norte da Espanha. Dizem que Deus,
em Santiago, é mais forte que em outros lugares. Por essa razão, os que
acreditam fazem longas peregrinações a pé para chegar até lá, onde se encontra
uma gigantesca catedral. Não fui a pé. Fui de carro. Visitei a catedral. Não me
senti mais perto de Deus. Me senti mais longe. Uma construção feia, pesada,
escura. Me deu tristeza. Mas, saindo triste da catedral, entrei nos imensos
parques que há por lá. Tudo era luz, cor, leveza, pássaros voando e cantando, a
vida explodindo em todos os lugares. Fiquei inundado de alegria.
O Criador, no Paraíso não fez nenhuma
catedral. Se gostasse teria feito. Plantou árvores. Camélias... Nos parques
fora da catedral havia camélias por todos os lados - árvores enormes, cobertas
de flores. Sempre que vejo a beleza surgindo me sinto próximo de Deus. Deus é
beleza mansa. Sugiro que, no futuro, se façam peregrinações a Santiago de
Compostela para se ver as camélias. Porque se São Tiago foi enterrado por lá,
como se diz, garanto que ele não está dentro daquela igreja escura. Está é
passeando pelos parques. Os passarinhos e as flores são os Anjos de São Tiago!
Eu olhava para as camélias e me
lembrava da camélia que plantei para a minha mãe...
Disse que antigamente as mulheres se
pareciam com árvores. As árvores não saem do lugar. Crescem onde plantamos.
Indefesas. Não reagem, não fogem, não gemem - nem mesmo quando são cortadas a
machado. Pois assim eram as mulheres: nasciam e pelo resto de suas vidas teriam
de obedecer aos homens. Primeiro, tinham de obedecer as ordens do pai. Depois,
tinham de obedecer as ordens do marido. Carlos Gomes fez até uma cantiga de
conselhos para uma jovem que queria se casar e ele a advertia de que, com isso
ela iria perder a liberdade: " a vontade ao marido há de fazer, que esse
dever o casamento traz..". Na verdade, nem antes de casar elas estavam
livres. Estavam à mercê da vontade dos pais. Era o pai que decidia se ela devia
se casar, quando e com quem. E nem tinham a liberdade de se decidir por uma profissão.
Lugar de mulher era na casa, no fogão, na máquina de costura. As mulheres não
eram donas do seu corpo, não mandavam no seu destino. Árvores à mercê da
vontade do jardineiro, sem poder fugir... Como gostariam de ser pássaros, e
voar para longe, longe...
Não podendo ser pássaros, as árvores
dão flores. Flores são os pássaros das árvores. Flores são vôos que não
conseguiram voar e se cristalizaram em beleza e perfume. Quem dá uma flor a
alguém está lhe dando um desejo de voar.
Minha mãe era uma árvore que queria
voar e não podia. Aí, como a camélia, ela começou a dar flores. As flores que
minha mãe dava apareciam sob a forma de música. Menino, eu a ouvia estudando
piano horas seguidas. Enquanto tocava piano ela voava pelo mundo da beleza que
nem pai e nem marido podiam impedir: a alma é livre.
Por que uma pessoa gosta de música? Eu
acho que uma pessoa gosta de música, primeiro, porque a música já nasce com a
gente. Ela está lá, no fundo da alma, dormindo. Mas é necessário que haja
alguém que desperte essa "Bela Adormecida". No caso de minha mãe, eu
suspeito que tenha sido um professor de piano... Ah! os professores de piano,
seres perigosos, sedutores... O Vinícius de Moraes compôs uma música malandra
chamada "Aula de Piano" que colocaram, indevidamente, junto com as
canções infantis da "Arca de Noé".
Minha mãe, vez por outra, se referia ao
seu professor de piano. O nome dela era Riciotti - nem sei se é assim que se
escreve. Vi uma foto dele. Másculo. Tinha bigodes torcidos, voltados para cima.
Fantasiar não faz mal... Fantasio que minha mãe, adolescente, ficou apaixonada
por ele. Tenho mesmo a suspeita de que ele a amou e chegou mesmo a compor uma
valsa para ela: "Ela aos quinze anos". Se estou errado, meus irmãos
que me corrijam. Mas, como diz o ditado italiano, "se não é verdadeiro,
foi bem imaginado". Como no filme "Festa de Babette" - a jovem
ficou apaixonada pelo professor de canto. Proibidos de amar pelo pai e dono
dela, eles faziam declarações de amor cantando duetos apaixonados de ópera!
Gosto de imaginar que tenha sido assim.
Professor de música! Pobretão. Meu avô,
trisavó de vocês, Capitão Evaristo, rico comerciante dono de sobrado colonial e
carro importado jamais iria permitir que filha sua se casasse com um pobretão.
Minha mãe se casou com meu pai, seu bisavô, um homem muito bom, divertido,
manso, que não tinha cultura musical, mas era rico. Depois, como eu já contei,
ele ficou pobre... "Carminha" - ele dizia com carinho - "toque
uma daquelas valsinhas boas prá dormir." Minha mãe atendia o seu pedido
inocente, interrompia a balada em sol de Chopin e tocava a valsinha. Logo ele
dormia como uma criança...
Minha mãe era uma camélia mansa cujas
flores eram a música. Há determinadas peças que, ao ouvir, sempre me lembro
dela. Se vocês quiserem conhecer um pouco a alma da sua bisavó, é só pedir, e
eu colocarei para tocar os CDs com as músicas que ela amava.
Outro jeito que as mulheres-árvores
tinham de florir eram os filhos. Se elas não podiam voar de verdade, voavam
imaginando os filhos voando. Viviam uma vida simples, modesta, sempre plantadas
no chão - e eram sempre uma sombra e um colo onde os filhos tristes encontravam
conforto. Especialmente nas coisas gostosas que só as mães sabiam fazer na
cozinha. Fazer o prato predileto do filho: era o jeito que elas tinham de dizer
às noras: "Você nunca tomará o meu lugar!"
Claro, havia umas mulheres revoltadas
por não poder voar. Viravam cactus, só espinho. E os filhos sofriam. Minha avó
era assim - que Deus a tenha. Mas não minha mãe, que aprendeu ternura com uma
velha escrava chamada Iáiá. Por vezes as mães verdadeiras não são as mães de
barriga - são as mães de coração.
As mulheres, hoje, se cansaram de viver
para fazer vontade de pai e de marido. Estão se transformando em pássaros:
querem voar - determinar o seu destino, ser donas de suas vidas. Liberdade:
esse é um direito de todo ser humano.
Quando vocês tiverem a minha idade e
forem escrever sobre suas mães, ao invés de dizer que elas eram árvores vocês
dirão que elas eram pássaros! E como os pássaros são belos no seu vôo! Podem
ser suaves como as gaivotas ou terríveis como os gaviões... Mas mesmo os
pássaros precisam de uma árvore onde descansar e fazer os seus ninhos...
Hoje, dia das mães, brinque de ser
poeta. Dê, como presente à sua mãe, uma metáfora poética. De todas as flores e
plantas que você conhece, qual é aquela que mais se parece com ela? Que flor ou
árvore você plantaria para nela ela venha a morar, um dia? Há uma grande
variedade que vai dos delicados jasmins do imperador até os cactus... Mas pode
ser que sua mãe seja um pássaro!
"Diz-se que para que um segredo
não nos devore é preciso dizê-lo em voz alta no sol de um terraço ou de um
pátio. Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para o exterior o
medo." Sophia de Mello Breyner, poeta portuguesa. (Citado no livro
"Clube dos Poetas Vivos - Oficina de Poesia, do Centro de Formação Camilo
Castelo Branco, Vila Nova de Famalicão, Portugal).
Atenção, especialmente os terapeutas:
" Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o
terror." (Bernardo Soares - Fernando Pessoa)
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