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Somos todos iguais
Posted by Cottidianos
on
14:47
Sábado,
13 de setembro
“Que eu não
perca a vontade de doar este enorme amor
que existe em
meu coração,
mesmo sabendo
que muitas vezes ele será submetido
a provas e até
rejeitado”.
(Chico Xavier)
Ultimamente,
tem se falado muito à respeito de racismo no futebol. Como o mundo não é só
futebol, vou fugir um pouco desse lugar comum. Fujo desse lugar comum, pois a
expressão, “racismo no futebol”, dá um pouco a impressão de que o racismo está
preso àquele setor especifico, o que não é uma verdade. A verdade é que só existe
racismo no futebol porque há uma sociedade, que é racista, e aproveita aquele
momento, que em princípio deveria ser saudável, para destilar seus próprios
venenos. Vamos aos fatos.
No
dia 30 de abril deste ano, a estudante negra, Mônica Gonçalves, 28 anos, foi
impedida de entrar pela portaria da faculdade de Medicina, na Universidade de
São Paulo (USP). E foi impedida de entrar naquela conceituada universidade, não
porque estivesse provocando alguma confusão. Ela, simplesmente, foi impedida de
entrar pelo fato de ser negra. A jovem, que também é estudante da USP, na faculdade
de Saúde Pública, havia marcado um encontro com alguns amigos e amigas do curso
de Medicina. Eles haviam chegado antes e a esperavam dentro do prédio. Mesmo estando
com a carteirinha nas mãos, os seguranças não deixavam a jovem negra entrar. Enquanto
os funcionários da universidade a impediam de entrar, outros alunos brancos
passavam pela portaria, livremente, sem que fossem impedidos. Depois de muita
insistência a jovem conseguiu entrar.
O motivo
que me levou a abordar esse assunto foi o relatório da Organização das Nações
Unidas (ONU), publicado nesta sexta-feira (12), que trata da discriminação
racial no Brasil. O documento conclui aquilo que nós brasileiros já sabíamos:
democracia racial no Brasil é mito, ou como diz o ditado popular “é história
para boi dormir”.
Os
peritos da ONU visitaram o país entre os dias 4 e 14 de dezembro de 2013. Dentre
as conclusões às quais eles chegaram, está a de que os negros possuem menos
escolaridade; menores salários; menor acesso à saúde; menor participação no Produto
Interno Bruto (PIB), também os que são mais assassinados, os que mais lotam as
prisões e os que menos ocupam postos no governo.
Segundo
os peritos da ONU, a questão do racismo no Brasil é mais difícil de ser
resolvida por causa do racismo velado. Em não se admitindo que o Brasil seja um
país racista, também não há esforços para ações efetivas de combate a esse mal.
O mito da democracia racial impede, inclusive, o acesso à Justiça, pois são
raros os caso que chegam aos tribunais tendo como base o racismo, que são
julgados procedentes.
Para
a ONU, o governo tem feito esforços para sanar o problema, porém, os organismos
criados para tal fim, não recebem verbas o suficiente, muitos menos recursos
humanos para a realização de trabalhos.
Baseado
nesta triste constatação, escrevi o texto abaixo.
***
Somos
todos iguais
No
milenar continente africano os negros viviam em paz. Tinham uma forte
organização social em se tratando de política, economia, cultura, educação,
esportes e religião. Todas as engrenagens funcionavam perfeitamente, como
funcionam as engrenagens e motores de qualquer sociedade da qual são
participes, um povo culto, organizado, guerreiro, batalhador e consciente de
seu papel enquanto cidadão. Entretanto, não há sociedade sobreviva sem seu
povo, sua gente, sem aqueles que costuram o tecido chamado social dando-lhe
cor, brilho e identidade. O povo africano também era — e é hoje — muito apegado
a sua terra e aos seus costumes.
Na
terra de sonhos, berço da própria humanidade, os negros africanos eram livres. Eram
reis, rainhas, escultores, sacerdotes, pintores, professores. Tinham suas
tribos, seus clãs. Devem ter tido seus conflitos internos, porém, qual a
sociedade que não os têm? O que, certamente, não havia entre aquela gente era
uma palavra muito em voga hoje em dia, chamada racismo. Essa maçante teoria que
afirma a superioridade de algumas raças sobre as demais, não deve ter existido
entre iguais.
Eis
que um belo dia, começaram a chegar navios e mais navios, centenas deles, e
foram tirando o povo africano, à força, de suas tribos, de seus, clãs, de suas
casas. Separando-os de suas artes, de sua cultura, de sua religião.
Ah,
se as belas e exuberantes árvores da floresta amazônica, cortadas em toras e
transportadas aos milhares em atividade ilegal, pudessem falar, expressar sua
dor e indignação em palavras, aí sim, nós teríamos a exata dimensão do que foi
aquela imigração forçada. Minto, talvez não tivéssemos a exata dimensão, porque
ainda havia a dor cruel da separação daqueles que estão unidos pelo sangue. Penso
na dor das mulheres e homens africanos, forçados a separar-se de seus filhos e
filhas, pelas mãos de um sistema opressor e cruel, como foi o sistema
escravista. Que dizer dos sofrimentos dos filhos, cujo olhar triste e choroso, denunciava
toda a dor que sentiam ao verem os pais sendo levados para um lado, enquanto
eles seguiam por outro?
Colocados
em porões de navios, que nada tinham de classe executiva ou, ao menos de
segunda classe, eram levados para terras de além mar. Espalhados pelo mundo
inteiro e, principalmente nas terras do continente americano. Muitos morriam
pelo caminho, seja por maus tratos, condições degradantes, doenças, ou mesmo suicídio.
Imagine a dor e humilhação de um guerreiro livre ao ver a si mesmo sob o jugo
de uma mão opressora. “Melhor a liberdade de um céu no qual brilhe a paz de
Oxalá”, assim pensavam muitos deles e assim fizeram.
Ao
desembarcar em terras estrangeiras — falo especificamente do Brasil, mas a
acolhida e receptividade não devem ter sido diferentes aos que desembarcaram em
outros países — foi bem diversa das que costumavam ter entre os diversos clãs,
na África. Humilhações, trabalhos forçados, papel de subalterno, coisas a que
não estavam acostumados em terras africanas. Se quisessem preservar o bem maior
que é a vida, deveriam sofre tudo isto em silêncio. Toda a dor e a angústia que
dilaceravam a alma daquela bela gente, não deveria ser expressa de forma
alguma. Se expressassem estes sentimentos enquanto trabalhavam e o corpo se
lhes tornava os movimentos mais lentos e chicotes e chibatas lhes cortavam a
carne, tal qual navalhas afiadas.
Entre
a cruz e a espada, ficava o dor no coração pelo fato de terem sido covardemente
traídos. Mas traídos por quem? Por um sistema escravista que só visava o lucro
e para o qual o negro não era gente, era apenas uma peça de engrenagem que
deveria funcionar bem, em nome e em benefício de um sistema. Como lutar contra
um inimigo tão poderoso? Fugir para os quilombos era uma alternativa. Mas nem
todos tinham essa coragem porque a perseguição seria feroz, como é feroz a
perseguição a um bicho que foge — no caso presente, não eram bichos, eram
humanos submetidos à condição de bichos.
Outra
alternativa, digo, outra fuga, era “mergulhar de cabeça”, na cultura e tradição
forçadamente deixadas para trás. Alguns tesouros foram sabiamente escondidos
nas dependências do coração e conseguiram atravessar o oceano em segurança. A fé
e culto aos Orixás, em muito ajudou aquele povo sofrido a suportar as dores,
angústias e frustrações — Aqueles que hoje jogam pedras nos adeptos das
religiões afro brasileiras são como aqueles que desprezam o remédio que curou
os males dos seus próprios antepassados, mas isto é outra vereda que leva ao
preconceito à discriminação, à qual não pretendo enveredar agora. Uma vereda de
cada vez, e a gente percorre, pelo menos, boa parte do sertão, não é verdade?
Mas
nem mesmo a fé o negro podia expressar abertamente. Era necessário misturá-la a
fé dos brancos, dessa forma, nesse tempero entre santos e orixás, nasceu uma
nova forma de culto, mais um elemento que torna a cultura brasileira mais bela.
Enfim,
depois de muito trabalho forçado nas lavouras, de muita chibatada nas costas e
de muito sangue derramado, a vida seguiu seu curso e era preciso libertar os
escravos. A princesa Isabel, com caneta de ouro, assinou a lei áurea e brilhou
o sol da liberdade. Brilhou o sol da liberdade para o povo negro, porém,
infelizmente, como nem tudo é perfeito, faltou brilhar para eles — como falta
ainda hoje — brilhar o sol da igualdade.
Os
negros foram jogados em guetos, que logo se transformaram em favelas, nas quais
viviam sem as menores condições de vida digna. Não houve, por parte do Estado
Brasileiro, uma política incisiva de inclusão. O resultado é o que vemos ainda
nos dias de hoje: uma herança de exclusão de um sistema que afasta os negros
para as periferias e de uma sociedade que ainda insiste em colocá-lo no papel
de subalterno.
Diante
de tudo isso, eu vos pergunto? É lícito a um homem julgar outro homem pela cor
da pele? Não seria pela retidão de seu caráter que um homem deveria ser
julgado? Onde está o mal da humanidade: na cor da pele ou nas atitudes morais?
É superior a outro um homem que se utiliza de critérios pueris julgar aquele
que faz a caminhada terrena ao seu lado?
Um
dia, certamente, encontraremos respostas a todas essas questões... Porém, se
nos esforçarmos por compreendê-las desde já, teremos dado um grande passo. É como
as lições das cartilhas escolares: tanto mais rápido você aprende as lições
básicas, tanto mais e melhor avançará em direção às lições mais difíceis. Quem se
revela racista, proclama sua auto-ignorância.
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