0
Carta ao maestro Tom Jobim
Posted by Cottidianos
on
02:28
23
de maio de 2015
“Minha alma
canta
Vejo o Rio de
Janeiro
Estou morrendo
de saudade
Rio, teu mar,
praias sem fim
Rio, você foi
feito pra mim”
(Samba do Avião –
Antonio Carlos Jobim)
Antonio
Carlos Jobim é dessas pessoas que nasceram para brilhar intensamente. É um dos
maiores expoentes da música brasileira em todos os tempos. Cantor, maestro,
pianista, compositor e arranjador e violonista, ele nasceu no Rio de Janeiro,
em 1927, e morreu em Nova York, em 1994. Passados vinte e quatro anos de sua
morte, suas músicas ainda são regravadas por grandes nomes da música
brasileira, por cantores novos e por cantores consagrados.
Escrevi
esse texto em homenagem a esse grande talento da música, em forma de carta,
como se fosse algum dos muitos amigos de Tom Jobim, escrevendo para ele, da
cidade do Rio de Janeiro, na esperança de que, de alguma forma, ela fosse lida
pelo artista.
***
Rio, 23 de maio
de 2015.
Caro Amigo Tom,
Estava
a vasculhar os porões de minha mente e encontrei uma relíquia. A propósito não
sei por que a gente guarda tantas coisas no porão de nossas mentes. Talvez seja
por serem são recortes de momentos vividos. Lembranças de momentos felizes e de
momentos tristes. Retalhos, enfim. E o que é a vida senão uma imensa colcha de
retalhos?
Tenho
em minhas mãos aquele disco de bolso que vinha junto com o tabloide, O Pasquim, lembra? Está meio gasto pelo
tempo, mas ainda é possível ver o ano em que foi lançado: 1972. Faz tempo, hein
amigo? No encarte, transcreveste um trecho do poema, O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac:
Foi
em março ao findar das chuvas, quase à entrada
Do
outono quando terra em sede requeimada,
Bebera
longamente as águas da estação
Que
em Bandeira, buscando esmeraldas e prata
À
frente dos peões, filhos da rude mata
Fernão
Dias Paes Leme entrou pelo sertão.
Neste
compacto simples (que trazia no lado B uma música do iniciante João Gilberto)
foi gravado uma das tuas maiores pérolas: a clássica, Águas de Março. Uma verdadeira obra-prima. Essa bela canção foi
eleita em 2001, pela Folha de São Paulo,
a melhor música brasileira de todos os tempos, numa enquete realizada pelo
jornal entre personalidades do meio musical, cultural e jornalistas.
É
pau, é pedra, é o fim do caminho
É
um resto de toco, é um pouco sozinho.
...
É
uma ave no céu, é uma ave no chão
É
um regato, é uma fonte, é um pedaço de chão..”
É
uma letra que vai apresentando elementos da natureza, entrelaçados, amarrados a
uma melodia maravilhosa. É uma linguagem poética que vai formando na mente do
ouvinte a imagem de um ambiente que se distancia dessa coisa urbana, e nos leva
a um ambiente de tranquilidade, no qual os problemas cotidianos são banais,
tipo; um carro atolado na lama, um corte na mão, um espinho no pé. Problemas
estes que logo se tornam ofuscados pela beleza pela simplicidade do peixe, a beleza
da fonte, o sossego do regato e o sussurro do vento. Somente um grande apaixonado
pela mãe natureza poderia nos brindar com versos tão lindos.
Foi
em março de 1972 que compuseste essa canção. No sítio de Poço Fundo, região
serrana do Rio. Lugar lindo! Lá era possível ouvir o sussurro da brisa
matinal... Ver o céu prateado de estrelas... A lua prateada se derramando sobre
o arvoredo.
Poeta
é poeta. Seu planeta é metafísico. Enxerga além. Seus olhos veem beleza e
poesia onde outros olhos apenas enxergam o obvio. Por exemplo, para mim um
regato, é apenas um regato, nada mais. Tu, porém, à beira desse mesmo regato,
tiveste a inspiração despertada qual flor que se abre em pleno esplendor de
primavera. E, junto com as águas do regato, correu pedra, ponte, luz da manhã,
promessa de vida no teu coração. Diante da simplicidade desses versos, nos
sentimos, ora uma ave no céu, ora uma ave no chão.
Lembro,
perfeitamente, o dia em que voltaste do sítio com a música pronta. Passaste no Antonio’s (aquele restaurante que a
turma costumava frequentar), e chamaste todos à tua casa para ouvir a nova
criação. Parecias um menino. Entusiasmado. Sorriso no rosto. Entre um misto de
empolgado e orgulhoso disseste: “O pouco que faltava, fiz agora à tarde”.
Tiraste do bolso um papel amassado, sentaste ao banco do piano e dedilhaste ao
violão a melodia e soltaste a voz em bela canção. A Nós ficamos ali,
embasbacados ao redor de ti, tal qual ébrios sedentos de vinho ou como abelhas
sedentas de mel.
Nos
dias subsequentes, só se ouvia das notas de teu piano, a nova canção. Se alguém
pedia alguma música, lá vinhas tu com Águas
de Março. Já estávamos de “saco cheio”, mas era gostoso te ver tão
empolgado. Depois a música foi parar no disco Matita Perê, e correu mundo.
Quando
você se juntou à Elis Regina, em 1974, para gravar o disco, Elis e Tom, na verdade, nos destes um
belo presente. Joia rara! Que disco! Que canções! Que interpretação! Elis era
uma estrela de brilho raro, tu, idem.
Gostávamos
de ouvir as histórias dos bastidores deste disco. O disco foi gravado nos
Estados Unidos. Contavas que depois de receber Elis Regina, César Camargo
Mariano, marido dela, João Marcelo, filho de Elis com Ronaldo Bôscoli e os
músicos do conjunto de César, no aeroporto em Los Angeles, tu os levaste para
tua casa para uma primeira reunião. Quisestes saber quem faria os arranjos.
Elis prontamente respondeu: “Meu marido, César Camargo Mariano”. Tu disseste
enfático: “Não. Não concordo.” Uma pedra de gelo caiu na sala ao mesmo que
tempo que uma pedra de gelo caía no copo de uísque de Elis. Enquanto ao
telefone tentavas desesperadamente encontrar o americano Claus Ogerman,
arranjador de Matita Perê, César sentou-se ao piano e concentrou-se nos
arranjos que havia feito para o disco. E quão maravilhosamente bem ele tocou.
Resultado: esqueceste do arranjador americano e no dia seguinte parecia que
nada havia acontecido. Enquanto Elis levava João Marcelo para um passeio pela
deslumbrante Vegas, César, tranquilamente, trabalhava nos arranjos.
Unir
dois gênios explosivos num mesmo trabalho não deve ter sido fácil. O piano
elétrico de César Camargo era o xodó de Elis e o teu terror. Elis te achava
antiquado e tu a consideravas moderninha demais. Prevaleceu o bom senso e a
admiração que um nutria pelo outro. Ainda bem, pois deixaste mais esse grande
presente que é um disco gravado com a eterna Elis Regina.
É
amigo, o Rio de Janeiro como escreveu Gilberto Gil, na canção, Aquele Abraço:
O
Rio de Janeiro continua lindo
O
Rio de Janeiro continua sendo
O
Rio de Janeiro, fevereiro e março...
O
Rio continua lindo, é verdade, mas está muito mais violento do que quando por aqui
andavas. Confesso que tenho saudades do antigo malandro carioca. Aquele sabia
convencer o interlocutor com uma boa conversa, usando um termo bem popular:
“tinha muita lábia”. Sua sutileza, agilidade e artimanha, desafiavam a lógica
de uma boa argumentação. Ele estava sempre buscando um modo de sempre levar
vantagem em tudo. Não se pode “por as mãos no fogo” por um malandro, pois, com
certeza, ele não é um individuo que leve muito a sério o vocábulo, ética.
Contudo não se pode afirmar que ele seja bandido. Imortalizado em inúmeras
letras de samba ele carrega até certo ar de romantismo.
Hoje
em dia, o malandro está em desuso. Em seu lugar, e para nossa tristeza, está
surgindo muitos bandidos, gente envolvida com o tráfico de drogas que, para
alimentarem o terrível vício dos entorpecentes, não mede consequências: são
capazes de matar ou morrer. Em todo esse cenário, ainda há o fato de que o
tráfico proporciona uma forma de ganhar dinheiro muito rápido e muito fácil.
Porém, os escravizados pelo vício não sabem que tão rápido quanto o dinheiro
ele pode ir embora, e leva junto a liberdade do homem, quando não, seu bem mais
precioso: a própria vida.
É
triste ver esses maus elementos usando crianças em suas inescrupulosas
atividades criminosas. Crianças que deveriam estar com um brinquedo na mão, ou
com uma bola nos pés, desfilam pelos morros ostentando armas, roubando e
matando inocentes. Os traficantes as utilizam porque sabem que elas não serão
punidas. Por causa disso, políticos e outros agentes sociais acham que se deva
reduzir a maioridade penal. Querem aplicar aos menores de 16, 17 anos, as
mesmas penas imputadas aos de 18. Em minha opinião, isso não é a solução, pois,
se reduzirem a maioridade penal, os meliantes vão usar do artifício de reduzir
a idade para o ingresso no crime, arrebanhando menores de 15, 14 e 13 anos. Sem
contar que já existem, no direito brasileiro, punições para os menores que
cometem crimes. Existem casas disciplinadoras. Porque então não se reforçar
essas casas com maior incentivo à recuperação desses menores. Em relação aos
menores infratores, precisamos de humanos que os mostrem o caminho da
recuperação, e não de instituição que lhes infrinjam castigos que os empurrem e
os afastem cada vez mais para longe do convívio social.
Caro
Tom, o que de fato está empurrando essa juventude para o mundo do crime? Não
seria uma questão diretamente relacionada a uma estrutura social injusta, na
qual os que estão na base da pirâmide são esmagados pelos que estão no topo?
Sendo assim, o caminho não seria uma melhor divisão de renda do produto interno
bruto, melhor emprego do pagamento de inúmeros impostos pagos ao governo e que
depois não retornam em serviços dignos a uma população carente de bens
materiais e, principalmente, de ser tratada com respeito e dignidade? Basta dar
uma volta pelas periferias de nossas cidades e ver qual pão da cultura é levado
a essas pessoas. Nenhum. Os jovens estão por aí vagando à toa, sem ter quem
lhes de o pão da música, da cultura, do esporte. Como dizia meu querido pai,
que já se encontra no mesmo plano espiritual no qual tu também estás. Dizia ele
que “mente vazia é oficina do diabo”, então, meu caro amigo, se assim é, eu lhe
digo que as oficinas do diabo estão abarrotadas.
Há
organizações não governamentais que fazem um belo trabalho nessa área e o
resultado que eles conseguem é impressionante, chega a dar gosto de ver a
alegria das crianças atendidas por essas instituições. Outro dia, visitei uma
delas, era uma ONG que iniciava crianças na doce e nobre arte da música. Quanto
interesse eu vi naqueles rostos infantis! Quanta alegria quando eles conseguiam
tocar as primeiras notas de um instrumento musical! E pensar que aqueles
meninos, poderiam ter enveredado pelas sendas do mal. Graças a Deus que alguém
chegou antes e ofereceu-lhes um caminho diferente, tornando possível a vivência
de um sonho, dentro de uma realidade de abandono e desamparo. Não poderia o poder
público, com o dinheiro dos impostos que pagamos, acender luzes como esta,
muitas luzes como estas no caminho de tantos jovens das periferias e das
comunidades mais carentes? Pensando assim Tom, chego a conclusão do que o
problema não está nos jovens infratores, mas em todo um sistema social opressor.
Falando assim, sei que vais achar meu discurso meio socialista e coisa e tal,
mas é essa a realidade.
Falando
em socialismo, lembra aquele partido de esquerda que se dizia dos trabalhadores?
Pois não é que, ao chegar ao poder, caíram todas as máscaras? São escândalos e
mais escândalos praticados por um partido que fez do agir não ético a sua cartilha.
Digo isso pelo fato de ver constantemente nos noticiários, o nome de quase todos
os principais dirigentes daquele partido, e seus colaboradores, envolvidos em escândalos
de corrupção.
Sinto
saudades daquele Rio de Janeiro romântico, no qual andávamos despreocupados. Lembra-se
daquele barzinho que tinha ali em Ipanema, quase na beira da praia? A turma de
moços e moças se reunia para prosear, tocar, cantar, falar de ideias, de planos
para o futuro, do próximo disco, do próximo trabalho. Era um tempo tão gostoso!
Nós nos olhávamos nos olhos, percebíamos o humano que estava diante de nós, com
suas qualidades e defeitos.
Hoje
a modernidade tem roubado esse prazer. Hoje em dia, o que se vê são pessoas
andando nas ruas sem olhar sequer para os lados, que dirá para o rosto das
outras pessoas. É que todas estão conectadas. Você não vai acreditar se eu te
falar que outro, em um restaurante aqui do Leblon, eu vi um casal que pediu um
jantar romântico e, em vez de se olharem nos olhos, de se falarem e deixarem o
silêncio falar, enfim de curtir aquele momento, eles passaram o tempo todo teclando
em seus smartphones, e nem sequer se olharam nem uma vez?
Lembro
com muitas saudades de ti, amigo querido. Com certeza, pessoas iguais a tu e ao
Vinicius, ajudaram a tornar nossos dias melhores com a arte e sensibilidade de
vocês.
Se
o Rio continua lindo, se o mundo continua lindo, apesar das barbaridades que
temos visto por aí, é porque há pessoas que não perderam o gosto pela boa
música, pela leitura de um bom livro, pelo prazer de uma boa conversa. Pessoas que
mesmo sabendo-se imersas em um mundo de avançadas tecnologias, utilizam-se
essas mesmas tecnologias a seu favor e não contra elas mesmas. Enquanto houver
pessoas que humanizem o mundo com aquilo que elas fazem de melhor, seja na
música, no cinema, no teatro, na pintura, no mundo dos negócios, na arquitetura,
no esporte, ou qualquer outra área, o coração dos homens sempre estará para a
humanidade, assim como um belo dia de sol está para Copacabana.
Para
finalizar eu gostaria de te fazer um pedido especial, que é o seguinte: Se
alguma vez, você encontrar com o Supremo Criador, pede para ele fazer cair
sobre a terra uma chuva de paz, pois os homens estão tão perdidos em suas
neuroses, que até estão se esquecendo de que são homens e mulheres, animais
racionais, e que, por causa disso, tem feito e dito coisas tão absurdas, que nem
mesmo os animais irracionais ousam fazer coisas semelhantes.
Um
grande abraço cheio de saudade!
Postar um comentário