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Uma homenagem a Omar Sharif, e outros mestres na arte de representar
Posted by Cottidianos
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Domingo,
12 de julho
“A vida é uma peça de teatro que não permite
ensaios.
Por
isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente,
antes
que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”
(Charles Chaplin)
Semana
passada, o mundo do cinema perdeu um de seus grandes atores.
O
ator egípcio, Oma Sharif, morreu na sexta-feira (10), aos oitenta e três anos,
no Cairo. O ator foi vítima de ataque cardíaco. O ator sofria do mal de
Alzheimer. Suas atuações mais marcantes foram no papel de Sherif Ali, no filme,
Lawrence da Arábia, de 1962, e Yuri
Zhivago, no filme, Dr. Jivago, de
1965.
Descanse
em paz, Dr. Jivago.
Em
homenagem a Sharif e a todos os outros que emprestam seus corpos e seus
sentimentos para dar vida a personagens inesquecíveis, escrevi o texto abaixo,
que é uma reflexão sobre essa arte fascinante que é a arte de
representar.
***
Uma
homenagem a Omar Sharif, e outros mestres na arte de representar
Nicolas
olhou-se no espelho. Algumas rugas na face e uns poucos cabelos brancos que
davam um colorido especial à vasta cabeleira preta e lisa, também anunciavam
que a velhice estava batendo-lhe à porta. Acabara de fazer 50 anos. Não
demoraria mais que alguns anos e ela já teria se instalado completamente em seu
corpo, assumindo ares de dona da casa.
Pegou
da escova e fez a higiene matinal nos dentes, cuidadosamente, até que todos
estivessem muito brancos e brilhantes. Afinal, o sorriso cativante
proporcionado por eles era o alvo preferido dos flashes dos fotógrafos, depois
de seus belos olhos castanhos, é verdade. Na profissão de ator, uma boa imagem
era moeda valiosa. Estava certo disso. O homem no espelho, que caminhava em
direção à terceira
idade, não se considerava, necessariamente, um deus grego,
brilhando no alto do Monte Olimpo e entontecendo deusas e ninfas terrenas. O segredo
do sucesso que fazia estava em um corpo bem cuidado, uma imagem pessoal
diariamente revista, e um exemplar desempenho nas telas, somado a tudo isso, a
meditação, o mergulho interior no qual procurava sempre estar imerso, apesar do
ritmo frenético das gravações.
Ele
compreendia muito bem que o meio artístico era muito semelhante à mitologia
grega que narra a vida de Teseu, herói grego, ateniense, filho de Egeu e Etra.
O lendário personagem foi responsável por derrotar o terrível Minotauro —
monstro com corpo de homem e cabeça de touro.
Havia
em Creta, no subsolo do palácio do rei Minos, um labirinto gigante no qual o
monstro houvera sido aprisionado. Por ordem do rei, todos os anos, sete rapazes
e sete moças atenienses eram enviados à ilha para serem devorados pelo monstro.
Após três anos vivendo sob aquela barbaridade e terror, o intrépido herói
resolveu libertar o povo ateniense daqueles suplícios, e ofereceu-se para ser
um dos jovens a serem levados à Creta. Seu objetivo era vencer o terrível
monstro e, consequentemente, libertar os atenienses daquele pesadelo. Teseu
acreditava que os deuses, de alguma forma, o ajudariam nessa batalha.
Ao
chegar a Creta, o bravo guerreiro conhece o amor na pessoa da jovem e bela
Ariadne. Apaixonada e temendo pela vida do amado, ela oferece-lhe um novelo de
lã para lhe servir de guia dentro do labirinto, de modo que ele conseguisse
vencer o monstro, sem perder-se naquele mundo de muitas saídas e poucas chances
de vida.
Ao
entrar no perigoso mundo de muitos caminhos, Teseu deu um jeito de prender uma
das pontas do novelo na entrada, marcando-a. Mergulhando cada vez mais naquele
estranho mundo, o herói procurava o monstro, ansiava por encontrá-lo. Seu
coração batia forte e descompassado, mas sua confiança nos deuses do Olimpo, e
a sua vontade de rever a amada Ariadne, o fortaleciam.
O
herói percebeu a aproximação da fera. Escondeu-se entre as paredes do labirinto
e atacou o monstro de surpresa, usando uma espada mágica, que fora outro
valioso presente, dado por Ariadne. Tombou o monstro por terra e Teseu libertou
o povo ateniense e saiu do labirinto vitorioso, pronto para viver seu amor pela
bela jovem.
Nicolas
lembrava muito bem dessa história, pois com ela já havia conquistado o Oscar de
melhor ator.
O
mundo da fama e do sucesso também é um labirinto. O monstro que o habita não é
tão feio quanto o Minotauro, ao contrário é belo. Traja vestes resplandecentes
de ouro e prata. Os que são atraídos para esse labirinto, não são obrigados a
entrar, como no caso dos jovens atenienses. Muito pelo contrário, os candidatos
a famosos entram nesse complexo mundo por livre e espontânea vontade. São
seduzidos pelo brilho do monstro sedutor que lhes oferece dinheiro, fama e
sucesso. Sem estrutura emocional para resistir a essas tentações, muitos se
tornam presas fáceis e, mais dia, menos dia, são devorados pelo atraente e belo
monstro.
O
ator não tivera uma bela Ariadne para lhe entregar o novelo com o qual entrou
seguro nesse complexo labirinto do mundo do sucesso. O novelo de lã salvador,
fora, no caso dele, entregue pelas mãos de sua mãe e de seu pai, que sempre lhe
fizeram questão de lhe passar lições e atitudes, nos quais estavam implícitos
ou declarados, os valores da ética, da justiça, do amor, do perdão, da
honestidade, e da simplicidade. E ele, de forma inconsciente, havia amarrado o
fio desse novelo nas portas da entrada do mundo da fama. Essa atitude fez com
que nunca se perdesse dentro do labirinto, e por ele caminhasse tranquilo e
sereno. Isso vinha fazendo toda a diferença na sua vida pessoal e profissional.
Afinal,
nas telonas ele era sempre escalado para o papel principal de filmes de grande
sucesso, verdadeiros clássicos do cinema. Entretanto, sabia que por trás da
máscara de empresários poderosos, políticos influentes e policiais em luta
contra a máfia, aos quais havia emprestado o rosto, lhes imprimido uma
personalidade, havia um homem como qualquer outro, e como qualquer outro homem,
sujeito às intempéries da vida. Quando voltava para os camarins e tirava a
maquiagem e as vestes, ali também deixava seus personagens. Ele então assumia o
seu verdadeiro papel, o papel na vida. Esse ele não representava, vivia, e
vivia intensamente.
Enquanto
o pente deslizava suavemente pelo seu cabelo, um fio branco veio adornar a
palma de sua mão. Olhou para o fio de cabelo, e novamente olhou para o rosto
firme e, ao mesmo tempo sereno, do homem que via no espelho. Voltou novamente
os olhos para o fio de cabelo branco. Enquanto muitos poderiam ver naquele
simples fio de cabelo, sinal de envelhecimento, ele via sinal de experiência,
maturidade.
Há
quanto tempo estava no mundo do cinema? Fazia uns vinte anos, talvez. Isso
mesmo. Vinte anos! Era esse o tempo em que brincava de ser outras pessoas,
sendo sempre ele mesmo. Interpretar não é somente trazer a realidade para a
ficção, ou fazer da ficção uma realidade. É acima de tudo encher o universo
fictício de tamanha intensidade, que público já não perceba o limite entre
aquilo que está sendo criado, inventado, daquilo que de fato existe. Prova disso,
é que os melhores personagens que representara, aqueles que se tornaram
clássicos, foram aqueles aos quais ele havia emprestado maior intensidade.
O
mundo do cinema é um fascinante mundo dentro de tantos outros mundos possíveis
de dor, alegria, amor, fantasia. O cinema tem essa coisa de nos transportar
para galáxias distantes, onde vivemos um futuro surreal que está há anos luz de
nossa pequena casa, a qual, carinhosamente, chamamos de Terra. Assim como nos
impulsiona para o futuro, essa viagem fascinante também pode nos fazer entrar
na máquina do tempo e viver a aventura de um tempo que ficou no passado,
revivendo histórias que, na verdade, gostaríamos de ter presenciado o seu
desenrolar, e como deuses, mudar o rumo dos acontecimentos.
Tudo
isso graças ao teatro. Sempre achara que o teatro era o pai de todas as formas
de interpretar. Tudo isso graças ao grego Tepsis. Nicolas achava que a arte de
interpretar tão mágica, por ter sido uma coisa que nasceu de forma espontânea,
e as coisas que nascem da espontaneidade humana são muito mais gostosas e
saudáveis de serem vividas, sentidas, admiradas.
Assim
foi com o teatro. Nas festividades da Grécia Antiga, realizadas em homenagem ao
deus Dionísio, deus do vinho e da alegria, havia apresentações artísticas,
porém como as apresentações aconteciam ao ar livre, muito pouco se ouvia da
fala dos participantes. O que havia era mais balburdia do que apresentação. Não
se podia chamar aquilo de teatro. Tepsis teve a ideia de criar máscaras que
expressavam sentimentos humanos, assim mesmo longe, o público podia saber se a encenação
tratava-se de alegria ou tristeza, amor ou ódio.
Vivas
também aos irmãos Lumiere que revolucionaram o mundo das artes com a criação do
mágico mundo do cinema, na França de 1895. De lá para cá, o mundo mudou muito e
o cinema também. Cada vez mais, efeitos especiais invadem as telas e deixam
extasiados os espectadores. A única coisa que não mudou nesse tempo todo foi o
modo de amar, de sentir, de odiar. Claro, esses sentimentos podem ter sentido o
efeito, ou melhor, as influências culturais das épocas a que estiveram
submetidos. O certo é a que a qualidade e a cor da lã podem ter mudado, mas
quer saber mesmo... O novelo ainda é o mesmo.
As
máscaras servem para os personagens. Ficam muito bem neles, dão lhes graça,
beleza e verdade. É isso. Mascaras combinam com os personagens, não com o ator.
Se aquele que representa usa máscaras sem que esteja realmente representando, o
que se torna ele senão fantoche de si mesmo? Tão belo e vazio quanto um belo
balão, desses que se costuma usar em aniversários e ocasiões especiais.
Enquanto
colocava um confortável jeans, camisa polo, e calçava os sapatos, Nicolas pensava
que a roupa existe por causa do homem e não o homem por causa da roupa. A roupa
não deve ser protagonista, e sim quem a usa. É a personalidade de quem a veste
que torna o traje elegante. Não fosse assim, todas as pessoas abastadas seriam
elegantes, o que, convenhamos não é essa a verdade.
Com
o coração leve, ele trancou a porta e saiu para um agitado dia no set de
gravações externas de um novo filme, também promessa de sucesso.
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