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Um discurso dentro de outro discurso
Posted by Cottidianos
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00:42
Quinta-feira, 19 de setembro
Minhas faces ardem como se tivesse
levado um tapa na cara. Acho que milhões de brasileiros sentem a mesma coisa.
Ontem, ocorreu a sessão do Supremo Tribunal Federal que julgou procedente a
aceitação dos Embargos Infringentes para o caso do mensalão. A questão estava
empatada e o voto de Minerva foi o do Ministro Celso de Melo. Com isso,
abriu-se a possibilidade de rever as penas de doze condenados na ação 470. Uma
decepção! Celso de Melo disse, em seu discurso, que aquela casa não deveria
ouvir o clamor popular. Eu, na minha humildade, digo-lhe, senhor Ministro, que o
clamor popular é que se faça Justiça. Isso seria pedir demais?! Não falo dessa
sessão do julgamento no texto de hoje. Falo disso na semana que vem.
Hoje deixo para reflexão dos caros
leitores, um texto que é um alento em meio a essa decepção. É um discurso
proferido pelo Ministro Marco Aurélio de Melo, colega de colegiado de Celso de
Melo. O texto foi proferido em sessão de julgamento do STF, em 22 de outubro de
2012. Ao dar seu voto na sessão que julgava os mensaleiros, Marco Aurélio
trouxe ao plenário, um discurso que havia feito por ocasião de sua posse como Presidente
do Tribunal Superior Eleitoral, em 2006. O discurso é uma perola, cheio de
reflexões fortes. Quem dera todos os ministros tivessem a mesma consciência
acerca da Justiça e do Direito...
Marco Aurélio de Mello
Imagem: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206035 |
Infelizmente,
vivenciamos tempos muito estranhos em que se tornou lugar-comum falar dos
descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira
- composta na maior parte de gente ordeira e honesta - um misto de revolta,
desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e deslavadas as mentiras, tão grosseiras
as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos, que já não se pode cogitar
somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético que parece
dividir o país em dois segmentos estanques - o da corrupção, seduzido pelo projeto
de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande massa
comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e progredir.
Não há, nessas afirmações - que lamento ter de
lançar -, exagero algum de retórica. Não passa dia sem nos depararmos com
manchete de escândalos. Tornou-se quase banal a notícia de indiciamento de autoridades
dos diversos escalões não só por um crime, mas por vários, incluindo o de
formação de quadrilha, como por último consignado em denúncia do Procurador
Geral de República, Dr. Fernando Antônio Barros e Silva de Souza, (referia-me a denúncia desse processo, o
processo do mensalão, a peça primeira dessa ação penal). A rotina de
desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os já conformados
cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente, como se tudo
fosse muito natural e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos,
nas mais diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa
mistura indistinta de escarnio e afronta, e o erro passado justificasse os
erros presentes.
A
repulsa dos que sabem o valor do trabalho árduo se transformou em indiferença e
desdém, como acontece quando, por vergonha, alguém desiste de torcer pelo time
do coração e resolve ignorar essa parte do cotidiano. É a tática da avestruz:
enterrar a cabeça para deixar o vendaval passar. E seguimos como se nada
estivesse acontecendo. Perplexos, percebemos, na simples comparação entre o
discurso oficial e as notícias jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do
faz-de-conta. Faz de conta que não se produziu o maior dos escândalos
nacionais, que os culpados não sabiam - o que lhes daria uma carta de alforria
prévia para continuar agindo como se nada de mal houvessem feito. Faz de conta
que não foram usadas as mais descaradas falcatruas para desviar milhões de
reais, num prejuízo irreversível em país de tantos miseráveis. Faz de conta que
tais tipos de abusos não continuam se reproduzindo à plena luz, num desafio
cínico a supremacia da lei, cuja observação é tão necessária em momentos
conturbados.
Se,
por um lado, tal conduta preocupa, porquanto é de analfabetos políticos que se
alimentam os autoritarismos, de outro surge insofismável a solidez das
instituições nacionais. O Brasil, de forma definitiva e consistente, decidiu
pelo Estado Democrático de Direito. Não paira dúvida sobre a permanência do
regime democrático. Inexiste, em horizonte próximo ou remoto, a possibilidade
de retrocesso ou desordem institucional. De maneira adulta, confrontamo-nos com
uma crise ética sem precedentes e dela haveremos de sair melhores e mais
fortes. Em Medicina, “crise” traduz o momento que define a evolução de doença
para cura ou para morte. Que saíamos dessa com invencíveis anticorpos contra a
corrupção, principalmente a dos valores morais, sem a qual nenhuma outra
subsiste.
Nesse
processo de convalescência e cicatrização, é inescusável apontar o papel do Judiciário
que não pode se furtar a assumir a parcela de responsabilidade nessa avalancha
de delitos que sacode o país. Quem ousará discordar que a crença na impunidade
é que fermenta o ímpeto transgressor, a ostensiva arrogância na hora de burlar
todos os ordenamentos, inclusive os legais? Quem negará que, a já lendária
morosidade processual acentua a ganância daqueles que consideram não ter a lei braços
para alcançar os autoproclamados donos do poder? Quem sobriamente apostará na
punição exemplar dos responsáveis pela sordidez que enlameou gabinetes privados
e administrativos, transformando-os em balcões de tenebrosas negociações?
Essa
pecha de lentidão - que se trasmuda em ineficiência - recai sobre o Judiciário
injustamente, já que não lhe cabe outro procedimento senão fazer cumprir a lei,
essa mesma lei que por vezes o engessa e desmoraliza, recusando-lhe os meios de
proclamar a Justiça com efetividade, com o poder de persuasão devido. Pois bem,
se aqueles que deveriam buscar o aperfeiçoamento dos mecanismos preferem ocultar-se
por trás de negociatas, que o façam sem a falsa proteção do mandato. A
república não suporta mais tanto desvio de conduta.
Eis
o poder revolucionário, (disse então como
presidente do Tribunal Superior Eleitoral), eis o poder revolucionário do
voto com o qual, eleição após eleição, estamos os brasileiros, a nos
aperfeiçoar de tal forma que, muito em breve, os candidatos aprenderão a
respeitá-lo, se não puderem honrá-lo de espontânea vontade. Que a importância
do voto sirva de argumento àqueles que pregam, como vendita por tanta infâmia,
a anulação do escrutínio, ao reverso do abatimento e da inércia é de conclamar
o povo, principalmente, os mais jovens a se manifestar pela cura não pela
doença, não pela podridão do vale tudo que corrói com a acidez do cinismo a
perspectiva de um futuro embasado em valores como: retidão, dignidade, grandeza
de caráter, amor a causa pública, firmeza de propósitos no empenho
incondicional ao progresso efetivo e, não meramente marqueteiro do país. Ao
usar a voz da urna, o povo brasileiro certamente ouvirá o eco vitorioso da
cidadania, da verdade que, sendo o maior dos argumentos, mais dia, menos dia
aparecerá, ao fim da indispensável liberdade viciados que estamos todos na
autodeterminação viabilizada, sem retorno pela democracia.
Aqueles
que continuam zombando diante de tão simples obviedades, é bom lembrar que não
são poucos os homens públicos brasileiros sérios, cuja honra não se afasta com
o tilintar de moedas, com promessas de poder ou mesmo retaliações, e que a
imensa maioria dos servidores públicos abomina a falta de princípios dos
inescrupulosos que pretendem vergar o Estado ao peso de ideologias espúrias, de
mirabolantes projetos de poder. Aos que laboram em tamanhas tolices, nunca é
demais frisar que se a ordem jurídica não aceita o desconhecimento da lei como
escusa até do mais humilde dos cidadãos, muito menos há de admitir a
desinformação dos fatos pelos agentes públicos, a brandirem a ignorância dos
acontecimentos como tábua de salvação.
Já
se antevê o significado do certame que se aproxima incumbindo a cada eleitor a
perceber que o voto, embora individualizado, a, tantos outros se seguirá,
formando o grande todo necessário a escolha daqueles que o representarão.
Impõe-se nesse sagrado direito/dever a conscientização, a análise do perfil, da
vida pregressa daqueles que se apresentem é de presumir, repito, para servir
com honestidade de propósito e amor aos concidadãos, dispostos, acima de tudo,
a honrar a coisa pública. Somente dessa forma o eleitor responderá às
exigências do momento, ficando credenciado em passo seguinte, ele eleitor, a
cobrança.
No
que depender dessa (então Presidência, em 2006), desta Presidência, o Judiciário
compromete-se com redobrado desvelo na aplicação da lei. Não haverá
contemporizações a pretexto de eventuais lacunas da lei, até porque, se omissa
a legislação, cumpre ao magistrado, interpretá-la à luz dos princípios do Direito,
dos institutos de hermenêutica, atendendo aos anseios dos cidadãos, aos anseios
da coletividade. Que ninguém se engane: não ocorrerá tergiversação capaz de
turvar o real objetivo da lei, nem artifício conducente a legitimar a aparente,
e apenas aparente vontade das urnas, se o pleito se mostrar eivado de
irregularidades. Esqueçam, por exemplo, a aprovação de contas com as famosas
ressalvas. Passem ao largo das chicanas, dos jeitinhos, dos ardis
possibilitados pelas entrelinhas dos diplomas legais. Repito: no que depender
desta Cadeira (da Cadeira que ocupava no
TST) não haverá condescendência de qualquer ordem. Nenhum fim legitimará o
meio condenável. A lei será aplicada com a maior austeridade possível - como de
resto é o que deve ser. Bem se vê que os anticorpos de que já falei começam a
produzir os efeitos almejados. Esta é a vontade esmagadora dos brasileiros. No
mais, é aguçar os sentidos, a coragem e, diria, a coragem como síntese de todas
as virtudes, é aumentar a dedicação, acurar a inteligência e desdobrar as horas
e as forças, no intuito único de servir a inspiração geral por um pleito limpo,
civilizado e justo. É o que o Brasil merece e espera. É o que, solenemente,
prometo ao assumir esta presidência.
A partir desse ponto, o Ministro prossegue expondo os argumentos para seu voto, no qual condena os envolvidos no mensalão.
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