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O goleiro Aranha e o bode Patrícia Moreira

Posted by Cottidianos on 01:23
Sábado, 06 de setembro

Todo mundo conhece o ditado que diz: “Antes tarde que nunca”. Aos poucos, bem aos poucos percebemos que as coisas vão entrando nos eixos aqui no país. Políticos e empresários poderosos estão indo para trás das grades... Acusados de racismo sendo punidos… Enfim, parece que o senso de moralidade vai aos poucos acordando e, quem sabe, um dia, venha a ser a nota predominante. Digo que as coisas mudam aos poucos, pois os poderosos estão indo para a cadeia, mas não temos notícias, pelo menos na grande maioria dos casos, de que eles estejam devolvendo aos cofres públicos a quantia que desviaram.

Essa semana aconteceu um caso, cujo desfecho, provocou muitas discussões e debates. Creio que tamanho burburinho se deva ao fato de ainda não nos ser muito familiar a palavra, PUNIÇÃO.

Falo de mais um lamentável episódio de racismo que aconteceu na quinta-feira (28), no Arena, em Porto Alegre, na partida entre Grêmio e Santos, pelas oitavas de final da Copa do Brasil. Aranha teve uma ótima atuação durante toda a partida, contribuindo para a vitória do Santos por 2 x  0 sobre o time gaúcho.

A partida se aproximava do final quando um grupo de torcedores do Grêmio que estavam logo atrás do gol santista, começou a desferir ofensas contra o goleiro adversário, chamando-o de preto fedido, macaco, e a imitar sons próprios dos animais dessa espécie. Aranha ficou muito nervoso com os xingamentos e  correu em direção ao árbitro pedindo que ele tomasse alguma atitude. O árbitro fez-se de mudo e surdo. Aranha apelou aos jornalistas presentes ao estádio para que, com suas câmeras, percorressem as arquibancadas, com o objetivo de flagrar torcedores que o insultavam.

Se o juiz não foi eficiente o bastante para precisar o que de fato acontecia no estádio, às câmeras o foram. Tal qual rede jogada a esmo em busca de uma caça perfeita, as câmera do canal de TV, ESPN, captou o exato momento em que, monossilabicamente, uma torcedora chamava Aranha de macaco. A moça chamava aranha de macaco com fúria. Nem desconfiava ela que, naquele momento, ela própria se tornava um bode... Bode expiatório.

Quatro horas após o jogo ela descobriu que havia feito uma grande besteira, uma burrice mesmo. Patrícia e outros torcedores esqueceram-se de que com câmeras por toda parte, esse mundo passou a ser um grande Big Brother da vida real. Não demorou muito para que ela fosse identificada. Era Patrícia Moreira da Silva, uma jovem de 23 anos.

Ainda na madrugada de sexta-feira (29), ela descobriu que ao ofender a moral do goleiro, havia mergulhado em um grande pesadelo. Tão logo foi identificada, ela passou a receber todo tipo de ofensas através das redes sociais. Algumas até com ameaças de estupro. A jovem teve a casa apedrejada e fugiu às pressas para casa de parentes que moravam foram da cidade.

Ainda durante a sexta-feira foi demitida do trabalho que desenvolvia na Brigada Militar.
Oito dias depois, Patrícia entrou na delegacia para prestar depoimento. Foi recebida na entrada do prédio por um grupo antirracista que fazia protesto contra ela. Chorava muito aos descer do carro e entrar no prédio sem falar com a imprensa.

A equipe do Grêmio também foi severamente punida. Foi excluída da Copa do Brasil e ainda terá que pagar uma multa de 54 mil reais por a torcida ter arremessado papel higiênico dentro do campo e pela equipe ter demorado a voltar a campo para a segunda etapa do jogo. Os torcedores gremistas identificados com a ajuda das câmeras ficarão 720 dias afastados dos campos de futebol. O árbitro Wilton Pereira Sampaio foi  punido com 90 dias de suspensão e multado em R$ 1.600,00 e seus auxiliares, Kléber Lúcio Gil e Carlos Brenkenbrock e o quarto árbitro Roger Goulart punidos com 60 dias de suspensão e multados em R$ 1.000, por não terem registrado em súmula o ocorrido.

Valeu a punição ‘educativa’ ao Grêmio e aos torcedores. Acho que o Grêmio nada teve a ver com a atitude racista de seus torcedores, porém o STJD, com essa atitude punitiva, quis dar um recado aos torcedores de qualquer time.

Sobre o caso, partilho com vocês, um interessante artigo escrito por Emanuella Santos no site Brasil Post.

***

Patrícia Moreira, o macaco, eu e você

Sem dúvida, o assunto que mais repercutiu na última semana foi o episódio ocorrido na Arena, em Porto Alegre, protagonizado pela jovem torcedora do Grêmio, Patrícia Moreira. Flagrada por uma câmera da ESPN, a menina, com sangue nos olhos, articulava perfeitamente a palavra "macaco", dirigindo-se a Aranha, goleiro do Santos. Poucos minutos depois, discussões acaloradas sobre o racismo se iniciavam nas redes sociais e na mídia.

Por ter frequentado e vivido em cidades de diferentes colonizações (inclusive a Porto Alegre do episódio), tive a oportunidade de ver - de perto, de longe, direta e indiretamente, comigo e com os outros - o racismo em suas diversas facetas. Quando no Brasil se fala em racismo e suas manifestações, as primeiras evidências que surgem em nosso imaginário são atos explícitos: vocábulos como macaco, crioulo, alusões a primatas, expressões como cabelo ruim, coisa de preto, negros sendo destratados em público, etc. Não cessam também medidas inibitórias a tais expressões, que visam a minimizar o racismo. A mais comum, creio, seja a adoção da palavra afrodescendente em preferência à negro, cuja carga pejorativa possui origem secular.

Naturalmente, devido à manifestação óbvia de Patrícia Moreira, ela foi afastada do trabalho, e não tardaram as solicitações pela prisão da garota. Afinal, racismo é crime, e o que vimos na televisão foi um ato racista evidente. Havia outros torcedores cometendo práticas semelhantes, o que não invalida a gravidade do crime praticado. Também não tardaram, no entanto, incitações de ódio contra Patrícia: injúrias de piranha, puta, e sentenças sem jurisdição declarando que ela deveria ser estuprada... Por um negro. Quando, ao rechaçar atos deploráveis como o de Patrícia e reagimos com incitações ao ódio tais como essas, me pergunto: a quem cabe a responsabilidade de, ao massificar a repulsão ao racismo, suscitar junto debates mais aprofundados que levem à reflexão sobre violência e outras práticas de preconceito? Até que ponto sabemos lidar com a capacidade de julgar lançando mão da imparcialidade e do bom senso?

Patrícia Moreira e o grito macaco representam a forma mais simplória e, talvez, de mais fácil "combate" ao racismo. Imaginem que bom seria se, assim como Emmanuel Goldstein, suprimíssemos as palavras macaco e banana, e assim todo o racismo acabasse. Macaco é um primata cuja ancestralidade é comum ao ser humano. Chamar uma pessoa de macaco se configuraria uma ofensa ao se aludir o negro à África, criando uma relação direta com o primitivismo: a inferioridade. Mas viemos todos de uma grande Pangeia, de uma única origem. Não existe, assim, insulto em macaco.

Mas, se acabássemos a palavra, permaneceria o conceito, que está subsistente no coletivo. Um conceito ignorante, aliás. Infelizmente o que há de pior e o que acontece de mais cruel quando se trata de racismo são as práticas veladas, o que faz grande parte da população acreditar que tal preconceito não existe mais no Brasil. Ele subsiste quando dizem, de forma quase complacente, que "você nem é tão negra assim", implicitando o discurso "não se subestime"; quando sugerem "nem alisar", mas "domar" os cachos; ele subiste quando a negra tem uma beleza exótica. Ele subsiste quando, em um estado com mais de 76% de sua população negra, como é o caso da Bahia, não há nenhum negro na foto da turma de graduandos em Medicina, mas isso é "fruto da força de vontade". Ele subsiste quando, ao ser assaltada na rua, uma senhora de bem - que até tem amigos negros e nunca destratou nenhum deles - é apresentada a suspeitos na delegacia e elege "por intuição" qual deles será o punido.

Essas práticas não são identificadas, não são cometidas nem combatidas diretamente. Tampouco de maneira consciente. Vivemos uma história de mais 500 anos e somos herdeiros da cultura de uma sociedade ocidental milenar que também lida com problemas semelhantes. Nosso racismo é atávico, intrínseco. E quando digo "nosso", me incluo, pois sou tão brasileira e tão ocidental quanto você, sou herdeira da mesma história, e nossos critérios são subjetivos, latentes. Me eximir da tarefa de lutar contra um racismo invisível - como quem o sofre e como quem o pratica - seria não apenas uma hipocrisia mas uma irresponsabilidade.

Patrícia Moreira cometeu um crime, sim. Mas se tornou também o símbolo efêmero e erroneamente generalizado de um grupo (no caso, a torcida do Grêmio), o bode expiatório de uma prática comum nacional e o alvo de uma catarse coletiva de manifestações de ódio. Que tal partirmos de uma análise crítica individual, antes de centralizarmos em apenas uma figura os problemas que também nos competem?




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